A VIOLÊNCIA

A VIOLÊNCIA

1. Ontem escrevi minhas primeiras impressões de longe e tão perto sobre o movimento pela queda dos aumentos das passagens dos transportes públicos na capitais brasileiras. O movimento, nesse sentido, obteve a sua principal reivindicação pois os aumentos foram, na maioria dos casos, revogados. O meu artigo tinha como objetivo chamar atenção para os perigos de fascistização presentes. Para isso eu tinha recuperado um prefácio de Foucault para um livro (O Anti-Édipo) de Deleuze e Guattari.

2. Ontem foi dia de novas mobilizações. Maiores e em mais cidades. Como disse antes mais do que uma questão presencial, como Marina Silva tinha apontado, era uma questão existencial, vivencial. Citei um trecho de uma canção de Caetano, Pecado original, onde se repete uma frase de Waldick Soriano (eu não sou cachorro, não!) e que contém um verso muito belo: “a gente não sabe o lugar certo onde colocar o desejo”. É o que, parece, está acontecendo.

3. Ontem, em Ribeirão Preto, um rapaz de 18 anos foi atropelado por uma Jeep Land e morreu. Ontem, um grupo de militantes do PT, da CUT, dos movimento sociais foi hostilizado e impedido de participar à passeata de São Paulo. Ontem, em Brasília, manifestantes invadiram o Palácio dos Arcos, sede do Ministério das Relações Exteriores, e pixaram as paredes da obra prima de Niemeyer, atearam fogo. Tereza Cruvinel publica hoje em sua coluna o lindo poema de Kaváfis, à espera dos bárbaros, que a tantos amigos recomendei nos inícios dos anos oitenta, quando, jovens artistas de Taguatinga/DF, nos autodenominávamos “a Barbárie”.

4. Morte, intimidação anti-democrática, depredação, barbárie. A questão que emerge com toda a sua força é a violência, de onde vem, quem a faz e a quem serve ou pode servir. Tenho que recorrer à primeira parte do ensaio de José A. Garriga Zucal, Violencia: un concepto difícil de asir, publicado na revista AntroPolítica n° 29, no segundo semestre 2010, Niterói.

5. O primeiro passo rumo a uma escalada da violência (cassetetes, balas de borracha, spray de pimenta, lacrimogênios) foi dado pelo aparato policial do Governo do Estado de São Paulo, aplaudido e justificado por vários orgãos da imprensa, repudiado veemente nas redes sociais e por colunistas importantes como Jânio de Freitas e Paulo Moreira Leite. A partir desse ato de violência institucionalizada, o movimento cresceu exponencialmente como reação à covardia dos chefes da PM paulista e à irresponsabilidade de comentaristas como Reinaldo Azevedo, que utilizou como argumento um polêmico artigo de Pasolini dos anos sessenta. Poderíamos chamar essa inventiva de Reinaldo Azevedo a segunda morte de Pier Paolo Pasolini. O grande poeta friulano não merecia esta violência póstuma.

6. A partir da violência institucional que se autojustifica na legalidade mas que não pode ser considerada de modo algum legítima, partes ativas dos manifestantes tentaram legitimar a própria raiva, os próprios desejos de mudança, de repúdio à corrupção, através de atos agressivos (carros queimados, portões arrombados, invasões de prédios públicos). Mostraram uma identidade equívoca e equivocada. Uma identidade legítima já tinha aparecido, mesmo que dispersa, nos cartazes que cada um trouxera de casa. Esta identidade revogou os aumentos e colocou na ordem do dia a participação política real dos jovens e outras questões, como os gastos exorbitantes da Copa.

7. Descobrem-se os fios do poder onde cada lado disputa o significado do que é ser ou não violento. Partindo do fato que ninguém aceita ser definido violento e visto como ilegítimo, a classificação de pessoas e ações como violentas estigmatiza e pode atuar como forma de controle social. Essa estigmatização do movimento como violento, vândalo e bárbaro (desculpe-me, Tereza) e do governo central como repressor e corrupto é a grande ficha que os setores mais retrógrados estão apostando, refluindo da posição inicial de “pau na negrada” (Jabor e Merval), para “não somos contra todos, somos anti-PT” (desculpe-me, Margrit). A brecha por onde pode passar a fascistização abre-se neste interstício entre estigmatização e chamada à ordem. Fecha-se a porta da liberdade, abre-se a porteira da repressão.

8. O movimento deve escapar da tentação dos jovens malhados e machistas que depredam, agridem e não organizam horizontal e concretamente as reivindicações. . O ser radical não se mostra queimando o Itamaraty. A direção do movimento deve repudiar esses atos agressivos Com esses atos o que se faz é verticalizar as aspirações legítimas, amainando a bandeira onírica e libertária e substituindo-a com a amarga tirania das nossas vidas quotidianas e reprimidas. Afastam a irreverência, a alegria, a ironia e trazem à tona os piores instintos fascistóides. Esta ala agressiva ou servirá como massa de manobra a interesses contrários aos do movimento, ou tornará à casa envelhecida, entristecida, sem nenhuma identidade. Perderão e perderemos todos a oportunidade de mudar para melhor.

9. O governo central deve fugir do canto das sereias conservadoras repressivas fora e dentro das instituições, deve abrir-se a uma firme e concreta posição de diálogo, verificando pontualmente a atendibilidade de cada pleito. A firmeza dialógica e uma autocrítica sincera são a única verdadeira tática para limitar os danos da surdez política que se instalou, nos últimos tempos, nos palácios. Sem elas, corre-se o sério risco de prejudicar uma estratégia de inclusão social e democrática que vem antes mesmo do governo Lula. Corre-se o risco de dar mole aos verdadeiros bandidos e seus agourentos porta-vozes, que não esperam por outra coisa.

10. Por fim. Nos meus tempos de estudante em greve ou lutando pela anistia e pelas liberdades democráticas, os deputados comprometidos com essas bandeiras iam às manifestações, dialogavam, traziam e levavam notícias, defendiam e denunciavam, enfim, participavam ativamente. Aonde estão os deputados do PT, do PcdoB, do PSOL, do PSB? Aonde estão os deputados em geral? Representar o povo não é carimbar o ponto, levantar a mão em votação, receber o contracheque, pedir voto. É ir aonde o povo estiver, quando o povo necessitar. Acordem, por favor!

Nenè Ribeiro, Milão, 21 de junho de 2013

PS. Enquanto escrevia, senti mover a mesa. Um terremoto, 5,2 da escala Richter no centro norte da Itália. Como se diz aqui: speriamo in bene. Aqui e aí. NN

Redação

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