A ida sem volta de João Gilberto

João Gilberto provavelmente não mais voltará. Escondeu-se em alguma dobra do tempo, em algum mundo auto-referenciado, de onde aguarda o momento da partida definitiva.

Nos últimos anos eram nítidos os sinais dessa ida sem volta. A síndrome do pânico, ou o nome clínico que se dê às suas vulnerabilidades, o impediram de concretizar a última turnê, a despedida triunfal. Foram dois canos nas duas últimas excursões planejadas. Espocaram críticas, dos que viam nas suas estranhezas apenas um caráter excêntrico.

Era muito mais que isso: uma questão médica para a qual não havia diagnósticos na época.

Aqui no carnaval, caminho pelos jardins ouvindo Marilu interpretar “Porque é”, de Roberto Martins e Mário Rossi. É de 1942, quando a música carioca descobria a riqueza interminável do sincopado. Marilu escande cada sílaba em cada nota, usando o contratempo inserido na composição – os mesmos recursos dos conjuntos vocais, dos extraordinários Anjos do Inferno, da dupla Joel e Gaúcho.

Foi ali que os músicos mais sofisticados foram buscar a base, o molho e, depois, fizeram a síntese. Primeiro Garoto desenvolvendo a batida inicial da bossa nova. Depois, João Gilberto, assimilando a batida de Garoto e incluindo nela o Brasil.

Nem vou discorrer sobre a sua importância.

O que me importa é o homem João Gilberto.

Tempos atrás, surgiu o boato de que João Gilberto tinha um perfil no Facebook. Em pouco tempo o perfil lotou e os seguidores ganharam durante meses preciosidades da música brasileira e internacional em vídeos do Youtube.

O perfil ganhou visibilidade em dois momentos. Primeiro, no episódio em que a Vejinha do Rio publicou uma suposta entrevista com ele. Segundo, no caso da dona do apartamento de João Gilberto pretendendo despejá-lo.

Defendi-o dos ataques que sofreu, quando negou que tivesse concedido a entrevista à Veja. Surpreendi-me quando recebi uma mensagem reservada do tal perfil, agradecendo minha defesa e insistindo que jamais havia recebido o repórter ou qualquer jornalista da revista.

Depois, no episódio do despejo, escrevi uma crônica sugerindo o “tombamento” de João Gilberto.

Ele passou a se comunicar permanentemente comigo, da maneira mais discreta possível: clicando no CURTIR quando colocava algum vídeo que o interessava. Ou pedindo socorro.

Até então, meu único contato indireto com ele foi uma crônica que escrevi na Folha, quando completou 70 anos. Seu produtor me ligou pedindo para usar a crônica na divulgação de seus shows. Provavelmente, ele nem soube dessas tratativas.No episódio Veja, vários jornais sugeriram que o perfil do FB era fake.

Fiquei com um pé atrás, para não ser pego num trote. Conversamos muitas vezes, até que apliquei o teste definitivo. No período anterior ao do lançamento do Chega de Saudade, em 1957, foi feito um conjunto de gravações caseiras de João Gilberto,. Saraus entremeados de conversas, dicas musicais, avaliações de músicos. Consegui baixar da Internet durante o meio dia que ficou disponível, colocada pelo dono da casa depois que João Gilberto decidiu não autorizar seu lançamento em CD.

Em uma das conversas, o anfitrião pergunta a João Gilberto quem seria o maior violinista brasileiro. O próprio anfitrião se incumbe de desqualificar nada menos do que Baden Powell, em início de carreira. Baden tinha cometido a audácia de acompanhar a grande Ângela Maria, pecado indesculpável para a juventude esnobe e internacionalista da zona sul do Rio.

João Gilberto não entra na discussão sobre Baden, mas indica o melhor: Jacob, violonista que conheceu em São Paulo. O anfitrião pede para que ele toque algo de Jacob e João Gilberto diz que não consegue. A harmonia era muito sofisticada para seu nível de conhecimento do instrumento.

Só havia essa menção. Joguei a informação aqui no Blog, pretendendo identificar o tal do Jacob. Um mineiro de Diamantina garantiu tratar-se de um boêmio local, que morou em São Paulo, onde conheceu Garoto, e de quem João Gilberto teria se aproximado no período em que morou com a irmã – e que, segundo o livro do Rui Castro, teria descoberto a batida. Era um “causo” mineiro apenas.

Matei a charada em um sarau na casa de Walter Appel, em São Paulo, com o pessoal da bossa nova paulista, os antigos instrumentistas dos barzinhos de jazz dos anos 60 e 70. Foi o Luiz Roberto ou o Theo de Barros que me disse que o Jacob era o Edgard Gianullo, amigo dos tempos do Bar do Alemão, músico excepcional.

Conheci Edgard levado pelo Nelsinho Risada, caixa e cavaquinho do bar, que havia participado com ele de um conjunto vocal dos anos 50.

Depois, o Serginho Leite me contou que, em Nova York, quando foi visitar a loja da Tender (o grande fabricante de violão), na parede havia quadros com os melhores guitarristas que passaram por lá. E Edgard estava lá com seu sorriso escancarado, que ilustrou vários comerciais dos anos 80.

O único ponto em comum com a hipótese Diamantina era o fato de Edgard ter convivido com Garoto e bebido na sua influência. Aliás, outro dia o Paulo Vanzolini me contou que Garoto chegou a montar um bar na Major Sertório, frequentado pela boemia musical da cidade.

Uma noite, perguntei de chofre a João Gilberto quem era o Jacob, ao qual ele se referiu na gravação. A resposta foi imediata: era um rapaz de São Paulo, por volta de 18 anos. Justamente a idade de Edgard na época.

http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/joao-gilberto-e-edgar-gianullo

Tempos depois, Danilo Caymmi também confirmou que era João no perfil.

Durante meses desenvolvemos uma conversa de poucas palavras. João escrevia colocando um ponto entre cada palavra. Assim: q.u.e.r.i.a..f.a.l.a.r..c.o.m..v.o.c.e. Ou clicava no CURTIR, quando eu fazia algum comentário em seus posts.

O que se revelou, naquela conversas reservadas, é o que qualquer pessoa de bom senso intuiria sobre suas extravagancias: uma pessoa extremamente vulnerável, sem nenhum sentido prático, indefesa ante um mundo em que havia pessoas, objetos, rotinas, contratos. Era incapaz de resolver os problemas mais comezinhos. Como trocar as cordas do violão, como me disse uma vez Raphael Rabello.

No episódio do despejo, escrevi uma coluna sugerindo o “tombamento” de João Gilberto. De noite, mandou mensagem agradecendo, indignado com a petulância da dona do apartamento, de pretender…. vistoriar seu próprio apartamento. Perguntou o que eu poderia fazer por ele. Respondi que apenas o que sabia fazer: podíamos marcar uma entrevista no Rio, filmada ou não, onde se mostraria seu lado humano e, com toda sutileza, as razões que o faziam ter tal comportamento, longe do estrelismo, perto dos problemas emocionais graves.

Topou, de início. Depois, recuou. Foi se aconselhar com Roberto Carvalho, ex-Rita Lee, que se tornara seu conselheiro mais próximo. E Roberto desaconselhou qualquer contato com a imprensa. Então, tá!

Duas vezes foi alvo de ataques virulentos de trolls. Cada ataque o deixava prostrado. No primeiro, desapareceu por vários dias. No segundo, veio pedir minha ajuda. Confessou estar apavorado e perguntou que providências poderia tomar.

Informei-me com uma procuradora conhecida, que me passou o telefone e e-mail de um local que poderia acolher a denúncia. Dias depois, pediu para esquecer. Descobriu que o ataque viera do filho de um amigo, solidário com Bebel em uma das brigas entre pai e filha.

Depois, espalhou-se que o autor do perfil, na verdade, seria seu filho Marcelo Gilberto. Não era, de fato. Se foi, pode ter sido por um período. Não naquele em que o perfil sabia o detalhe correto de uma conversa ocorrido em 1957.

Tempos depois, tentou-se a derradeira excursão. Mais uma vez João Gilberto falhou, como havia falhado algum tempo antes com duas empresarias cariocas – que depois o processariam.

Foi o último vestígio de sua presença vaga entre nós.

Para mim, ficou a lembrança de um dos últimos vídeos que postou no Facebook, a declaração apaixonada a seus dois grandes e únicos amores: a música e o Brasil. O “Canta Brasil” é uma declaração definitiva de amor.

Luis Nassif

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