Hannah Arendt e a maldição da Vontade de usurpação

Finda a greve, começou a guerra de palavras na internet. Os adoráveis blogs sujos acusam a grande imprensa brasileira de tentar acobertar o sucesso da greve. A imprensa brasileira ignora a acusação e segue repetindo a cantilena neoliberal de que os investidores internacionais salvarão o país.

Há exatamente um ano, publiquei aqui no GGN um texto sobre o divórcio entre a realidade do golpe de 2016 e sua representação jornalística https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/hannah-arendt-e-o-golpe-de-estado-em-curso-no-brasil-por-fabio-de-oliveira-ribeiro. O novo conflito entre a grande imprensa e a imprensa alternativa/internacional reforça o valor daquela reflexão.

Gostemos ou não, os investimentos externos tendem a recuar pois a imprensa internacional noticiou amplamente a greve. Assustados, os investidores não colocarão seus preciosos recursos num país em que o governo é incapaz de produzir consenso político e que segue criando conflitos ao invés de pacificar as relações entre operários e empregadores.

Michel Temer desapareceu da imprensa. Encastelado no Jaburu e cercado de soldados o usurpador parece temer o pior. Mas ele não é capaz de admitir que fracassou, nem pretende mudar de rumo. Tanto isto é verdade que ele puniu os deputados que votaram contra a reforma trabalhista demitindo os apaniguados deles que ocupavam cargos de confiança.

A miopia da imprensa brasileira é evidente. Ao se recusar a admitir a realidade ela apenas reforça a crença do usurpador de que ele poderá seguir em frente e obter o sucesso que os neoliberais tupiniquins desejam. Todavia, ninguém em sã consciência deveria acreditar que será salvo por investidores internacionais que, informados pela imprensa européia e norte-americana, se recusam a investir num país politicamente instável e economicamente em queda livre.

O alçapão no fim do buraco deveria ser um limite. Mas não é. Ele está sendo aberto não por causa dos adoráveis blogues sujos (que noticiam o que realmente ocorreu) e sim pela esquizofrenia da imprensa que se recusa a admitir a realidade. Como se isto fosse capaz influenciar aqueles em que os golpistas (governo e imprensa) depositam suas esperanças: os investidores internacionais afugentados pela greve geral.

Os blogs sujos dizem que Michel Temer não tem um projeto de país. O projeto neoliberal da imprensa brasileira fracassa porque ela não é capaz de influenciar a imprensa internacional. O poder interno dos adoráveis blogues sujos é pequeno, mas se multiplica ao infinito em razão da imprensa internacional fazer jornalismo e não propaganda do usurpador.

A verdade, contudo, não é capaz de libertar o Brasil das garras do aprofundamento da crise política e da expansão do fracasso econômico. Michel Temer perdeu o contato com a realidade. Ele parece acreditar na propaganda que ele mesmo paga para a imprensa fazer. Mas a influência da imprensa no Brasil é irrelevante num contexto em que o que resolveria o problema (segundo a própria imprensa) seria o afluxo crescente e ininterrupto de investimentos estrangeiros. A imprensa internacional, por sua vez, cumpre seu papel. Ela amedronta os donos do dinheiro que o usurpador quer seduzir e não consegue.

Hannah Arendt ensina que:

“Como já disse mais de uma vez, a pedra de toque de um ato livre – desde  decisão de sair da cama de manhã até as mais altas resoluções com as quais nos comprometemos para o futuro – é que sempre sabemos que poderíamos ter deixado de fazer aquilo que de fato fizemos. A Vontade, ao que parece, é caracterizada por uma liberdade infinitamente maior que o pensamento, e – para repetir mais uma vez – este fato inquestionável jamais foi tido somente como uma bênção.(A Vida do Espírito, Hannah Arendt, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2009, p. 287)

A vontade de Michel Temer de impor seu programa neoliberal é evidente e reforçada pela propaganda da imprensa brasileira. Todavia, o poder de sedução dele é limitado por sua miopia. Mesmo sendo capaz de comprar apoio jornalístico dentro do Brasil ele não está em condições de censurar a imprensa internacional. Portanto, o que ele acredita ser uma benção (sua vontade inquebrantável) pode se transformar numa maldição porque a Vontade dos investidores com os quais ele conta é condicionada por fatores sobre os quais ele não tem qualquer controle (a livre circulação de informação na Europa, nos EUA e na Ásia).

De certa forma, o (des)governo Michel Temer é mais frágil que o de Dilma Rousseff justamente porque, como os reis absolutistas, o usurpador acredita na solidez de sua posição em virtude da imagem construída para ele pelos membros de sua corte jornalística. Todavia, quando a Maria Antonieta do Jaburu for gravada dizendo que aqueles que não tem pão devem comer brioches, a partida será definitivamente decidida nas ruas. Nenhuma novidade. Aqueles que apostam na segurança imposta pelo distanciamento do povo raramente deixam de aprender uma lição dolorosa quando o povo resolve se aproximar de um governante alienado para destroçá-lo.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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