Relatório da Vale cita laudos de barragens emitidos sem a segurança recomendada

Companhia frisa que nada apontava "risco iminente". Para MP, funcionários assumiram “risco de produzir centenas de mortes”

Um bombeiro em busca por vítimas da tragédia de Brumadinho, 20 dias após a ruptura da barragem da Vale. DOUGLAS MAGNO-AFP

Documento interno da Vale registra que a mineradora sabia que laudos de estabilidade de suas barragens eram emitidos pelas empresas de auditoria mesmo sem atingir os índices recomendados de segurança. Seis meses antes do rompimento da Barragem I da Mina do Feijão, a empresa recebeu um relatório de um painel de especialistas –contratados por ela própria– no qual eles apontam que declarações de estabilidade foram dadas considerando “a disposição” da mineradora em resolver os problemas detectados. O documento faz parte do compêndio que está em posse do núcleo criminal da força-tarefa que investiga o desastre de Brumadinho, que diz ter identificado um “conluio” de funcionários da Vale, que teriam assumido o “risco de produzir centenas de mortes”. Pelo menos 166 pessoas morreram e outras 155 seguem desaparecidas por conta do tsunami de lama. As autoridades também apontam que troca de e-mails entre funcionários da mineradora e da auditora Tüv Süd demonstram “chantagem” da empresa brasleira para conseguir os laudos de estabilidade da firma alemã com base na promessa de contratos futuros.

O documento interno da mineradora, a que o EL PAÍS teve acesso, é intitulado Painel independente de especialistas nacionais para segurança e gestão de riscos de estruturas geotécnicas, de 5 de julho de 2018. Trata-se de um relatório produzido por quatro especialistas brasileiros que realizaram seminários internos na empresa entre os dias 18 e 20 de junho de 2018, antes de produzir o texto. Entre temas, os painelistas abordaram estudos de liquefação da Barragem I, em Brumadinho, e as possíveis remediações em barragens sujeitas a esta falha (quando os rejeitos se transformam em água e pressionam a represa). “Em vários casos, mesmo com o resultado das análises não drenadas de estabilidade indicando fatores de segurança mais baixos que as práticas recomendadas, as declarações de estabilidade foram emitidas, inclusive considerando a disposição da Vale em tomar as medidas estabilizantes necessárias”, diz trecho do documento, sem se referir diretamente a Brumadinho.

Questionada sobre relatório interno, a mineradora disse apenas que “o documento mencionado reúne sugestões de um painel com especialistas nacionais e internacionais em temas relativos à geotecnia.” Repetiu que “não existe em nenhum relatório, laudo ou estudo conhecido qualquer menção a risco de colapso iminente da Barragem I da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho”.

O documento interno obtido pela reportagem explica que o painel de especialistas, que começou a funcionar em 2918, era parte do esforço declarado da Vale em atualizar suas práticas de segurança. No mesmo relatório, os especialistas elogiam a “evolução conceitual” da Vale na questão da segurança das barragens construídas à montante (o próprio rejeito de minério é usado na construção da barreira, num modelo considerado inseguro e caro). O grupo, porém, além de reclamar a qualidade dos laudos, cobra da empresa que contrate e treine pessoal “para o atendimento aos requisitos de projeto e legislação”, uma vez que “o staff geotécnico da empresa não consegue acompanhar de forma efetiva os trabalhos”.

Brumadinho com fator de segurança menor

Em outro momento, os especialistas concordam com a empresa deve utilizar como piso o “fator de segurança” maior ou igual a 1,3 nos casos em que sejam detectadas falhas por acúmulo de líquido na barragem. Em entrevista coletiva nesta semana, o gerente-executivo de Planejamento e Desenvolvimento de Ferrosos e Carvão da Vale, Lúcio Cavalli, afirmou que o risco de ruptura existe quando esse fator chega a 1. O nível considerado confortável, porém, seria de 1,5.

Em um trecho de e-mails apreendidos pelas autoridades e publicados pela Folha de S. Paulo, um dos responsáveis pelo laudo de estabilidade da Barragem I, Makoto Namba, da Tüv Süd, sugere que esse fator seria inferior ao mínimo de 1,3 já em maio do ano passado. “Tudo indica que não passará, ou seja, fator de segurança para a seção de maior altura será inferior ao mínimo de 1,3, dessa maneira, a rigor, não podemos assinar a Declaração de Condição de Estabilidade da barragem, que tem como consequência a paralisação imediata de todas as atividades da mina Córrego do Feijão”. E segue: “Mas, como sempre, a Vale irá nos jogar contra a parede e perguntar: e se não passar, irão assinar ou não?”. Em outubro passado, a empresa alemã emitiu o laudo mesmo após detectar problemas.

Investigações criminais

“A barragem rompeu com toda a sua fúria num evento que representantes da Vale insistem em afirmar que foi acidente, mas o Ministério Público e as polícias de Minas Gerais têm hoje a convicção de que ocorreu a prática de um crime doloso e um crime de homicídio, por meio do qual diversos atores assumiram o risco de produzir centenas de mortes”, afirmou o promotor de Brumadinho, William Garcia, que coordena o grupo formado por membros do Ministério Público e das polícias Civil e Federal que investiga o caso de Brumadinho. Garcia falou durante a entrevista coletiva nesta sexta-feira sobre a detenção de oito funcionários da Vale envolvidos no monitoramento da barragem que ruiu

Segundo o núcleo criminal dessa força-tarefa, as investigações sugerem a existência de um “conluio” de funcionários da mineradora, que teriam assumido o “risco de produzir centenas de mortes”. O promotor afirma que, mesmo detendo informações que sugeriam uma situação crítica na segurança da barragem de Brumadinho, houve uma articulação entre os funcionários na qual se discutiu e se assumiu os riscos. “Alguns funcionários da Vale participaram ativamente deste conluio para dissimular a situação crítica da barragem”, declarou William Garcia, sem identificar quais seriam estes funcionários. Segundo ele, alguns foram detidos nas duas operações policiais realizadas até agora. Duas pessoas já foram ouvidas, e as oitivas devem prosseguir na próxima semana.

O Ministério Público investiga agora como funcionava o fluxo de informações dentro da complexidade empresarial da Vale. Além das prisões provisórias, a operação policial desta sexta-feira apreendeu documentos na casa de quatro funcionários da Tüv Süd e na sede da Vale, no Rio de Janeiro. Com base nesses documentos, os investigadores tentam entender como a questão da segurança da Barragem I foi deliberada internamente na Vale e se as informações chegaram à alta cúpula da empresa. O promotor Leandro Wili coordenou a operação na sede da mineradora, que durou cerca de três horas. “O objetivo era colher documentos relacionados a deliberações da empresa que pudessem oferecer a discussão interna sobre a segurança da barragem”, afirma. Além de documentos físicos, a investigação se debruça sobre e-mails, mensagens voz e conversas no WhatsApp.

Outras oito barragens da Vale são alvo de ações civis públicas por risco de rompimento. Colocadas na zona de atenção em outro documento interno da mineradora, elas estão paralisadas temporariamente por decisão judicial. No entanto, apenas a Barragem I, que rompeu em Brumadinho, é investigada no âmbito criminal. A Vale tem reiterado em várias notas que nenhuma dessas barragens têm “risco iminente” de rompimento.

Redação

2 Comentários

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  1. Fator de segurança 1 não indica que uma barragem tem risco de ruptura, significa que ela vai romper.
    Explico melhor, fator de segurança 1 significa que os esforços que induzem a ruptura da barragem são do mesmo valor das forças que resistem a ruptura.
    Rigorosamente falando em termos de engenharia, fator de segurança 1 significa que não HÁ NENHUMA SEGURANÇA NA ESTRUTURA.
    Explico ainda melhor, mesmo sendo uma barragem uma estrutura estática e sendo dimensionado os esforços de ruptura e a resistência a esta ruptura por considerações estáticas, SEMPRE QUALQUER ESTRUTURA DE ENGENHARIA está sujeita a cargas dinâmicas, por exemplo, no caso de uma barragem a própria passagem sobre ela de veículos induzem vibrações, ou a chegada de uma pequena onda de cheia de um riachinho qualquer de montante, criam condições dinâmicas.
    Só para dar um exemplo de como a engenharia lida com isto. Um edifício qualquer, feito pela construtora mais vagabunda que exista, os coeficientes de segurança são maiores do que 3 (TRÊS), ou seja, multiplicado os coeficientes de segurança da própria resistência do concreto, das cargas que se supõe agir sobre a estrutura e mais alguns outros coeficiente o valor da resistência as cargas que possam surgir ultrapassam 3 (TRÊS) vezes esta carga. Em resumo, se alguém conseguir dormir com uma festa heavy no andar de cima, uma coisa pode ficar certo, se a prática da engenharia for correta, tape bem os ouvidos e durma tranquilo, pois por mais que os loucos acima pulem que nem macacos drogados, todos na mesma frequência a estrutura tem tudo para resistir.
    Voltando as barragens, utilizar um coeficiente 1,3 para uma barragem de terra com um material de reologia não conhecida, com um reservatório cheio de material de densidade variável e sem uma rigorosa inspeção periódica, pode colocar na cadeia TODOS OS ENGENHEIROS QUE ASSINARAM ISTO, independente de que tenha ou não caído, pois a pergunta que deve ser feita não é se vai cair ou não, é quando vai cair.
    Eu sou engenheiro civil e já dimensionei estruturas hidráulicas para barragens de porte médio, porém quando chega na parte da barragem de terra, este projeto é feito por um GEOTÉCNICO, que é um profissional (engenheiro ou geólogo) com ESPECIALIZAÇÃO estrito termo em GEOTÉCNICA.
    Um profissional comum, engenheiro civil, engenheiro de minas, engenheiro ambiental ou geólogo, que não tem uma especialização em geotécnica TEM HABILITAÇÃO (dependendo do curso o engenheiro ambiental nem tem habilitação) mas não tem a MÍNIMA COMPETÊNCIA para fazer projetos para estas barragens, e eu diria se algum destes profissionais sem a formação específica fazem estes projetos ou são LOUCOS ou ASSASSINOS.
    Rogério Maestri
    Engº Civil
    Mestre em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental.

  2. Barragem feita do próprio material rejeitado pela mina, em forma de areia movediça, sem a menor estrutura de segurança. Não precisa de muito estudo para entender que vai romper a qualquer momento, enquanto existir. Não precisa ser geológo para entender que esse material não vai nunca sedimentar e virar algo resistente. Ele vai derreter a qualquer momento. Cadeia em nome de Deus para todos, do Conselho Administrativo, Conselho Fiscal, Governança Administrativa até a Diretoria Executiva.

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