Emergências sistêmicas, um livro e um projeto nascidos da necessidade e do desejo de transformações significativas

Livro será lançado no próximo dia 23, em evento às 16 horas, na Livraria Cultura, Conjunto Nacional, em São Paulo.

Emergências sistêmicas, um livro e um projeto nascidos da necessidade e do desejo de transformações significativas

por Arnaldo Cardoso

Em contexto de crise sistêmica na qual a pandemia da Covid-19 agudizou os impactos dos problemas estruturais do capitalismo contemporâneo, sendo sua expressão mais visível o aprofundamento das desigualdades sociais em todo o mundo, viu-se emergir também formas criativas de (re)organização social, de cooperação, de solidariedade para o enfrentamento de problemas, especialmente por  populações mais vulnerabilizadas, dando mostras de resistência e resiliência para a construção de um futuro mais justo e inclusivo.

Impactados pelo ambiente de dor, mortes e escassez e sob as restrições impostas pelo necessário distanciamento social, um grupo heterogêneo formado por professores, psicólogos, psicanalistas, jornalistas, lideranças comunitárias e indígenas, produziram os capítulos que integram o livro “Emergências sistêmicas: civilizações transitórias em diálogos transculturais” proposto e organizado pela psicóloga Valéria Sanchez e pelo jornalista Volmer Silva do Rêgo, que será lançado no próximo dia 23, em evento às 16 horas, na Livraria Cultura, Conjunto Nacional, em São Paulo.

A diversidade de origens e trajetórias do(a)s autore(a)s, dos temas e abordagens escolhidos é certamente um dos elementos de força do livro, além do entendimento de que ele não é o resultado final, mas sim o início. Uma vez que também será lançado o Projeto de Ações Sistêmicas (PAS) que propõe um sistema de trocas contínuas, agregativas e colaborativas tendo cada território como locus a partir do qual ações transformadoras possam ser realizadas.

Cabe aqui uma nota sobre o artefato livro físico que, para além de sua força simbólica, mantém-se como meio de compartilhamento de ideias, conhecimentos e compromissos. Se a forma do livro físico vem cedendo aceleradamente espaço para o livro digital que, mudança que carrega o potencial de democratização do acesso, faz-se importante salientar que o que vem ocorrendo é uma reestruturação da respectiva cadeia de produção e distribuição através de grandes corporações que dominam os vários elos dessa cadeia, com destaque para a logística/distribuição (Amazon) e para as plataformas digitais comandadas pelas chamadas Bigtechs, que controlam as plataformas digitais. Nas margens do sistema, pequenas editoras e livrarias buscam resistir mantendo viva a produção independente e canais de distribuição. O livro Emergências Sistêmicas nasceu neste contexto.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn

O(a)s autore(a)s e seus capítulos

Já nos belos textos de Apresentação, Prefácio e Introdução, escritos respectivamente por Volmer Silva do Rêgo, Roberto Gambini e Allen Habert, o espírito da interdisciplinaridade, do diálogo entre áreas de conhecimento, da relação entre experiência e elaboração são evidenciadas, conferindo identidade ao livro. Reforça o reconhecimento dessas qualidades do livro o inspirado texto da contracapa assinado pela antropóloga, etnóloga, pesquisadora, escritora e professora Betty Mindlin, que encerra seu texto referindo-se ao belo grafismo guarani que ilustra a capa e carrega uma memória afetiva de indescritível valor.

Como recusar o convite apresentado por Volmer para uma “compreensão amorosa da complexidade social” do Brasil? E como não se sentir instigado pela invocação do I Ching, usado tradicionalmente como um oráculo, que diante de perguntas indica uma resposta simbólica?

Já o agudo texto de Roberto Gambini, após elencar uma série de situações que tem posto em prova o futuro da liberdade e da democracia de nosso país, bem como o de vários outros países no mundo, indaga sobre os sentidos e causas do atual processo regressivo de consciências, de “regressão cognitiva”, faz um elogio ao esforço dos autores de Emergências Sistêmicas para a “expansão e aprofundamento de nossa consciência coletiva” para um “caminho de vida”.

No texto de Introdução, Allen Habert invoca logo no primeiro parágrafo a sabedoria de Leonardo Boff ao formular que “uma sociedade biocentrada une a todos em nome do bem comum e do bem viver” e, em seguida, generosamente refere-se aos capítulos como portadores de “senhas e pistas destinadas a atravessar este deserto da atualidade”.

O primeiro capítulo de José Jorge M. Zacharias, psicólogo, doutor em Psicologia Social e professor, invoca as contribuições das mitologias de matriz africana conectando o leitor com mitos e histórias da sabedoria ancestral, como a de Obaluaê ou Omolu, o médico dos pobres, tornado mais tarde o orixá das doenças e da cura.

Zacharias nos traz também Ossaim, orixá da flora e dos remédios, do poder das plantas, bem como Euá e Orunmilá. Assim, o autor nos conduz à reflexão sobre as relações do homem com a floresta e todos os outros seres materiais e imateriais, ao mesmo tempo em presta uma homenagem aos profissionais da saúde, pesquisadores engajados no desenvolvimento das vacinas e todos aqueles que entregaram suas vidas para salvar vidas durante a pandemia.

O segundo capítulo “O mundo em construção”, de Maria Aparecida Honório, professora e coordenadora do Núcleo de Mulheres da AMAVB (Associação de Moradores do Alto da Brasilândia) nos oferece um pungente e valioso relato de vida como mulher preta, periférica, mãe, avó e ativista social. Compartilhando passagens de sua trajetória em que enfrentou a pobreza, o racismo, o desamparo, a violência de gênero, mas também de suas lutas para superar barreiras ao acesso à cidadania, põe o leitor em contato com as estratégias e a solidariedade postas em ação para o enfrentamento da pandemia por moradoras e moradores do populoso bairro da zona Norte de São Paulo que chegou a ocupar o primeiro lugar no ranking de casos de Covid-19 na cidade.

O terceiro capítulo “A pandemia de Covid no contexto de Saúde Única: onde estamos errando?”, escrito pela médica veterinária, professora e pesquisadora Mary Marcondes, faz uma importante discussão tendo como eixo central o conceito de “Saúde Única” (One Health) e a indissociabilidade entre saúde humana, animal e ambiental.

Percorrendo a história, a autora nos dá a saber as origens do conceito, passando pelos povos da Mesopotâmia e da Grécia Antiga, chegando ao século XVIII europeu com a primeira vacina humana criada pelo médico britânico Edward Jenner, a partir de pesquisa orientada pelo princípio de Saúde Única.

Relembrando o período em que as zoonoses eram encaradas como problemas de saúde pública, a professora Marcondes salienta o atual “aumento da frequência de novos patógenos” e o “surgimento de novas doenças impulsionado por complexas interações entre homens, animais selvagens e ambiente”.  Como a autora alerta “Pandemias não são de forma alguma novas, mas a velocidade com que se espalham é nova”.

A interdisciplinaridade e o diálogo permanente entre médicos e veterinários, bem como com profissionais das áreas das Ciências Sociais e Ambientais, visando ações integralizadas e holísticas “com o objetivo de estabelecer uma responsabilidade mais ampla da sociedade para todo o ecossistema do planeta”, é apontado pela doutora Marcondes como o caminho mais acertado para o enfrentamento dos desafios apresentados.

O quarto capítulo, de autoria de Jorge Miklos, sociólogo, psicólogo e professor, nos convida a pensar sobre a “complexidade e importância dos símbolos para a vida e a cultura humana” ressaltando que “o símbolo é central para quem pensa a existência para além do ego e da persona”.

Utilizando autores como C. G. Jung, Gilbert Durand e outros, o professor Miklos expõe a diferença entre símbolo e signo e trabalha a ideia dos símbolos como “pharmakon”.

No capítulo “Diálogos ancestrais: saberes guarani e munduruku” o leitor encontrará um belo diálogo entre os líderes indígenas David Popygua e Daniel Munduruku, este último filósofo, professor e escritor de importantes livros que tem contribuído para a expansão e descolonização do conhecimento sobre etnias e culturas dos povos originários, bem como com a formação de novos educadores e lideranças.

David Popygua é um jovem líder Guarani, nascido na aldeia do Joraguá, uma pequena terra indígena na cidade de São Paulo. No referido capítulo nos conta como foram os difíceis dias de seu povo diante do avanço da pandemia e como a sabedoria ancestral do “bem viver” e as mensagens contidas nos sonhos serviram de orientação aos guaranis nos dias mais difíceis.

Na sequência, o capítulo “O território como cura” de autoria do cacique Ramon e de Nádia Akawã traz um pertinente diálogo inspirado pela responsabilidade do legado Tupinambá. O jovem líder Ramon nos fala da Mãe Terra que continua acolhendo a todos mesmo sendo gravemente maltratada. No momento em que escrevia o capítulo o cacique contava seis mortos e 278 infectados nas aldeias em Olivença, sul da Bahia, “um território de Mata Atlântica, área de florestas e manguezais, em cima de uma estância hidromineral, unida à beira-mar na costa brasileira”.

Ainda sobre o território, nos conta que há “cinco colégios indígenas dentro do território e um corpo docente de professores e diretores, todos indígenas. Agentes de saúde, as Agências Nacionais de Saúde Suplementares (ANSS) associadas a 23 aldeias”.

O jovem cacique ressalta que “para os povos indígenas a terra vai muito além do chão que se pisa. É nela que está a vida, é nela que está o sagrado, é dela que vem o alimento, as medicinas e a gente precisa estar nessa conexão, compreender a dimensão cosmológica do povo indígena”.

Continuando a reflexão, lança a indagação: “Como fazer enfrentamento político se não pensar nessa espiritualidade? […] Como fazer enfrentamento político se não pensar na cura de todos?”

Avança na problematização levantando a questão da educação e da produção de livros didáticos com histórias dos indígenas. Lança a importante pergunta “Quem escreveu sobre nós?” para em seguida acrescentar “Quem escreveu sobre nós deixou tudo no passado. […] Onde está o índio contemporâneo?”

Nádia Akawã enumera uma série de violências de que os povos indígenas têm sido vítimas, sobretudo desde a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência da República.

Depois desses dois capítulos, com valiosas páginas que trazem a ancestral sabedoria dos povos originários, o capítulo intitulado “Aprender a morrer: um convite ao florescimento junto à teia da vida” de Daniela Laskani, psicóloga e arteterapeuta, e Fabiana Grazzi, psicóloga e coordenadora do Departamento de Ecopsicologia da AJB, as autoras após pontuarem que “a sombra do medo e da ameaça eminente de morte dominou a psique coletiva”, trazem para o texto James Hillman, analista junguiano e incentivador da ecopsicologia, como suporte conceitual para uma análise das “experiências pandêmicas” destacando a “relação da humanidade com a natureza” e das “patologias humanas e os problemas ecológicos do planeta”.

No capítulo oito, a psicóloga clínica, especializada em Arteterapia, Carla Silva Contrucci, nos conduz através do capítulo “Da ancestralidade à infância: caminhos do esperançar” por delicados caminhos que, ativando a criatividade do brincar, promove o (re)encontro do adulto com a criança, trazendo o simbólico para romper com a lógica ‘monoracionalizada’.

Refletindo e convidando à reflexão sobre os impactos psíquicos da pandemia da Covid-19, Carla nos fala de um “vazio existencial” e de um “grave esvaziamento psíquico” que adoeceu adultos e, por extensão, crianças que passaram a buscar escapes no consumo, agravando a fome da alma por substâncias vitais.

No desenvolver do belo capítulo somos reapresentados a alguns dos encantados da floresta (Saci-pererê, Curupira, Caipora e Comadre Florzinha) numa aventura com potencial de saciar a alma de substâncias vitais esgotadas no enfrentamento racional da vida material, esvaziada de sentido.

No capítulo 9, a jornalista e co-deputada estadual pelo Partido Verde, Claudia Visoni, mais que colocar o leitor em contato com o conceito da permacultura desenvolvido em 1974 pelos australianos Bill Molison e David Holmgren apresenta um relato de experiência de permacultura com quase dez anos e de uma prática de educação ambiental a partir de visita à Horta das Corujas, no Sumarezinho, cidade de São Paulo.

O capítulo expõe também o trabalho jornalístico e educativo de Claudia Visoni através da produção e divulgação dos Boletins Semanais com notícias ambientais produzidos desde abril de 2021 e disponibilizados em redes sociais como Facebook, Instagram e Youtube.

O décimo capítulo “Emergências sistêmicas e a crise do patriarcado” de autoria de Valéria Sanchez, psicóloga, psicanalista, especialista em Cinesiologia, professora, pesquisadora e organizadora do livro ora apresentado, traz o desenvolvimento de uma análise tendo a pandemia da Covid-19 e seus impactos sistêmicos como eixo da reflexão e tomando a figura da Esfinge, da tragédia de Édipo Rei escrita por Sófocles (496-406 a.C.),  propondo-nos pensar a pandemia como a “nova Esfinge” que nos ameaça devorar se não a decifrarmos.

Valéria ao nos lembrar de que os mitos sempre apontaram “para os perigos da arrogância como fator desencadeador das tragédias” nos leva a refletir sobre a violência dos homens em relação à natureza, em nome de um “progresso” que ao invés de criação tem trazido destruição.

Para falar dessa destruição sustentada por formas de concentração e uso de poder, a autora se utiliza do conceito de patriarcado para analisar o ímpeto de dominação e subjugação que historicamente incidiu sobre povos e sobre a natureza.

Recorrendo a escritos de Carl Gustav Jung, Valéria enumera alertas do psiquiatra e pensador suíço quanto à “iminência de desastres mediante a pretensão orgulhosa do homem em relação à vitória sobre a natureza”.

Com percuciência Valéria enuncia “Cada Esfinge carrega a própria intimação”.

O capítulo onze que carrega já no título a defesa do direito à educação democrática e de qualidade, foi escrito por Selma Rocha, historiadora com doutorado em História Social pela USP, professora e uma das mais experientes gestoras públicas da área da Educação no Brasil, tendo trabalhado com Paulo Freire quando ele foi Secretário de Educação de São Paulo, foi também Secretária da Educação de Santo André, diretora da Escola de Formação Política do PT e da Fundação Perseu Abramo.

As primeiras páginas do capítulo trazem uma competente análise de cenário reconhecendo de forma articulada fatores estruturais e conjunturais para uma compreensão de “mudanças profundas do capitalismo” e o “alcance e profundidade do potencial de destruição” desse sistema no atual estágio de seu desenvolvimento.

Dialogando com os intelectuais franceses Pierre Dardot e Christian Laval, autores do livro “A nova razão do mundo” (2018) e outros expressivos pensadores de nosso tempo, Selma Rocha brinda o leitor com um texto reflexivo, informativo, crítico e fluente. Após uma competente contextualização, na qual acertadamente mostra o Brasil inserido e impactado pelas dinâmicas da economia-mundo, a autora faz uma análise das políticas públicas de Educação no Brasil nas últimas décadas, tendo as conquistas democráticas consubstanciadas na Constituição Cidadã de 1988 como parâmetro.

Nas últimas páginas do capítulo a autora destaca os retrocessos vividos pelo país com especial atenção à Educação, desde o golpe de 2016, que representa ameaças sérias a princípios como o da “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”, entre outros.

O último capítulo, de minha autoria, propôs uma releitura à luz do presente – mais de vinte anos após sua escrita –do livro de Edgar Morin “Os sete saberes necessários à educação do futuro” (2000), por reconhecer pertinência e atualidade nas preocupações expressas pelo autor e, também, por ver na heterogeneidade do conjunto de autores e temas tratados no livro Emergências Sistêmicas, a complexidade e interdisciplinaridade que sempre instigou a reflexão do intelectual francês, levando-o a teorizar sobre o Pensamento Complexo, colocando em debate os métodos do fazer ciência.

Na virada de século Morin alertava sobre a necessidade de reformar o pensamento, promovendo a religação dos saberes que a ciência positivista fragmentou.

No livro de Morin, o diálogo entre os saberes e sua contextualização são apontados como essenciais para uma reforma do pensamento e uma democratização da educação, consciente sobre os impactos desta sobre todas as relações sociais.

Como dito no início do referido capítulo, vivemos hoje as contradições de um tempo enunciado como “era do conhecimento” em virtude dos extraordinários avanços tecnológicos, destacadamente nas áreas da informação e comunicação, tempo no qual cresce a desigualdade social que tem como um de seus fatores estruturantes a desigualdade de acesso à educação de qualidade e aos equipamentos de cultura, arte, ciências que propiciam a construção de repertórios condizentes  para enfrentar com autonomia a complexidade da vida contemporânea.

Junto com o lançamento do livro está sendo lançado o Projeto de Ações Sistêmicas (PAS) que conceberá ações sociais em territórios onde a necessidade e o desejo de transformações significativas possam engajar atores em ações transformadoras.

O livro:

Título: Emergências Sistêmicas: civilizações transitórias em diálogos transculturais

Organizadores: Valéria Sanchez e Volmer Silva do Rêgo

Editora: Anita Garibaldi     Ano: 2022

Lançamento: 23 de outubro de 2022 – 16 horas

Livraria Cultura – Conjunto Nacional – São Paulo – SP

Arnaldo Cardoso, sociólogo e cientista político formado pela PUC-SP, pesquisador, escritor e professor universitário.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador