Democracia, sociedade civil e responsabilidades

Vivemos uma séria crise de legitimidade que está intimamente ligada à responsabilidade. Ela tem uma relação direta com a judicialização da política, mas não creditemos ao Judiciário toda a fatura. Os setores políticos minoritários encontram na justiça o último recurso para imporem sua vontade. Somam às suas fracas bases, eleitas pelo pleito direto e universal, um corpo de juízes galgados a seus postos em tempos em que a atual oposição gozava de maior influência política.

Cria-se desta forma um claro descompasso entre os poderes. Enquanto temos um jogo de alternância no Poder Executivo e Legislativo, nas eleições que acontecem a cada dois anos, permanece um pensamento jurídico que se cristaliza e sofre pouca alteração durante longos períodos. Decorre disto a politização do saber jurídico como contraponto à perda do poder político dos antigos ocupantes do poder.

Gera-se também um outro aspecto: uma crise de autoridade. Ela impede aos quadros executivos e técnicos exercerem a sua atividade principal, a utilização do poder concedido aos primeiros pelo voto e pelo conhecimento teórico dos últimos, sejam suficientes para o exercício da sua autoridade e consequente responsabilidade. É a prevalência da anomia com o inevitável corolário da (des)razão judiciária. O conhecimento teórico é desqualificado, politicamente e não raro em nome da democracia, por um poder sem respaldo ou qualificação para fazer a crítica deste conhecimento.

Isto nos leva a discutir algumas questões centrais da democracia e da participação. Vamos partir de uma questão que ocupa um aspecto central: A participação da sociedade. Ela historicamente surge de um movimento ocorrido nos primórdios da luta para o restabelecimento do poder civil e da democracia nos estertores do famigerado Golpe de 64. A população percebe que, devidamente organizada, pode assegurar pequenos espaços de atuação em defesa de direitos básicos, ligados geralmente à questões eminentemente locais. Foi uma esperta incorporação de parte do discurso permanentemente moralizador do governo militar. Quem lutava por condições mínimas de dignidade, não poderia ser perseguido. Extraiu-se, espertamente, da pauta de reivindicações o conteúdo “político” traduzido para uma pauta eminentemente prática. Era a preparação para um xeque-mate. O poder civil se apropriou das armas do oponente.

Este movimento foi composto de pequenos grupos que foram se articulando e apoiando mutuamente. As outras forças organizadas, partidos, sindicatos de oposição, entidades de classe rapidamente abraçaram estas causas. Além de perceber a força da causa inaugurada, perceberam a perda de poder que poderiam significar para suas instituições. Num breve resumo, de uma história que levou alguns anos, estas entidades não podiam abrir mão do comando do movimento. E assim ocorreu, não só conduziram à partir de então o processo como esvaziaram os movimentos populares que possuíam uma estrutura e um poder infinitamente menor para resistir.

À partir disto, estas instituições só cresceram e, cada vez mais, assumiram como seu um mandato como representantes exclusivos da sociedade civil. Daí, para confundirem interesses corporativos com pressão “social” foi um pulo. É só acompanhar a trajetória da OABSP p.e. dos palcos das Diretas já para a defesa da proibição da advocacia Pro Bono. Ou encontrar o Secovi como um dos principais “representantes” da “sociedade civil” na discussão do Plano Diretor da capital de São Paulo.

Vejo portanto com enorme reserva que a participação através da representantes da sociedade civil torne algum processo democrático e participativo. O exercício de um mandato executivo exige que o representante eleito, aí sim através de um pleito universal, assuma a sua responsabilidade e poder concedido e consulte constantemente a população que o elegeu. Nada de se escudar exclusivamente na participação dos chamados representantes da sociedade civil para dar a sua gestão uma feição democrática e participativa. Ao votar, concedi ao escolhido uma condição de condutor de um processo. Que ele assuma esta responsabilidade com competência e crie as instâncias e mecanismos necessárias de consulta através de pesquisas, organização de dados, eleição e revisão constante de metas e prioridades. Não adianta cobrar participação da população sem a criação de mecanismos que efetivamente acolham as sugestões advindas desta.      

Redação

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