Jornal GGN – O 16º episódio do programa CAI NA RODA recebe uma das mais relevantes cientistas brasileiras, a geneticista Lygia da Veiga Pereira, professora titular, chefe do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias e também do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da USP.
Lygia foi uma das responsáveis pela primeira linha brasileira de células tronco embrionárias desenvolvidas in vitro. Agora, entre outras responsabilidades, ela coordena outro trabalho pioneiro, que insere o Brasil no mapa mundial dos estudos genômicos: o DNA DO BRASIL.
O projeto fará parte do GENOMAS BRASIL, programa lançado pelo Ministério da Saúde com fomento do BNDES em 14 de outubro de 2020. A entrevista com Lygia foi gravada em 15 de outubro.
O DNA DO BRASIL vai mapear inicialmente 15 mil genomas de brasileiros com o objetivo de ajudar a medicina a combater doenças de forma mais precisa no futuro. O estudo é o mesmo cuja perspectiva antropológica repercutiu há algumas semanas na Folha de S. Paulo, ao antecipar que 70% da herança genética paterna dos brasileiros vem de homem branco europeu, enquanto do lado materno essa herança se divide, quase na mesma proporção, entre mulheres africanas e indígenas.
EM PAUTA
Às jornalistas do GGN, Lygia explicou a ciência por trás do DNA DO BRASIL e comentou o respaldo do governo federal e a importância das terapias gênicas e da medicina de precisão para o SUS. Ela também abordou estudos com células tronco embrionárias e induzidas e a relação dessas pesquisas com a pandemia do novo Coronavírus. Lygia esclareceu a finalidade do método de edição de genoma que venceu o Nobel de Química em 2020 e criticou ainda as dificuldades dos cientistas no Brasil, além de expôs seu desafio pessoal como mulher em uma área ainda dominada por homens, entre outros tópicos.
Participaram desta edição as jornalistas Lourdes Nassif, Cintia Alves, Tatiane Correia e Ana Gabriela de Salis.
Confira, abaixo, a transcrição da entrevista.
***
Lourdes Nassif: Gostaria que você relatasse um pouco sobre o projeto DNA do Brasil e nos desse uma amostra do que é o povo brasileiro. Em que forma fomos feitos?
Lygia da Veiga: Vamos começar explicando o que é o DNA. Basicamente, o DNA é uma receita que a natureza segue para criação, formação e funcionamento de qualquer ser vivo. Nós já fomos uma única célula, resultado da fecundação do óvulo pelo espermatozoide. Essa célula se multiplica primeiro em células idênticas a elas mesmas, depois algumas começam a virar sangue, neurônio, osso, fígado, de forma tão organizada que nove meses isso vira um bebê. Como essa célula sabe se transformar nas trilhões de células que compõem cada um de nós? Ela sabe fazer isso porque segue a receita criada no momento da fecundação, que é o nosso genoma, o DNA humano. O que a gente quer fazer agora é entender, saber a sequência desse genoma, dessa receita, da população brasileira.
Nos anos 1990, o primeiro genoma humano a ser sequenciado foi um grande projeto capitaneado pelos Estados Unidos, numa colaboração internacional. A gente demorou 15 anos e gastou-se 3 bilhões de dólares. Um estudo incrível que terminou em 2003.
Acontece que o genoma de cada pessoa não pode ser idêntico. Então uma pergunta que surgiu foi o que difere no genoma das diferentes pessoas. Nós somos 99% idênticos. A diferença do seu DNA para o do vizinho é de 0,01%. Essa variação é responsável pelas nossas características individuais. A ciência agora quer entender essas pequenas variações que faz com que eu tenha essa aparência, que eu metabolize o açúcar de tal jeito, ou que eu tenha predisposição maior ou menor a câncer, alzheimer e outras doenças.
Estamos nessa fase e a tecnologia mudou muito. O primeiro genoma humano demorou 15 anos para ser sequenciado e custou 3 bilhões de dólares. Hoje, por 500 dólares, você sequencia um genoma humano em 1 dia. Esse foi o salto tecnológico. Isso permite que os países estejam sequenciando o DNA de centenas de milhares de pessoas da sua população. O Reino Unido sequencia 500 mil ingleses. Nos EUA e China, 1 milhão de pessoas serão sequenciadas. Tudo para a gente descobrir quais são as variantes genéticas relacionadas à predisposição em desenvolver doenças comuns. Quais são as variantes que fazem com que uma pessoa responda bem a um medicamento e outra não. É isso que a gente quer aprender sequenciando o genoma de milhões de pessoas no mundo todo.
O problema é que a comunidade científica se deu conta que 80% das pesquisas eram feitas em populações brancas, de ancestralidade europeia. Então, para quem a gente está desenvolvendo toda essa ciência maravilhosa da medicina genômica? Para quem tem ancestralidade europeia. A comunidade científica já se deu conta de que temos aí dois problemas: primeiro ético, porque não estão fazendo ciência para toda a humanidade. Se a gente quiser usar essas informações para melhorar a saúde de pessoas com DNA de outras ancestralidades – asiática, africana, indígena – a gente precisa estudar o genoma dessas pessoas. O segundo problema é a oportunidade. Quando você deixa de estudar essas pessoas, você deixa de fazer descobertas escondidas no DNA da população. Bom, se falta diversidade nos bancos de genomas internacionais, uma coisa que o Brasil tem a contribuir é com a diversidade. E aí a gente colocou de pé o projeto DNA do Brasil, justamente para colocar o brasileiro nesse mapa dos estudos de genomas humanos, e no desenvolvimento dessa medicina baseada na nossa genética.
Esse projeto está sequenciando o genoma de milhares de brasileiros para a gente fazer um banco de dados, para que a gente possa fazer pesquisas sobre a nossa genética, desenvolver diagnósticos baseados na nossa genética.
O que o brasileiro tem de muito interessante é que somos uma mistura de europeu, índio e africano. Estamos há 500 anos misturando aqui. Então quando a gente olha o genoma do brasileiro, nós somos um mosaico onde cada um de nós tem frações desses três genomas ancestrais.
Então o DNA do Brasil vem para colocar o brasileiro nesse mapa mundial dos estudos genômicos e permitir que o brasileiro se beneficie de todas as promessas da medicina baseada na genética.
Cintia Alves: Chamou atenção uma reportagem da Folha de S. Paulo antecipando alguns resultados do DNA do Brasil em pouco mais de 1,2 mil genes sequenciados, apontando que a nossa herança paterna vem 70% de brancos europeus, e a materna se divide praticamente na mesma proporção entre mulheres negras e indígenas. Nas redes sociais isso repercutiu muito forte por mostrar em números os efeitos da colonização do País por brancos europeus que suprimiram, de alguma forma, a reprodução dos homens negros e indígenas.
Aproveitando: o Ministério da Saúde lançou o programa Genomas do Brasil. A senhora citou anteriormente países que já fazem o sequenciamento de genes e o Brasil agora lança uma linha de financiamento para esse tipo de pesquisa. O projeto DNA do Brasil entra neste programa federal? Como vocês estão financiando o projeto?
Lygia da Veiga: O Genomas Brasil é um programa do Ministério da Saúde que tem dois braços: um de genômica, de sequenciar DNA de brasileiros, e outro de desenvolvimento de terapias avançadas – terapia gênica e terapia com células troncos, essas coisas.
No braço de genômica tem um ‘sub-braço’ de genômica populacional, que é o que o DNA do Brasil está fazendo. Em julho do ano passado, a gente apresentou o projeto para o Ministério da Saúde. Na época, o projeto se chamava Genomas do Brasil. O Ministério adorou e pediu para ficar com nome e a gente inventou o DNA do Brasil. E tem um outro ‘sub-braço’ liderado pelo Hospital Albert Einstein que vai sequenciar o genoma de pessoas com doenças raras. A ideia é que o DNA do Brasil seja englobado pelo programa Genomas Brasil como braço de genômica populacional.
Sobre os nossos resultados, a gente já sequenciou 1,2 mil brasileiros e estamos fazendo as primeiras análises. Tem esse aspecto superinteressante, meio antropológico. A gente pode aprender sobre a história do ser humano analisando seu DNA, consegue complementar estudos de geologia usando DNA. Quando você analisa a história do brasileiro através do DNA, ela conta uma história que não é muito bonita, a história de um povo dominante e de um povo dominado. Essa história de que o DNA do brasileiro ter uma contribuição materna maior de indígenas e africanas e uma contribuição paterna maior de europeu não é descoberta nova do DNA do Brasil. Outros estudos de outros professores, de outros papas da genética populacional brasileira, usando as ferramentas de análise genética que existiam na época – que não era o sequenciamento do genoma inteiro, como a gente está fazendo agora – eles já tinham visto isso e documentado. A gente está mostrando com mais detalhes, no genoma completo desses primeiro 1,2 mil brasileiros, e essa história veio à tona de novo e é isso mesmo. É uma assinatura de um povo dominante e outros povos dominados, que foram os indígenas e africanos. As cicatrizes e marcas dessas histórias estão no DNA do brasileiro atual. Mas tem uma história mais bonita, que é a gente encontrar no brasileiro atual os fragmentos de indígenas que não existem mais. A gente tem essa história lamentável da extinção de vários grupos indígenas, mas o DNA deles ainda existe fragmentado no brasileiro atual. Sequenciando o genoma do brasileiro, a gente consegue reconstituir o DNA dessas populações.
Cintia Alves: No Genomas Brasil, o governo federal anunciou [os primeiros] 50 milhões reais do BNDES para financiar pesquisas e novos pesquisadores. Esse valor é suficiente? Porque só no DNA do Brasil, sequenciar 15 mil genomas custa 28 milhões de reais. Como o DNA do Brasil se financia? O que dá para falar sobre essa verba anunciada pelo governo?
Lygia da Veiga: Olha, na situação atual, qualquer verba é muito bem vinda. O BNDES acenar com 50 milhões de reais é uma coisa espetacular em termos relativos. Em termos absolutos, não vai levar a centenas de milhares de genomas de jeito nenhum [o Ministério da Saúde pretende sequenciar 100 mil genomas]. A gente precisa de um financiamento muito, muito, muito maior do que isso. Mas é um ótimo começo e vai permitir que a gente se estruture bem para conseguir novos parceiros.
Veja, EUA, Inglaterra, vários países têm parceria com a indústria. Aqui no Brasil a gente vai ter que parar com esse preconceito sobre a participação da iniciativa privada nessas iniciativas. A gente vai precisar estabelecer parcerias com a iniciativa privada para que a gente consiga a quantidade de verba e, principalmente, a agilidade. O que mais me preocupa é a agilidade para executar isso, porque a gente tem que recuperar o tempo perdido.
Ana Gabriela de Salis: Você comentou sobre o avanço tecnológico para realizar pesquisa. Li que vocês vão armazenar os dados genéticos de uma pessoa em 500 gigabytes. Você pode explicar mais sobre esse processo de armazenamento, por que é dessa forma?
Lygia da Veiga: É porque a gente está falando, olha o número, de 3 bilhões. Cada pessoa é um arquivo de 3 bilhões e 200 milhões de letras A, C, T, G [que formam o DNA], só que cada letra é sequenciada 30 vezes. Então chegamos a 100 bilhões de letras em um arquivo. Esses arquivos são enormes mesmo. Esse é o tamanho do nosso genoma, é a complexidade da nossa biologia. Você precisa de um poder computacional muito grande, tanto do ponto de vista de armazenamento quanto de processamento. Isso que estou falando do tamanho de 1 genoma, a gente quer sequenciar milhares! A nossa estratégia foi usar serviços de computação em nuvem. Se comprar um servidor, eu vou ter que ter uma sala especial, ar-condicionado, técnico, e daqui a pouco esse servidor vai estar ultrapassado, e vou ter que fazer um upgrade… Então a gente achou que o melhor recurso é computação em nuvem, como vários projetos internacionais estão usando.
Lourdes Nassif: Estamos falando de milhões de dados. A gente tem, para consumo imediato, que a gente lê aqui e ali, testes de DNA. Esses exames de DNA que são feitos por questões judiciais de família, onde ele pega? Nesses 0,01% de DNA que nos diferencia?
Lygia da Veiga: Nos exames de DNA, de paternidade ou forense, não é preciso olhar o genoma inteiro da pessoa. Você pode escolher de 10 a 20 regiões que variam muito entre as pessoas. São justamente regiões dentro do 0,01%. Você olha que letra tem naquelas posições. Isso já te dá uma impressão digital daquele indivíduo. Isso é suficiente para dizer com muita certeza quem é aquele pessoa, que ela é o pai. Você pode analisar um fragmento menor do genoma, mas ter informação suficiente para dizer que esse sequenciamento só pode ser de tal pessoa.
Tatiane Correia: As células tronco são uma fonte importante de pesquisa para doenças raras que exigem um grau de tratamento mais elevado. Na pandemia de coronavírus, estamos vendo pessoas lidando com problemas não esperados, como sequelas no pulmão, perda olfato e paladar, entre outras questões. Existe possibilidade de uso futuro de pesquisas de células tronco para lidar com esse tipo de doença?
Outra pergunta: gostaria que você falasse também um pouco sobre sua carreira científica. Aqui no CAI NA RODA somos todas mulheres entrevistando mulheres de destaque. Sabemos o quanto é complicado para uma mulher se destacar na área de pesquisa científica. Gostaria de saber mais de sua experiência.
Lygia da Veiga: Sobre a história das células tronco e a Covid, um problema da infecção pelo vírus é que muitas vezes o sistema imunológico da pessoa tem uma reação exagerada. Embora o nosso sistema imunológico seja o nosso melhor amigo, num caso deste, ele acaba fazendo mais mal do que bem. O que existem são ensaios clínicos, testes ainda, para saber se há células troncos que sejam imunossupressoras. Que, ao colocar essas células tronco nas pessoas, elas possam controlar essa resposta exagerada do sistema imunológico. É essa a tentativa e a gente ainda não sabe se, de fato, vão ajudar nisso.
Sobre a minha carreira, não sei [risos]. Acho que a história de ser mulher em qualquer profissão, a coisa pega, onde eu senti mais, foi quando resolvi ter uma família, quando resolvi ter filhos. Até então, não sei, eu não percebi muito alguma desvantagem em ser mulher. É um mundo masculino, você vê homens em número muito maior nas posições de liderança. Fui seguindo minha vida e conquistando minhas posições acadêmicas. Só que quando você resolve ter filho, é uma complicação. Ninguém vai engravidar por você, amamentar por você, e tem todo o envolvimento emocional que vem junto. Se a gente não está presente fisicamente, tem aquele dilaceramento do coração. Eu tô na USP, tô culpada porque não tô em casa. Eu tô em casa, tô culpada porque não tô na USP. Isso tudo eu achei muito difícil, muito duro conseguir chegar num equilíbrio em que eu pudesse seguir com minha vida profissional de forma que me desse satisfação, porque é uma coisa importante para mim, e ao mesmo tempo pudesse viver a maravilha da maternidade, que para mim foi uma maravilha. Eu tive muitas facilidade [ajuda de babá], mas ainda assim foi muito duro. Eu digo que minhas filhas são meus órgãos mais vitais, que estão andando por aí longe de mim. Essa fragmentação é dura. Agora elas já estão com 15 e 17 anos, está mais fácil. Mesmo assim tem uma demanda emocional muito grande para administrar, além das coisas profissionais.
Cintia Alves: E como é ser cientista num País em que ciência não tida como um investimento, mas um gasto, como dizem?
Lygia da Veiga: Isso, por muitas vezes, é bem frustrante. A gente tem uma ideia, quer desenvolver uma coisa, ou não tem o dinheiro ou tem mas precisa de um reagente novo que demora três meses para chegar. Como você vai ser competitivo assim? Um dia você abre um e-mail e tem lá um artigo sobre alguém fazendo exatamente o que você queria fazer e não fez porque o reagente não chegou. Então isso dói pra burro. É das coisas mais terríveis. A gente tem as ideias, tem alunos brilhantes, recursos humanos que acabam sendo desperdiçados pela falta de agilidade. E assim: falta de verba posso entender. Tem soluções, mas ok. A falta de agilidade é que acho imperdoável, porque aí é só a vontade política. É um absurdo, tento a verba, ela ser tão burocrática e os processos tão burocráticos, que eu não tenha agilidade para fazer pesquisa. É o governo jogando fora seu dinheiro. Se ele me dá o dinheiro e eu não consigo gastar com agilidade, ele está jogando esse dinheiro fora. Isso acho imperdoável. Não é questão de mais ou menos verba, é vontade política, de resolver burocracia, os mecanismos de gastos, prestação de contas, importação de reagentes para pesquisa, para tornar o cientista brasileiro mais competitivo.
Lourdes Nassif: E quando a ciência esbarra na crença? No Brasil, não só, mas aqui a gente vê muito pesado o retrocesso na sociedade. Células tronco foi um tabu por muito anos. Deixou de ser por um curto período mas voltou de novo para a discussão, com negação dessa ciência para a saúde. Como vocês cientistas enfrentam essa nova fase de retrocesso no País?
Lygia da Veiga: A gente tem um tipo de célula tronco, que é a célula tronco embrionária, que é muito importante porque é a única que consegue virar fígado, neurônio, osso, coração – ela é o grande curinga. Ela tem um potencial para o desenvolvimento de terapias para diferentes doenças muito grande. Ela deriva de um embrião humano. E aí cuidado: quando a gente fala embrião, imediatamente vem na cabeça das pessoas a imagem de um feto com cabeça, bracinhos, mãozinhas, coração batendo, e não é de um feto que estou falando. Estou falando de um embrião de cinco dias que ainda é só um grupo de 50 células produzido por fertilização in vitro; esses embriões sobram, ficam congelados, esquecidos nos congeladores. É desse embrião que a gente tira essas 50 células e as multiplica em bilhões de células. A partir daí as pessoas vão transformá-las em neurônios para doença de parkinson, para tratamento de doenças da retina, coração, e assim por diante. Só que você tem que destruir o embrião congelado. E, para algumas culturas e religiões, esse embrião é uma vida que não pode ser violada. Equivale a você matar uma pessoa. Isso foi tema de debate no mundo inteiro no início dos anos 2000. Aqui no Brasil a gente acabou conseguindo demonstrar o valor dessas pesquisas. Foi passada, então, em 2005, uma Lei de Biossegurança que permite que a gente use esses embriões da fertilização in vitro, que estejam congelados há mais de 3 anos, que os pais deem o consentimento para a gente usar em pesquisa.
Apesar de todo o discurso obscurantista, acho que a gente tem conseguido manter, pelo menos do ponto de vista legal, legislações que são bem avançadas. Ainda não deixaram a religião e outras coisas não científicas se transformarem em lei. Mas a gente precisa ficar sempre de olho, porque esses movimentos mais reacionários e negacionistas, por algum motivo, ganharam força no Brasil, nos EUA, em alguns países. A gente tem que ficar atento para comunicar ciência. A gente precisa traduzir o que a ciência quer fazer, quais as vantagens e desvantagens, e incluir a população no debate.
Foi interessante na discussão das células tronco porque, logo depois que a lei passou, nosso grupo conseguiu fazer a primeira linhagem das células tronco humanas. E quando a gente divulgou, eu fiquei preocupada em levar uma porção de pedradas, e não houve nenhuma manifestação contra. Foi bacana, a gente viu que as pessoas entenderam que isso foi feito de forma séria e há todo um arcabouço legal também para proteger a vida humano, e que a gente conseguiu equilíbrio nesse marco legal para ao mesmo tempo permitir avanços científicos que podem, um dia, salvar vidas humanas.
Cintia Alves: Parte do seu trabalho na USP é cuidar de um banco de células tronco. Poderia dar mais detalhe sobre a importância e finalidade dele?
Lygia da Veiga: Em 2007 um grupo no Japão fez uma descoberta revolucionária. Eles até ganharam um prêmio Nobel em 2012. Eles descobriram como pegar uma célula qualquer e reprogramar essa célula para ela virar uma célula tronco igual a embrionária. Agora, em vez de eu sair procurando embriões doados para pesquisa, eu posso pegar um pouco de sangue meu e fazer essa transformação, e essa minha célula vira uma célula tronco induzida. Agora posso produzir neurônio da Lygia, fígado da Lygia, e assim por diante.
Com essa possibilidade, a gente pode usar essas células para terapias que vão regenerar órgãos e tecidos, mas também podemos usar para testar novos medicamentos. Quando a indústria farmacêutica está desenvolvido novos medicamentos, ela faz testes em laboratórios, depois em modelos animais e, eventualmente, ela tem que começar os testes em seres humanos. Um dos grandes problemas desses ensaios clínicos é essas drogas serem tóxicas para o coração. Então imagine se você pudesse testar esse medicamento em células do coração antes de testar em humanos. Não seria legal? Porque aqueles que forem tóxicos na célula do coração, eu não vou nem botar nas pessoas. A gente produz a célula de coração humano a partir da célula tronco induzida.
Então a gente teve a ideia de produzir uma biblioteca de células tronco que representasse a nossa diversidade genética brasileira. A ideia é que, no futuro, antes de você fazer um teste clínico na população brasileira, você consiga testar esse medicamento em células do coração dessa população. A gente faz isso coletando sangue de uma porção de voluntários e transformando em células tronco induzidas. E fazendo a análise de ancestralidade dessas pessoas, a gente vê as diferentes proporções de genoma europeu, africano e ameríndio, nativo-americano, nessa nossa biblioteca de células.
Agora na época de Covid, a gente está produzindo, a partir dessa biblioteca, neurônios e células do coração para pesquisadores de outro instituto da USP infectarem com coronavírus, para estudar se o coração ou neurônios são infectados. Estamos super animados com essas pesquisas.
Ana Gabriela de Salis: Duas perguntas, a primeira sobre o que você estava falando, a burocracia na ciência. Isso foi algo que sempre ocorreu ou piorou nos últimos anos, talvez de 2014 para cá? Sobre o DNA do Brasil, há intenção de estudar as variantes ligadas à hipertensão e diabetes. Por que essas doenças?
Lygia da Veiga: Isso é fácil, porque essas são as duas doenças mais comuns. Hipertensão e diabetes têm um custo danado sobre o sistema de saúde e para os pacientes.
Sobre as burocracias, por que 2014? Sempre foi assim, em todos os governos, isso é apartidário. Sempre foi um inferno a burocracia na ciência brasileira. Não melhorou nem piorou.
Cintia Alves: Em 2018, numa participação sua para a rádio TRIP FM, você citou o método “crispr” como uma das coisas mais avançadas que estava sendo realizada em sua área em todo o mundo, e sinalizou ali que ‘daqui a pouco’ alguém ganharia um Nobel por isso. Eis que estamos em 2020 e o Prêmio Nobel de Química deste ano foi para duas mulheres cientistas que desenvolveram esse método. Você poderia explicar de maneira simples o que é essa tesoura crispr, o que a humanidade já está fazendo ou ainda pode fazer com ela? Vi que há uma polêmica a respeito de seu uso para produzir bebês geneticamente modificados. O que a comunidade internacional está discutindo em termos éticos sobre isso, e há algum país capaz de usar o método para esta finalidade?
Lygia da Veiga: Esse crispr é uma ferramenta incrível que permite que a gente faça alterações no DNA de qualquer ser vivo com muita precisão e com muita eficiência. Se você conhecer, por exemplo, os genes que aumentam a produtividade do milho, você pode mexer no genoma e, pim, fazer uma modificação para que produza mais milho. Você pode fazer uma vaca que produza mais leite. São organismos geneticamente modificados para que atendam às necessidades dos seres humanos. Ao mesmo tempo, é uma ferramenta de pesquisa muito poderosa. Com isso, a gente aumenta o conhecimento sobre a vida.
Do ponto de vista de aplicação em saúde humana, a primeira coisa que vem na nossa cabeça são as doenças genéticas. Uma pessoa como hemofilia ou distrofia muscular, ela tem essa doença porque tem um gene defeituoso, que tem uma alteração genética que não consegue produzir uma proteína. [Nota da redação: neste momento, a rede de internet que fazia a gravação da entrevista sofreu instabilidade e, por isso, a fala da Lygia tem sucessivos cortes por cerca de 2 minutos. Para contextualizar: ela estava explicando que, conhecendo o genoma que produz uma doença ou deficiência no organismo humano, a tesoura crispr, em tese, poderia fazer modificações nessa área do DNA. Em outro trecho prejudicado, Lygia lembrou que o cientista chinês que fez modificações genéticas para produzir bebês resistentes ao HIV acabou preso e banido de suas atividades para sempre. A comunidade internacional vê a edição do genoma humano para fins, digamos assim, de “evolução da espécie”, com muito conservadorismo e cautela. É um tabu, praticamente.]
Os resultados em modelos animais são impressionantes. Quando eu comecei a estudar genética era uma coisa de ficção científica. Agora, entre funcionar num camundongo e funcionar numa pessoa, a gente tem um caminho a ser trilhado. (…) Outra coisa é você usar essa ferramenta para modificar um embrião para ele inteiro ter modificações. Por mais eficiente que o crispr seja, ele ainda erra o alvo de vez em quando. Então é absolutamente inaceitável usar isso para mudar o genoma inteiro. Você não sabe quais são os efeitos colaterais. Você pode atirar aqui e acertar em outros lugares. O cientista chinês que fez isso é tão maluco que apresentou isso num Congresso achando que iria ganhar um prêmio Nobel, e foi parar na prisão, graças a Deus.
E a história do prêmio Nobel ter sido dada a essas pesquisadoras foi sensacional. A gente sabia que o Crispr iria ganhar o prêmio Nobel, mas existia uma disputa. Elas foram as pesquisadoras que descreveram esse sistema que existe naturalmente em bactérias, e elas conseguiram adaptar e usar isso em qualquer célula. Um grupo de Boston, nos EUA, pegou esse conhecimento que elas geraram e fizeram uma modificação e mostraram que funcionava também em células de bicho. E aí eles entraram com pedido de patente, e existe esse debate de quem é que tem a patente. Elas terem ganhado o Nobel foi um reconhecimento de que a ciência foram elas que fizeram. Não sei o que vai acontecer com a patente, mas elas que fizeram essa revolução.
Lourdes Nassif: Sobre o desmonte paulatino da ciência brasileira, ocorrendo na forma de falta de verbas para as universidades públicas, como se consegue, dentro da universidade, contornar isso e levar adiante a formação de novos pesquisadores? Depende da iniciativa privada, nesse caso?
Lygia da Veiga: Realmente é um desastre. A gente está sem bolsa. O que estou perdendo de pesquisadores porque não tenho o que oferecer para eles em termos de bolsa… O governo federal reduziu drasticamente as bolsas. Acabou o financiamento pelo CNPq. O ministro da Ciência, que quando indicado, até dei um voto de confiança – o cara para ser aceito num programa da Nasa deve ter algum mérito – mas ele é absolutamente omisso, a meu ver, na defesa da ciência. Ele estava presente, por exemplo, no lançamento do Genomas Brasil e não se manifestou. O ministro da Ciência não falou no evento de lançamento do que é provavelmente um dos maiores projetos científicos brasileiros. Se não fosse a Saúde, a Secretaria de Ciência e Tecnologia em Saúde, isso não existiria. Então está muito difícil. Aqui em São Paulo a gente ainda tem a FAPESP, que é um espetáculo como fundação de apoio à pesquisa. Mas a FAPESP sem apoio do governo federal e com a crise econômica, ela também vai ficando de cobertor curto. E aí a gente está perdendo pesquisadores que estão indo virar vendedor, ou indo para fora, porque os pesquisadores que a gente forma aqui são competitivos lá fora, são mão de obra qualificada, muito bem vindos em qualquer laboratório lá fora. Por que vão ficar aqui se não tem bolsa? Isso está um desastre.
Cintia Alves: A cerimônia de lançamento do Genomas Brasil foi praticamente relâmpago. Falaram ali Jair Bolsonaro, o ministro da Saúde muito rapidamente e o presidente do BNDES, apenas. Aliás, o ministro da Saúde frisou que o interesse no projeto é o de produzir um impacto no atendimento pelo SUS. O que é essa medicina de precisão de que estão falando? Isso tem relação com terapia gênica? E terapia gênica, até onde pude ver, é algo tão caro. Será acessível pelo SUS um dia?
Lygia da Veiga: Justamente. Na medicina de precisão estamos falando da parte de entender a genética das doenças e conseguir fazer diagnósticos preventivos antes da pessoa manifestar, por exemplo, uma hipertensão. Se aparece uma pessoa com tumor, eu analiso o genoma desse tumor e, com essas informações, sei qual é a quimioterapia mais efetiva para ela.
Ao mesmo tempo, tem o desenvolvimento dessas terapias avançadas. Elas são muito caras. E à medida em que são aprovadas – por exemplo, temos duas já aprovadas para câncer, que são terapias complexas em que você pega células do sangue do paciente com a doença e modifica geneticamente essas células para que elas passem a atacar o tumor e devolve ao paciente – essas terapias custam centenas de milhares de dólares. Esse é o custo delas.
O que acontece no Brasil: como nossa Constituição garante ao brasileiro o acesso à saúde, as pessoas judicializam isso, entram com ações para que o governo, o Ministério da Saúde seja obrigado a pagar essas terapias. Entendo perfeitamente o drama do ponto de vista do indivíduo. O governo tem essas escolhas de Sofia: pago terapia para um indivíduo ou pago vacinação para uma cidade inteira? Porque é mais ou menos desses custos que estamos falando. Então esse programa vem justamente também fomentar as pesquisas e desenvolvimento dessas terapias no Brasil. Se a gente conseguir desenvolver essas terapias aqui, o SUS vai poder, eventualmente, oferecer e fazer isso ser disponível para todo mundo.
Agora, interessante é que é um programa da ciência. O Ministério da Saúde está conseguindo ajudar no desenvolvimento científico, só que na área da saúde. O Ministério da Ciência, como ele ficou omisso e ficou ali só de espectador? É impressionante.
***
O CAI NA RODA é um programa semanal de entrevistas realizado pelas jornalistas do GGN no Youtube, com o intuito de dar voz e vez a outras mulheres de diversas áreas de conhecimento. Todos os sábados, às 20h, tem episódio novo. Já recebemos Manuela d’Ávila, Hildegard Angel, Ana Estela Haddad, Gleisi Hoffmann, Esther Solano, Letícia Sallorenzo, Laerte Coutinho, Tata Amaral, Cilene Victor, Eliara Santana, Paula Nunes, Valeska Teixeira Zanin, Maria Lygia Quartim, Val Gomes e Natalia Pasternak.
Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.
O artigo é bom, mas tem um erro básico: o Brasil já está no mapa do genoma há mais de 30 anos, pelo mesmo grupo da USP, dirigido por Mayana Zatz, que foi orientadora de pós-doutorado da entrevistada, e com a qual tem pelo menos sete trabalhos publicados em colaboração (conforme o Lattes). Não sei se a informação errada vem da entrevistada ou foi colocada por desconhecimento pelo GGN, mas precisa ser corrigida, por justiça a Zatz e um grande grupo de investigadores que já trabalhava nos assuntos comentados bem antes da entrada de Lygia Pereira como bolsista no laboratório em 1994 (novamente no Lattes).