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Redação

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  1. A Ficção dissolve a eternidade e conserva a existência

    Na Ilíada consta que Cassandra, filha do rei Príamo, seria uma profetisa amaldiçoada; tudo via com clareza mas nenhum troiano lhe dava ouvidos e a atenção merecida. O desastre da queda de Troia foi selado depois que o fatídico cavalo de madeira gigante deixado de ‘presente’ pelos gregos entrou pelos portões; em desespero aquela mulher alucinada anunciava a desgraça iminente. O resto, todos sabem.

    Na sua Odisseia de retorno para Ítaca, Ulisses sofreu inúmeros acidentes de percurso. Só alcançou evitar o naufrágio quando passou próximo à ilha das sereias porque, apesar de consumido pelo desejo de ouvir o canto das criaturas, mandou tapar os ouvidos da tripulação com cera e se fez amarrar no mastro do navio; assim pode escutar a melodia maviosa sem ser consumido pela sedução de se lançar até aquela praia inalcançável.

    No relato de Cassandra a estória indica que muitas vezes a clarividência não é suficiente para dar crédito a seu emissor. Depende de quem propaga e de quem escuta o vaticínio para ser ou não aceito e acatado; a mensagem pode ser interpretada como provinda da voz infalível do oráculo, ou entendida como uma atitude de loucura. Enquanto Ulisses, com sua astúcia, pôde navegar às margens do perigo, conservar o comando e satisfazer seu desejo (ancorado apenas na oratória), Cassandra foi isolada e derivou em inúteis profecias.

    Homero, a quem se atribui a autoria desses épicos, demonstra nos episódios citados a depreciação e/ou o poder investido nas palavras. Conforme de onde jorrem as águas da fonte da loquacidade, sucede aceitação ou desmerecimento da narrativa. Isso faz refletir e observar que Independentemente de qualquer verossimilhança basta ao emissor persuadir seus ouvintes em um dado momento para que surjam novos seguidores. A boa retórica é de eficácia notável, historicamente grandes lideranças foram condutores das multidões através de discursos grandiloquentes.

    Os maiores absurdos são consumados quando o diáfano véu da mentira sobrepõe o opaco manto da verdade. Assim não é casualidade que a Arte, a ‘voz’ da verdade com vestes de ficção, sofra sistemáticos ataques cada vez que os rebentos da intolerância se renovam espalhando sementes até completar novos ciclos de destruição; essa necessidade compulsiva de autofagia pretende devorar quem não pactue dos seus dogmas e tente decifrar seu enigma.

    O menosprezo por Cassandra não retirou o valor do seu trágico augúrio; a incredulidade dos enfeitiçados imprevidentes sustenta o canto das sereias de todos os tempos: a exposição desmesurada enseja delírios.

    ………………………
    Valério Carvalho

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