Entrevista: “À indústria farmacêutica, não interessa que a psicanálise tenha boa reputação”

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Ana Laura Prates, Raul Pacheco e Luciano Elia defendem que psicanálise é ciência e debatem os interesses por trás de ataques

Há alguns dias, setores da imprensa e das redes sociais foram tomados por um debate polêmico: seria a psicanálise uma ciência ou – parafraseando o título do livro que deu origem à celeuma – uma “bobagem” que “não merece ser levada a sério”?

A provocação expressa no novo livro da microbiologista Natalia Pasternak e do jornalista Carlos Orsi, que tratam a psicanálise como “pseudociência” – no mesmo patamar da astrologia e homeopatia – entrou na pauta do programa Ouvindo Vozes, que é transmitido toda segunda-feira, às 21 horas, no canal TVGGN.

Na companhia da psicanalista, escritora e apresentadora do programa Ana Laura Prates, os psicanalistas Raul Pacheco (professor na PUC-SP) e Luciano Elia (professor na UERJ) explicaram quando e como surgiu a psicanálise com Freud, refutaram a concepção positivista e “limitada” do que é ciência, e debateram se as críticas à psicanálise podem ter relações com os interesses do grande capital – mais precisamente, da indústria farmacêutica.

A influência de Natalia Pasternak e da indústria farmacêutica

No centro de toda a polêmica está a cientista Natalia Pasternak, que ganhou projeção na mídia ao se tornar uma das principais vozes a denunciar o negacionismo científico do governo Bolsonaro e seu impacto negativo sobre as ações de enfrentamento à pandemia de Covid-19.

Além de receber prêmios e figurar em listas de pessoas influentes, Pasternak é presidente do Instituto Questão de Ciência, o “primeiro instituto brasileiro para a promoção do ceticismo e do pensamento racional, e de políticas públicas baseadas em evidências”.

Desde sua fundação em 2018, como estratégia de crescimento, o instituto passou a atuar em três frentes: “jornalismo, educação e advocacy – que é a prática de influenciar a tomada de decisões e a destinação de verbas por legisladores e outras autoridades”. 

Para o psicanalista Raul Pacheco, ao tratar a psicanálise como uma “falsa ciência” ou uma prática sem resultados comprovados cientificamente, o livro de Pasternak e Orsi favorece, mesmo que indiretamente, os interesses da indústria farmacêutica.

“A psicanálise interessa muito pouco ao desenvolvimento capitalista”, disparou Raul Pacheco.

Na opinião de Pacheco, a indústria farmacêutica faz fortuna justamente em cima da ideia de que o ser humano é um organismo que precisa ser medicado para ser curado, como se fosse a única terapia com resultados reais fosse a medicamentosa.

“A indústria farmacêutica move um trilhão de dólares no mundo e é uma indústria poderosa. Tem todo o interesse numa forma radicalmente organicista de ver o ser humano, reduzindo o ser humano ao organismo. (…) Nós, psicanalistas, é que cuidamos daquilo que diz respeito não apenas ao organismo, mas ao sujeito, ao sujeito do inconsciente, ao sujeito falante. (…) Em se tratando de como tratar o ser humano em seus transtornos, seus sofrimentos, sua angústias e depressões, não somos aliados [da indústria farmacêutica]”, argumentou Pacheco.

Psicanálise é ciência?

Para o psicanalista Luciano Elia, o livro de Orsi e Pasternak contém críticas “absurdas” à psicanálise, que devem ser “rechaçadas”. Ele frisou, porém, que o cerne da questão está em definir o que é ciência – e quem pode defini-la.

“Galileu [Galilei] deu as coordenadas do que é ciência [moderna] num patamar do qual a psicanálise está muito próxima. Ataques [à psicanálise] não são sérios nem epistemologicamente, nem filosoficamente, nem cientificamente. A psicanálise, no campo das chamadas ciências humanas e sociais, é o campo mais científico de todos esses, porque é o que mais se aproxima das coordenadas galileanas”, defendeu Elia.

“É preciso entender que a ciência não pode se reduzir ao campo das ciências naturais”, disse Luciano Elia.

Ainda na visão de Elia, “quando a ciência rompe com a filosofia, ela se torna patológica. Esse livro é fruto do rechaço de uma verdade histórica, que é a relação de derivação da ciência em relação à filosofia”.

O psicanalista Raul Pacheco concordou com a análise de Elia, e acrescentou que “falar em ciência, no singular, já é tomar partido sobre o que é ciência. Só teriam direito em falar em ciência no singular os positivistas, que acreditam que há método único para qualquer campo científico. (…) Nós [psicanalistas] acreditamos em outra concepção de ciência. Cada campo funda seus próprios princípios, que balizam sua maneira de fazer ciência. Essa é a concepção não positivista e, por isso, temos de falar de ciências no plural.”

Elia finalizou sua participação no debate com um recado para a comunidade de psicanalistas. “A gente precisa afirmar a pertinência da psicanálise no campo científico, e não tratar a ciência com certo desprezo.”

SOBRE O PROGRAMA

O OUVINDO VOZES é apresentado pela psicanalista e escritora Ana Laura Prates, colunista do Jornal GGN. O programa é transmitido ao vivo, toda segunda-feira, sempre às 21 horas. Clique aqui e confira os episódios anteriores.

Assista ao programa sobre psicanálise e ciência abaixo:

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

9 Comentários

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  1. [Parte 1, devido a nova censura do Cloudfare]

    Evidências, ou apenas os espantalhos ideológicos e conspiracionistas de sempre contra os críticos? Se um terraplanista alegar que sua teoria é perseguida por interesses comerciais, pelo capitalismo globalizado, validada fica? Cabe tudo sob o manto da teoria crítica, adotada como tábua de salvação por náufragos epistemológicos? Ou mesmo do relativismo pós-modernista, que se vale da imprecisão da linguagem natural para fazer uma geleia geral de conceitos?

  2. [Parte 2, devido a nova censura do Cloudfare]

    No que a psicanálise difere então do design inteligente e do geocentrismo (não de Galileu, mas de Ptolomeu, claro, uma comparação mais adequada a Freud e seus sucessores) como hermenêutica da realidade? Seriam esses, pois, “ciências”? Se basta fazer sentido, dispensado o cotejo a posteriori, vira uma questão de crença. Se a razão é nossa melhor régua para validar uma teoria, não a verificação empírica, física quântica e relatividade são aberrações cognitivas que precisam ser substituídas já por explicações mais palatáveis.

  3. [Parte 3, devido a nova censura do Cloudfare]

    Mais digno seria afirmar talvez que a psicanálise teoriza sobre uma dimensão inacessível à ciência (“materialista”, se quiserem adjetivar), igualmente filha da filosofia mas que com ela não se confunde, recepcionando os argumentos de Karl Popper. Uma hermenêutica da mente. Mas compará-la simplesmente às humanidades (também designadas por “ciências” humanas, no plural, assim como em “ciências naturais”, em razão da polissemia do termo, também utilizado como metonímia em relação a seus objetos) também é inadequado, pois também nessa seara há ciência, fundamentada em método iterativo e produção de evidências empíricas (ainda que sem a possibilidade de confinar seu objeto em um laboratório), e “ciência”, discurso ideológico solene e pseudocientífico.

  4. [Parte 4, devido a nova censura do Cloudfare]

    Ficamos aguardando, de todo modo, também uma entrevista do GGN com Natália Pasternak e Carlos Orsi sobre o livro, para que possamos ouvir suas ideias diretamente, sem reinterpretações por intermediários. Ou quiçá um debate aberto, um escrutínio recíproco de argumentos, como é o mais comum no meio científico.

  5. O método CIENTÍFICO e outras bobagens:
    “Infelizmente, a ciência nunca é preto no branco e a confusão é fácil de acontecer – mesmo para cientistas treinados. A fortificação de nosso suprimento de alimentos com ácido fólico em 1998 reduziu os defeitos congênitos da espinha bífida em 19 por cento. Uma coisa boa. Mas, de acordo com algumas estimativas, pode ter causado 15.000 mortes adicionais por câncer por ano.”
    As vitaminas naturais, por exemplo se você comer 80 laranjas seu corpo absorve a vitamina C que precisa e descarta o resto sem problemas. Agora com algumas vitaminas CIENTÍFICAMENTE desenvolvidas seu corpo não consegue descartar o excesso tão facilmente e aí problema de saúde a vista.
    Esse exemplo (existe um monte como a Talidomida, a suspeita da criação da Aids pelo desenvolvimento da vacina anti-pólio usando rim de grandes símios como substrato) seria só pra lembrar que provavelmente (porque não li e não vou ler o livro, só vi algumas referências) tudo o que ela disse do que ela chamou de bobagens pode ser dito do seu método cientifico.

  6. O texto é completamente falacioso.
    A Psicanálise não é a única abordagem dentro da Psicologia, tampouco a única não empregar tratamento medicamentoso. Logo, criticar a psicanálise não é, de modo algum, ser favorável à indústria farmacêutica.

    Tivemos revoluções científicas em todos os campos da ciência e, com o passar do tempo, deixamos de lado práticas que não se mostraram eficazes diante do escrutínio imposto pelo método científico. Dentro da psicologia há abordagens mais alinhadas com o que há de mais atual no que diz respeito ao nosso conhecimento sobre o funcionamento da mente humana.

    Não cabe aos psicólogos psicanalistas criarem um conceito de ciência para si. Deixemos os filósofos da ciência, com uma visão mais abrangente e interdisciplinar cuidar disso.

    Pensemos na epidemia de covid e como a ciência por trás das vacinas e das tecnologias que permitiram o desenvolvimento das mesmas nos salvou. A pseudociência nos levaria à cloroquina, ivermectina e imunidade de rebanho (esta última nos levaria, dada a taxa de letalidade da covid no Brasil, a mais de 2 milhões de mortes).

    Concluindo, mesmo que vc não queira se tratar com remédios, existem alternativas científicas dentro da Psicologia.

  7. As únicas ciências que merecem tal nome, em minha opinião, são aquelas que demonstram o que afirmam ou postulam, por evidência empírica, seja natural ou experimental; e é curioso que os psicanalistas rotulem tal atitude de positivista, com evidente intenção pejorativa, pelo que esta visão filosófica tem de reducionista ou simplesmente míope (apesar de ter sido, outrora, influente o suficiente para fazer nascer uma república, ao lado de outro pária notório e proscrito pelos intelectuais como assunto secundário e inútil, a maçonaria), ressuscitando argumentos característicos que foram usados exaustivamente contra a própria psicanálise, quando esta ainda lutava para alcançar status e ser ensinada como parte da ciência médica, e enfrentava severa oposição, e não apenas por intelectuais considerados positivistas, ou próximos desta filosofia. Como se diz, no dos outros é refresco. Também é curioso que levantem suspeitas quanto às motivações de quem nega status de ciência à psicanálise, atribuindo a estes razões econômicas ou interesse financeiro; não há muito tempo, durante a pandemia, os bolsonaristas – como se sabe, verdadeiros e indiscutíveis amigos da Ciência, do Conhecimento, e da Verdade) atribuíam à “histeria” da vacina as mesmas razões, ou seja, o interesse da trilionária Indústria Farmacêutica e seu lobby (que só possui equivalente na Indústria Bélica, ambas com vinculações com a Indústria Química) em vender seus produtos. Bela companhia para os nossos psicanalistas. Ora, argumentos são argumentos, nada mais que argumentos. Contanto que sirvam aos nossos propósitos e conveniências, vale tudo. Usar o que foi assacado contra nós, e cerrar fileiras ao lado de quem outrora posa ter sido um inimigo ou detrator, também. Freud foi honesto o suficiente para admitir essa firula, em “Moisés e o Monoteísmo”. Resta a indagação: por que o GGN ainda não concedeu o mesmo espaço ao jornalista e a microbiologista? Não estão sendo, da mesma forma, ridicularizados por suas ideias, e tornados suspeitos quanto às suas motivações?

    1. A neurociência ou as TCCs curam bipolaridade ou esquizofrenia? Em quanto tempo? Menos, menos! Estamos na idade da pedra en relação à compreensão da mente humana. Como funciona o cérebro? Como armazena memórias e sensações? Como moléculas e conexão entre neurônios aprendem? Remédios alteram comportamentos, provocam saída de depressão, alegria, etc. Desde a invenção do vinho e do uso da coca e chás e maconha sabemos disso. Usamos método empírico de tentativa e erro. Ok. A psicanalise não seria uma ciência (um saber). Mas as TCCs e a neurociência são? A mente humana é o maior problema (cientificamente falando) da ciência. Commpreende-la e ser capaz de fazer “curar”. Curar do q?

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