A classe média americana e o medo da queda. Eu disse “americana”?

Se não leu, leia. Se já leu, releia, porque o livro, editado aqui em 1994, é ainda mais sugestivo nos nossos dias.

Barbara Ehrenreich – O Medo da Queda, ed. Página Aberta, S.Paulo, 1994

Separei duas passagens para abrir o apetite do leitor. Os intertítulos são meus, não da autora.

 

O desaparecimento da classe operária… e suas consequências

 

A expressão desaparecimento da classe média, que eu, entre outros, usava para descrever as grandes mudanças dos anos 80, de alguma forma perdeu o sentido. Era a classe operária que estava desaparecendo, pelo menos em relação ao padrão médio do conforto.

Na imaginação da nova direita, a classe operária era um precioso avatar dos valores tradicionais, um baluarte humano contra a permissividade. Mas para os interesses comerciais que dominavam as mais profundas lealdades da nova direita, a classe operária americana, com seus outrora fortes sindicatos e com sua verdadeira tradição de rebeldia no local de trabalho, acabou se tornando um fardo. Logo no início dos anos 70, a elite das empresas fez tudo o que estava a seu alcance para se livrar desse fardo. Eles terceirizaram os trabalhos da fábrica, passando-os à mão-de-obra que recebia salários mais baixos e à mão-de-obra do terceiro mundo, mais fácil de intimidar. Transferiram o seu capital das indústrias para o reino do lucro fácil, da especulação financeira, ou seja, fusões de companhias, pressão na compra de ações dos sócios, deixando as fábricas e a tecnologia americana declinarem. Eles lideraram uma brutal agressão aos salários e aos padrões de vida daqueles que ainda dependiam de empregos.

Cabe relembrar que aquilo que chamamos de classe operária e de pessoas que lutam para viver aparecia na literatura relacionada aos negócios sob a denominação de despesas com mão-de-obra. O abandono da indústria pelas corporações ou o que os economistas Barry Bluestone e Bennett Harrison denominaram a desindustrialização da América destruiu violentamente a vida da classe operária. Entre 1979 e 1984, 11,5 milhões de trabalhadores americanos perderam os seus empregos devido ao fechamento ou transferências de indústrias. Apenas sessenta por cento conseguiram encontrar novos empregos e quase a metade dos novos empregos pagavam menos do que os anteriores. Um estudo concluiu que os siderúrgicos dispensados em Chicago viram a sua renda cair pela metade de US$ 22 mil para US$ 12.500 ao ano, um pouco acima do nível oficial de pobreza.

Em todo o cinturão de ferrugem, industrial da América, cidades inteiras e bairros entraram em declínio, porque as fábricas fechavam as suas portas. Havia muitos serviços alternativos no setor de prestação de serviços, como caixas de banco, atendentes de hotel, trabalhadores nas cadeias de fast food. Mas estas ocupações pagavam baixos salários, não tinham sindicatos e eram profissões que lidavam com pessoas, profissões estranhas, portanto, aos homens especializados em lidar com objetos.(pp. 244-246)

* * * * *

A classe média  e a polarização social e ideológica

 

Certamente para aquele segmento da classe média assalariada que é mais afortunado e rico, onde a renda familiar está acima dos 80 ou 90% dos americanos, o ímpeto de mudança para a esquerda é pequeno. A medida que a classe média urbana se afasta dos espaços e serviços públicos que incluem escolas, parques, transporte de massa populares, ela (204) também afasta o apoio político para os gastos públicos, voltados para o benefício da comunidade como um todo. Os casais que mandam seus filhos para escola particular, que vão para o trabalho de táxi e que têm como local de descanso Aspen ou Cancún preferirão, e é até compreensível, um corte nos impostos a uma expansão dos gastos do governo.

A classe média dos subúrbios já há muito se afastou, geograficamente e, com frequência, mentalmente, dos desafios oferecidos por um a sociedade diferenciada e desigual. Eles talvez votem num liberal democrata local, mas favorecerão os conservadores dos centros do poder nacional. Em todos os níveis, a fidelidade política está sendo progressivamente determinada pela classe. Como relata Thomas Byrne Edsall do Washington Post, o Partido Democrata tem o apoio dos dois terços de renda mais baixa, enquanto a lealdade aos republicanos se propaga, diretamente como uma função da riqueza. Os elitistas liberais e os liberais de limusine de retórica populista da direita são agora infelizmente quase tão raros quanto os republicanos nas listas da Previdência social.

Enquanto isso; a polarização de classe continua e desenvolve uma dinâmica perversa que se auto-reforça. A medida que a classe média assalariada se afasta dos serviços públicos, estes serviços perdem seus mais inflexíveis defensores e críticos. As escolas se degeneram em depósitos. Os parques ficam entregues aos traficantes de drogas. Os hospitais públicos, que há muito a classe média deixou de usar, retornam a sua antiga função que é tirar do convívio público o sem-teto, o doente mental e as doenças contagiosas. A medida que o setor público declinava pela falta de verbas e por ser vítima da corrupção dos governos municipais, declinam também as oportunidades de que os pobres e a classe operária dispunham. As barreiras educacionais requisitadas para as profissões são quase que desnecessárias, diante do grande número de aspirantes em potencial que mal conseguem ler algo além do terceiro ano primário.

Porém, se a classe média já não consegue mais enxergar os pobres abandonados, os pobres ainda podem ver a classe média. No passado, as classes mais baixas ignoravam os hábitos e os prazeres dos ricos. Os empregados eram somente os mensageiros entre as classes, trazendo para as suas casas na periferia as novidades da casa na cidade. Hoje a televisão, esta grande criadora de competição, traz para os guetos mais decrépitos vislumbres íntimos dos estilos de vida dos ricos e famosos, isso sem mencionar os que são apenas ricos. Estudando o conjunto de produtos e confortos disponíveis aparentemente para todos os pobres se tornam mais perigosos.

Não há modelo, na mídia em geral, que sugira que algo além da classe média rica possa representar uma condição honrosa e digna e nem há razão para que os anúncios das empresas possam promover tal possibilidade subversiva. Se os rapazes negros dos guetos assim como muitos brancos dos subúrbios parecem dar preferência à economia do submundo das drogas e do crime e os trabalhadores temporários se acotovelam pelo trabalho enfadonho e fixo, em troca de salário mínimo, pelo menos, foram bem educados como consumidores.

Naturalmente à medida que os pobres se tornam perigosos, viciados, irascíveis e doentes, a classe média se afasta ainda mais do contato. O melhor será fechar o parque, como alguns ricos da parte mais baixa de Manhattan argumentaram, do que se arriscar a se misturar com os que não têm outro espaço para dormir ou passar o tempo. O melhor será bloquear as ruas, como alguns moradores de Miami concluíram, do que permitir o livre acesso aos arruinados. Até mesmo as ruas de nossa cidade oferecem provavelmente menos possibilidades de ocorrência da promíscua mistura com os outros do que ofereciam no passado. Os centros de compra dos subúrbios suplantaram as áreas de compra da cidade que foram deixadas para os pobres. Os elevadores de vidro carregam a população de colarinho branco para um mundo à prova d ’àgua só deles, deixando as ruas para todas as coincidentes categorias de pobres, para a classe operária e para as pessoas de cor.

E quanto mais ficam afastados ou abandonados, os pobres passam a inspirar menos simpatia ou não conseguem despertar sequer o simples interesse humano. Assim, a nervosa e árdua ascensão financeira da classe média assalariada acelerou a espiral descendente da sociedade como um todo, em direção às amplas e cruéis desigualdades, em direção à mudança crescente nas linhas de classe e raça e em direção à anestesia moral que a mudança exige.

A classe média assalariada nasceu com a ilusão de que permanecería fora das lutas de classe, com seus salários variando entre os dos trabalhadores e os dos barões ladrões e servindo como árbitro neutro e como especialista. Mas, pelo menos, esta ilusão carregava consigo um sentido de responsabilidade, como mediar, planejar, compensar, ou em outras palavras, trabalhar para os míopes imprudentes da classe endinheirada. Hoje, nenhum sentido de missão anima a classe média. Ela, em grande número, se juntou ao problema.(para. 304-307)

Redação

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