Anne Boyer é uma escritora, poeta, ensaísta contemporânea e agora ex-editora de poesia do The New York Times Magazine, suplemento que circula incluído na edição dominical do jornal The New York Times. Ela pediu demissão na semana passada.
Na carta em que alega a razão para o ato não tão intempestivo assim, mais adiante saberemos o porquê da atitude ser previsível, Boyer se referiu à linguagem “suavizada” e com “eufemismos macabros”, empregada pelo jornal a qual trabalhava, e de uma maneira mais ampla a todos os outros, para tratar do massacre perpetrado pelo Estado de Israel contra o povo palestino na Faixa de Gaza.
“Não posso escrever sobre poesia no tom “razoável” daqueles que pretendem nos acostumar a esse sofrimento irracional. Chega de eufemismos macabros. Chega de paisagens infernais higienizadas verbalmente. Chega de mentiras belicistas”, escreveu a poetisa e escritora.
Boyer entende que “como o nosso status quo é a autoexpressão, por vezes o modo mais eficaz de protesto para os artistas é recusar”. E ela recusou. Assim, expôs a maneira desequilibrada como os grandes veículos de imprensa do Ocidente cobrem o conflito no Oriente Médio.
“A guerra do Estado de Israel apoiada pelos Estados Unidos (EUA) contra o povo de Gaza não é uma guerra para ninguém. Não há segurança nele ou fora dele, nem para Israel, nem para os EUA ou a Europa, e especialmente não para os muitos povos judeus caluniados por aqueles que afirmam falsamente lutar em seus nomes. O seu único lucro é o lucro mortal dos interesses petrolíferos e dos fabricantes de armas”, assim Boyer abre a sua carta de demissão.
Carta é quase um manifesto
Para ela, “o mundo, o futuro, os nossos corações – tudo fica menor e mais difícil com esta guerra. Não é apenas uma guerra de mísseis e invasões terrestres. É uma guerra contínua contra o povo da Palestina, pessoas que resistiram durante décadas de ocupação, deslocação forçada, privação, vigilância, cerco, prisão e tortura”.
A missiva de Boyer é uma espécie de manifesto e se junta a outras vozes do jornalismo e da literatura que denunciam o que ocorre com a imprensa do Ocidente na cobertura da ofensiva de Israel contra a Faixa de Gaza, iniciada em 7 de outubro em resposta desproporcional aos ataques do Hamas.
Jonathan Cook é um escritor britânico e jornalista freelance baseado em Nazaré, Israel, que cobre os conflitos entre israelenses e palestinos há muitos anos. Em sua opinião, a mídia ocidental se comporta como “assessoria de imprensa” de Israel e dos Estados Unidos.
“Se esta demissão deixa nas notícias um buraco do tamanho da poesia, então essa é a verdadeira forma do presente”, vaticinou Boyer ao encerrar sua carta sucinta e direta.
Ativismo e engajamento
O nome Anne Boyer é bastante conhecido nos meios literários pela escrita que já foi, recentemente, vencedora de um Pulitzer, prêmio outorgado a pessoas que realizam trabalhos na área do jornalismo, literatura e composição musical, administrado pela Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque.
Sua obra abrange uma variedade de temas, incluindo política, feminismo, doenças e capitalismo. Boyer recebeu o Pulitzer de Não Ficção em 2020 por seu livro The Undying: Pain, Vulnerability, Mortality, Medicine, Art, Time, Dreams, Data, Exhaustion, Cancer, and Care (sem tradução para o português).
Este livro é um relato pessoal e reflexivo de sua experiência com o câncer de mama. Além de seu trabalho literário, Anne Boyer também é conhecida por seu ativismo e por seu engajamento em questões sociais e políticas – o que nos faz pensar que sua atitude pelo pedido de demissão não foi de maneira intempestiva, mas resultado de uma conduta pessoal anterior.
De uma maneira geral, os livros e a poesia de Boyer frequentemente exploram as interseções entre a vida pessoal e as forças sociais mais amplas que moldam a experiência humana.
Câncer de mama: misérias e grandezas da vida
A escrita de Boyer é aterrada e recebe descargas elétricas da própria vida. Uma semana depois de completar 41 anos, ela foi diagnosticada com um câncer de mama agressivo. Teria de iniciar um tratamento tão agressivo quanto.
Como mãe solteira, habituada a viver o dia a dia a prodigar cuidados antes de recebê-los, a enfermidade supôs uma crise, o medo da morte e de não cuidar mais de sua cria, mas para a escritora se tornou um ponto de partida para recapacitar a mortalidade e as políticas de gênero relacionadas à saúde.
Assim nasce The Undying (desmorrer, em tradução livre): uma reflexão sobre a enfermidade no mundo capitalista a partir de memórias que, enquanto gênero, se rebela contra o memorístico, ou o mero relato pessoal que se põe limitado ao indivíduo.
Resumindo a longa lista de autores que escreveram sobre a própria doença, até mesmo sobre sua morte, como Audre Lorde, Kathy Acker e Susan Sontag, Boyer reflete com fúria, brilho e clareza sobre a enfermidade e a saúde em nossa sociedade.
Ela aborda temas como a experiência corporal e mental da dor, a proliferação de charlatões e oportunistas, o abuso das farmacêuticas, o cinismo político no debate de saúde pública versus privada, e, em definitivo, a hipocrisia que envolve a indústria da saúde em nosso mundo.
As misérias e as grandezas da vida contemporânea estão no centro da literatura de Boyer. Nestes últimos quase dois meses, a miséria imposta pelo Estado de Israel contra a população civil da Faixa de Gaza e da Cisjordânia só é sobreposta pela grandeza do povo palestino, que resiste. O pedido de demissão de Boyer é, portanto, a reafirmação do compromisso existencial e político que a move.
LEIA MAIS:
Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.