A sabotagem ao Papa por bispos conservadores, por J. Carlos de Assis

Documento sobre questões monetárias é libelo devastador sobre a forma como o sistema financeiro neoliberal está escravizando o mundo

Por J. Carlos de Assis

Nasci num ambiente católico mas não sou praticante. Entretanto, nos anos recentes, desenvolvi profunda simpatia em relação ao Papa Francisco pelo seu compromisso inarredável com os pobres e desassistidos. Todas as pessoas preocupadas com a justiça social, em todas as suas dimensões, e em especial na dimensão política, tem no Papa Francisco o líder mundial mais eminente da atualidade. Ele trouxe a Igreja Católica a uma posição moral que não se compara à posição de nenhum dos seus predecessores na era moderna.

Pois bem, o Papa aprovou e mandou divulgar um documento sobre questões monetárias sob o título de “Considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro”. Enganam-se os que pensam tratar-se apenas de uma abordagem moral. É um libelo devastador, absolutamente fundamentado em análises técnicas, sobre a forma como o sistema financeiro neoliberal está escravizando o mundo e promovendo uma das maiores concentrações de renda da história do capitalismo.

Acontece que a forma abrangente como Mamon, o deus dinheiro, passou a dominar o mundo nas últimas décadas não obedece fronteiras, sequer fronteiras religiosas. A maioria do bispado brasileiro, francamente de direita, ignorou o documento do Papa e está literalmente  sabotando a sua difusão no país. Dada sua extrema importância, era natural que todas as dioceses promovessem seminários e cursos sobre ele para orientar seus fiéis sobre o posicionamento político que precisam ter diante da praga da financeirização. E convocassem para dar aulas professores que não sejam do mercado, mas que falam no interesse comum e não no interesse de suas carteiras, como é o caso da maioria da imprensa econômica.

Quero explicar esse conceito, numa linguagem menos formal que a do documento. Darei três exemplos, um da bancarização dos pobres, outra da financeirização das receitas públicas estaduais, outro da chamada securitização de créditos públicos. O que chamam de bancarização dos pobres é, por exemplo, o empréstimo consignado. Como todo mundo sabe, é um empréstimo sem risco para o banco pois as prestações correspondentes são descontadas em folha. Os juros, dependendo do prazo, podem chegar a 40% ou mais de um salário.

O apelo para o tomador de um empréstimo consignado é a taxa de juros aparentemente baixa. É que os juros de mercado são um assalto. Quando se compara a altura do Corcovado com o pico do Everest, o Corcovado parece baixo. Contudo, quando observado isoladamente, é um gigante. O efeito da financeirização é pôr o pobre para rodar na ciranda financeira. O pagamento das prestações precede a qualquer outro débito do tomador, impedindo atrasos, inclusive os indispensáveis para pagar despesas imprevistas.

Já a financeirização de parte das receitas públicas estaduais foi um expediente inventado no fim dos anos 90. Trata-se da imposição aos Estados, pela União, de uma dívida paga anteriormente pela totalidade dos contribuintes. Com isso estão sendo saqueadas as receitas públicas estaduais a fim de enterrar o resultado do roubo, em forma de superávit primário, na ciranda financeira da dívida pública. Fiz um  livro, “Acerto de Contas”, onde provo que a maior parte dessa dívida é nula, o que. espero venha a ser  base de um conflito federativo na hora oportuna, já que a maioria dos Estados literalmente faliu.

Para se ter uma idéia das dimensões dessa dívida, ela se elevava a R$ 111 bilhões em fins de 1997, quando foi consolidada como dívida dos Estados em bancos privados e paga com títulos públicos. Se foi paga com títulos públicos, não tinha porque ser ilegalmente repassada para trás aos Estados porque os títulos públicos (ou mesma a moeda) são passivos de toda a sociedade, inclusive dos contribuintes estaduais. O resultado, porém, é que os Estados haviam pago à União, até fins de 2016, nada menos que R$ 277 bilhões em prestações sucessivas. E restam a pagar, contabilizando juros extorsivos, R$ 497 bilhões! É um esbulho.

É claro que não há nenhuma razão individual, maior que esta, para a degradação dos serviços públicos estaduais de saúde, educação e segurança, funções principais dos Estados. Note-se que as prestações são cumulativas. Cada uma delas representa uma espécie de desinvestimento anual nesses setores, carreando os recursos correspondentes para o Tesouro federal fazer superávit primário, com um tremendo efeito contracionista na economia. Como disse, trata-se da financeirização das receitas públicas estaduais, já que do superávit primário queimado na dívida pública, como do inferno, nada volta para girar a economia.

Este ano o tema da Campanha da Fraternidade da Igreja são os “serviços públicos”. Seria importante que, ao longo dessa campanha, serviços públicos decentes fossem percebidos como efeito de finanças estaduais saudáveis, e que é virtualmente impossível ter finanças saudáveis sem resolver a questão da dívida dos Estados. Do contrário, a campanha será inútil: uma ladainha de lamentações sobre o estado da saúde pública, da educação e da segurança públicas, sem qualquer menção às causas. Não seria o caso de os bispos, conservadores ou progressistas, explicarem a suas ovelhas, como Papa Francisco, a razão da degradação desses serviços e os meios de superá-la?

Talvez o mais descarado instrumento de financeirização da economia brasileira seja o projeto da chamada “securitização” de débitos públicos. É um acinte, que vem sendo tentado no Congresso há  dois anos e que agora, segundo o técnico Paulo Lindsay, da Auditoria da Dívida, entrou como jabuti em cima de árvore na proposta de reforma da Previdência. Em resumo, o projeto cria o que chama de “empresas financeiras independentes” às quais são repassados créditos públicos já negociados, líquidos e certos, com imensos descontos. Volta-se assim ao tempo do cobrador privado de impostos, com a diferença de que, no caso da chamada empresa independente, trata-se de créditos líquidos e certos a receber pelos entes públicos, praticamente e praticamente doados a financeiras privadas.

Estrangulados em suas receitas pela contração da economia, alguns Estados e municípios entraram na onda da empresa independente na esperança de arranjar algum dinheiro agora, mesmo que seja uma fração dos seus créditos, abrindo mão da parte do leão dos futuros recebimentos. Nesse caso, é a financeirização de créditos públicos da forma mais abjeta, já que o contribuinte estadual, municipal e dos fundos federais devidos, e em processo de pagamento negociado, estará repassando dinheiro diretamente a financeiras privadas.

É claro que esses exemplos são uma pálida amostra da financeirização à brasileira. Aqui o problema ainda é mais grave que no resto do mundo porque o coração da financeirização é a atuação do próprio Banco Central, na forma como estabelece no Copom a taxa básica de juros e gere a dívida pública. Também diferente do resto do mundo, o Tesouro atua na ponta contracionista da economia ao forçar a realização de superávits primários – situação que não se altera quando há, como agora, déficit nominal devido a queda generalizada da receita por causa da situação da economia e porque juros e amortizações não se transformam em investimento público produtivo.

O fato é que, subordinados ao processo de financeirização, os setores públicos estaduais e federal atuam na mesma linha de contrair a economia, em ajuste fiscal permanente. Não admira que as receitas tributárias, nos dois planos, estejam despencando, pois necessariamente acompanham a recessão. Só os idiotas e os que estão de longe – idiotas ou não, como os formuladores do FMI e do Banco Mundial – prevêem uma recuperação da economia neste ano. A meu ver, dadas as medidas tomadas e indicadas, será nova contração, seguindo os 8% acumulados de desastre do PIB na era Temer.

Mas voltemos ao Papa Francisco e seu libelo contra a financeirização, diante do qual o episcopado brasileiro apresenta  um comportamento estranhamente indiferente. Não sei se se trata de desconhecimento da realidade ou de submissão a assessores que carregam a marca de Caim do neoliberalismo. Entretanto, ou eles acordam e ajudam a promover a superação das manipulações da grande imprensa e de parte da academia nesse terreno, ou a Igreja, na  sua parte moral e ética, se tornará irrelevante.  A questão da pedofilia abalou a vida eclesiástica, mas está sendo tratado a ferro e fogo por Francisco, que assim honra a Igreja. Mas em linha semelhante de crítica ele colocou a subordinação a Mamon. Do meu ponto de vista, tendo em vista suas repercussões no destino material e espiritual da humanidade, a mamonfilia, dentro da Igreja, é um cancro tão terrível como a pedofilia.

Luis Nassif

14 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Gostei deste artigo. Também creio que o papa Francisco está tentando fazer um bom trabalho – uma espécie de recatolicização da Igreja, em moldes mais cristãos.
    Quanto à financeirização do Brasil, os fatos apontados são de surpreender muito. Mas são consistentes com a meta dos (poucos, pouquíssimos) ricos, que consiste em se apropriar de tudo que se refira a país, de modo que aos pobres restará as valas, a fome, a miséria.

  2. Nunca é demais lembrar que o senhor José Carlos de Assis, autor do artigo, apoiou a candidatura do atual Prefeito Universal do Reino de Deus da Muy Sofrida Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, o então senador Marcelo Crivella, sobrinho do salafrário Edir Macedo, APÓS a traição do golpe contra a presidente constitucional Dilma Rousseff.
    Portanto, indiretamente, o senhor José Calos de Assis APOIOU o Golpe de 2016.
    Isso deve ficar claro aos leitores que não moram na Muy Sofrida Cidade de São Sebastião.

    1. Fui checar a informação e vi que ele, em companhia de Carlos Lessa, formou o time que ajudou Crivella a montar seu plano de governo.
      Sobre João C Assis não tenho o que falar, não o conheço além dos comentários que faz aqui, no GGN. Sobre o comentário também não tenho o que dizer, além de concordar com o que expôs.
      O problema com pessoas é que de fato não as conhecemos. Aliar-se a Crivella não o recomenda como tal. Nem estar próximo a Carlos Lessa. Aprendi o be-a- bá de Economia no livro deste, Introdução à Economia. Conheci-o de perto como presidente do BNDES. A impressão que deixou-me foi de um deslumbrado, sem a menor noção da relevância do instituição. Um babaca (para parafrasear outro).
      tirando pelas companhias deve ser um tralha.

  3. apropriar-se da receita dos portos, pedágios e impostos diversos do Estado não é uma pulsão moderna, exclusiva dos credores da Grécia de 2010 ou dos grandes grupos privados do Brasil contemporâneo. na França pré-Revolução, mediante antecipação ao Estado de um montante fixo, foi possível a capitalistas poderosos -a exemplo do que costumavam fazer seus pares na Roma Imperial- tornarem-se agentes da Fazenda (‘férmiers-généraux’) habilitados a coletar, “com voracidade eficaz” (id.), os impostos cobrados a cidadãos, comerciantes e industriais do reino.

    ‘lobby’ não é somente a atividade manhosa que consagrou Andrew Carnegie, J.D. Rockefeller, J. Gould e J.P. Morgan, os “barões ladrões” da América do final do século XIX e início do XX. é, também, a ação dissimulada exercida, poderosamente, sobre corações e mentes ofuscados com as luzes da ribalta sobre eles, temporária e propositadamente, acesas.
    o modo mais fácil de ‘balcanizar’ o Brasil. partilhar o butim.
    https://passalidadesatuais.blogspot.com/2017/12/piratas-da-belindia.html

  4. Não sei nem quem é o José Carlos de Assis, mas o artigo é muito interessante, e acho que tá na hora de mais reflexão e menos arenga. Já encaminhei para o grupo da Igreja que pertenço para procurarmos mais informações sobre o artigo e promover um estudo sobre isso.

  5. Nilo Sobral RamosAgora mesmo ·
    Concordando e agradecendo ao sempre lúcido e compromissado autor: Vivas e aleluias ao Papa Francisco!!! Chamamento e diálogo por uma cultura de paz, às nossas paróquias,dioceses e demais Igrejas e credos

  6. Caramba!!!! Que novidade incrível!!! Será que agora, porque o Papa falou, a esquerda (materialista/atéia) vai se insurgir contra o sistema financeiro internacional? Será que vão fechar as portas para as pautas identitárias (cavalo de troia do sistema) e realmente se unir na luta contra o globalismo?

    1. Alô, redação!
      Cuidado com essa bobajada “antiglobalista”!
      Esses imbecis não se dão conta de que o tal “globalismo” se iniciou na era das grandes navegações e acordaram no ano passado, quase seiscentos anos depois.
      Não permitam que essa gente confusa, sem noção, perdida, teleguiada, sem eira nem beira intelectual, se crie no GGN.
      Isso é uma praga que deve ser extirpada no início.
      Se permitir um deles, rapidamente aparecem os demais.
      Limem esses caras sem perdão!

  7. Texto muito interessante, que merece mais leituras e divulgação, pois demonstra um posicionamento francamente progressista em relação à leitura do contexto que envolve o papa e a igreja católica e religiosos brasileiros.

  8. Que tal pesquisar nos sites de busca na internet o seguinte título: As Sociedades Secretas e Seu Poder no Século XX?? No século XX porque quem escreveu, escreveu no século XX. Mas, o que está escrito lá, é a realidade que vivenciamos tanto no século passado como no atual, sem tirar nem por.

  9. Está na hora de nós Católicos repensarmos em um Papa sem passado político, não é justo ele receber o Comunista Chico Buarque, mandar saudação de apoio e pedido de oração para outro Comunista Lula, se ele realmente estivesse pensado em cristãos e miséria, deveria criticar duramente outro Comunista Maduro, para liberar a entrada de alimentos na Venezuela, ou seja, quedou silente, resumindo, ele aparenta ser esquerdista de carteirinha ” se vc quiser ser ler sobre Mário Bergolio na época da ditadura Argentina” é so digitar no Google, aí vc vai entender porque ele não fala mal do Lula, Maduro, família Castro de Cuba.

    1. Que festival de imbecilidades, hem!
      Tenha santa paciência! Não sei onde se aprende tanta bobagem!
      Onde está se formando essa gente???!!! Não junta lé com cré!!!
      Aqui, não! Vão pousar em outras praças!
      Xô, cai fora!

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador