Íris

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         

Esse conto foi transcrito do livro Contos – do original Mäin (Contos de Fada) de Hermann Hesse.

        Na primavera da sua infância Anselmo corria pelo jardim verde. Uma flor entre as flores da mãe chama-se Espaldana e era-lhe especialmente querida. Ele encostava a face nas suas altas flores verde claras, apertava com os dedos as suas pontas afiadas, respirava seus botões grandes e maravilhosos e olhava longo tempo para dentro deles. Havia ali longas fileiras de pontas amarelas saindo do corpo azul-pálido da flor; entre elas corria acima e abaixo um caminho luminoso, pelo cálice, para o longínquo segredo azul do botão. Era a flor que ele adorava, assim olhava longamente para dentro dela, e via logo as partes finas e amarelas como uma grade dourada no jardim do rei, logo como um passeio duplicado de lindas árvores do sonho, que não são movidas por vento algum, e entre elas, iluminado, corria o secreto caminho interior, recortado de artérias vivas e cristalinas. A abóboda dilatou-se monstruosamente, atrás dela, a senda entre as árvores douradas perdeu-se num abismo incrível; a abóboda violeta curvou-se majestosamente sobre ela e depôs sombras silenciosas e encantadoras sobre o silencioso milagre esperado. Anselmo sabia que aquilo era a boca da flor, que no fundo da luxuosa planta amarela, na garganta azul, moravam seu coração e seus pensamentos, e que por esse caminho claro, gracioso, cristalino e ramificado, saiam e entravam a sua respiração e os seus sonhos.

      E ao lado do botão grande havia menores, ainda fechados, em ramos firmes e fortes, num pequeno cálice de pele verde-queimada, e acima deles o jovem botão se erguia tranquilo e forte, firmemente envolto em verde-claro e lilás; na parte de cima, entretanto, mostrava-se um violeta profundo e delicado, com espinhos finos. Sobre essas folhas ainda Na primavera da sua infância Anselmo corria pelo jardim verde. Uma flor entre as flores da mãe chama-se Espaldana e era-lhe especialmente querida. Ele encostava a face nas suas altas flores verde claras, apertava com os dedos as suas pontas afiadas, respirava seus botões grandes e maravilhosos e olhava longo tempo para dentro deles. Havia ali longas fileiras de pontas amarelas saindo do corpo azul-pálido da flor; entre elas corria acima e abaixo um caminho luminoso, pelo cálice, para o longínquo segredo azul do botão. Era a flor que ele adorava, assim olhava longamente para dentro dela, e via logo as partes finas e amarelas como uma grade dourada no jardim do rei, logo como um passeio duplicado de lindas árvores do sonho, que não são movidas por vento algum, e entre elas, iluminado, corria o secreto caminho interior, recortado de artérias vivas e cristalinas. A abóboda dilatou-se monstruosamente, atrás dela, a senda entre as árvores douradas perdeu-se num abismo incrível; a abóboda violeta curvou-se majestosamente sobre ela e depôs sombras silenciosas e encantadoras sobre o silencioso milagre esperado. Anselmo sabia que aquilo era a boca da flor, que no fundo da luxuosa planta amarela, na garganta azul, moravam seu coração e seus pensamentos, e que por esse caminho claro, gracioso, cristalino e ramificado, saiam e entravam a sua respiração e os seus sonhos.bem fechadas já se via artérias e mil sinais diferentes.

 

      Pela manhã, quando tornava a sair de casa, e do sono, e do sonho, e de mundos desconhecidos, ali estava o jardim, nunca perdido, e esperava por ele; onde ontem havia um duro espinho azul bem fechado, envolto numa casca verde, surgia agora, fresca e azul como o ar, uma jovem folha, como uma língua e como um lábio; buscava tateando sua forma e sua abóboda com que sonhou longamente; e onde ela ainda estava em luta com o seu invólucro, podia-se imaginar que estavam sendo preparadas finas plantas amarelas, um caminho claro e ramificado e longínquos e perfumados precipícios da alma. Talvez já ao meio dia, talvez à tarde ela estivesse aberta, erguesse uma tenda de seda azul sobre um bosque dourado de sonho, seus primeiros sonhos, pensamentos e cantos surgiriam tranquilos, vindos do precipício encantado.

 

      Um dia havia campânulas azuis, mais sonoras, na grama. Chegou um dia em que de repente havia um som novo e um novo perfume no jardim, e a primeira rosa-chá, vermelho-dourada e fresca, caía sobre uma folhagem vermelha, atravessada de sol. Um dia já não havia mais espadanas ali. Elas se foram, nenhum atalho suave conduzia mais ao segredo perfumado, as folhas rígidas eram estranhas, agudas e frias. Mas bagos vermelhos estavam maduros nas moitas, e sobre os ásteres voavam livres novas borboletas nunca vistas, e brincavam, vermelho-queimadas, com costas de madrepérola, em enxames vibrantes e de asas de cristal.

 

      Anselmo falou com as borboletas e com os calhaus, o escaravelho e o lagarto eram seus amigos, pássaros contavam-lhe histórias de pássaro, fetos mostravam-lhe secretamente, sob o telhado de folhas gigantes, as sementes marrons amontoadas; cacos de vidro verdes e cristais aprisionavam para ele o raio de sol e transformavam-se em palácios, jardins e tesouros resplandecentes. Se os lírios partiam, brotavam capuchinhos; se as rosas-chá murchavam, as amoras silvestres amadureciam; tudo se modificava, estava sempre ali e já não estava mais, desaparecia e voltava no devido tempo; e até os dias estranhos e temíveis, quando o vento frio agitava o pinheiro e fazia ressoar em todo o jardim a folhagem murcha, tão pálida e morta, até esses dias ainda traziam uma canção, uma aventura, uma história, até que de novo tudo desfalecia, neve caía diante das janelas, bosques de palmeiras cresciam sobre os vidros, anjos com sinos prateados voavam pela tarde e as campinas e o chão rescendiam a frutos secos. Nunca desaparecia a amizade e a confiança nesse mundo bom, e quando de repente, uma vez, sininhos de neve tornaram a brilhar ao lado de negras folhas de hera e os primeiros pássaros voaram alto nas novas alturas azuis, era como se tudo tivesse estado ali durante todo o tempo. Até que um dia, inesperado, mas bem como devia ser, surgia um primeiro botão azul de espadana.

 

      Tudo era lindo, tudo era bem vindo a Anselmo, tudo era seu amigo e confiava nele, mas o maior instante de encanto e graça para o garoto era, todos os anos, a primeira espadana. No seu cálice ele lera uma vez o primeiro sonho de criança, o livro do milagre, seu azul e seu perfume, distribuídos em mil tons, foram para ele a invocação e a chave da criação. Assim a espadana o acompanhou por todos os anos da sua inocência, era nova em cada novo verão, mais rica em segredos e mais emocionante. Outras flores também tinham boca, outras flores também exalavam perfume e pensamentos, outras também atraíam abelhas e escaravelhos para as suas câmaras doces. Mas o lírio azul tornara-se para o menino mais querido e importante que qualquer outra flor, ele lhe servia de comparação e exemplo para tudo que fosse imaginável e maravilhoso. Quando olhava o seu cálice, e perdido seguia em pensamento por essa senda clara e fantástica, entre os pequeninos arbustos amarelos, ao encontro do interior da flor, coberto por um crepúsculo, aí sua alma curvava-se sobre aquela porta, onde a aparição torna-se enigma e a visão torna-se pressentimento. Frequentemente, à noite, sonhava com esse cálice de flor. Via-o aberto diante de si, monstruosamente grande, como as portas de um palácio celeste; montava cavalo, voava sobre cisnes, e como ele voava e pairava o mundo inteiro, levado por magia ao abismo profundo, onde cada esperança devia tornar-se satisfação e cada pressentimento uma verdade.

 

      

 

      Cada aparição sobre a Terra é uma parábola, e cada parábola é uma porta aberta, pela qual a alma, quando já está preparada, pode ir ao interior do mundo, onde tu e eu e dia e noite somos uma só coisa. Para cada homem, aqui e ali em sua vida, aparece no seu caminho a porta aberta, a cada um ocorre uma vez o pensamento de que tudo o que é visível  é uma parábola, e que atrás da parábola moram o espírito e a vida eterna. Poucos atravessam a porta livremente, e mostram então o lindo brilho da verdade interior pressentida.

 

      Assim ao garoto Anselmo seu cálice de flor aparecia como a pergunta aberta e silenciosa, que sua alma fazia num pressentimento nascente de uma resposta feliz. Então toda sorte de coisas queridas tornavam a lhe aparecer, em conversas e jogos com a grama e as pedras, raízes, arbustos, bichos e todas as coisas agradáveis do seu mundo. Muitas vezes caía em profunda contemplação de si próprio, sentava-se abandonado à curiosidade do seu corpo, sentia, com os olhos fechados, ao engolir, cantando, ao respirar, estranhas emoções, sensações e idéias na boca e na garganta, e sentia ali também o caminho e a porta pelos quais se pode ir de alma em alma. Observava com admiração as significativas figuras coloridas, que pressentia serem lindas, mesmo com os olhos e os ouvidos fechados, pelo cheiro e pelo tato, manchas e semicírculos de azul e um vermelho profundo, e entre elas, claras linhas cristalinas. Às vezes Anselmo sentia, com uma emoção alegre e temerosa, as relações finas, variadas, entre olho e ouvido, olfato e tato, durante rápidos instantes ouvia sons, o alaúde, letras, parecidas e iguais a vermelho e azul, a duro e suave, ou se maravilhava ao cheirar uma hortaliça ou uma casca verde solta, e de como cheiros e gostos próximos se misturavam e muitas vezes penetravam um no outro e tornavam-se um só.

 

      Todas as crianças sentem assim, se bem que nem todas com a mesma força e o mesmo carinho, e há muitas para quem tudo isso desaparece e é como se nunca tivesse existido, logo que aprendem as primeiras letras. Em outras o segredo da infância continua próximo, durante longo tempo, e elas carregam consigo um resto daquilo e um eco até chegarem aos cabelos brancos e aos dias tardios e cansados. Todas as crianças enquanto ainda estão no segredo preocupam-se sem cessar com uma única coisa importante: consigo mesmas e com a enigmática relação de sua pessoa com um mundo em volta. Videntes e sábios, com os anos da maturidade, retornam a essas preocupações, a maioria dos homens, porém, esquece e abandona esse mundo verdadeiramente importante, já cedo e para sempre, e erra durante a vida inteira nas estradas coloridas da preocupação, dos desejos e objetivos, dos quais nenhum deles mora no seu interior, nem conduz ao lar.

 

      Os verões e os outonos da infância de Anselmo chegavam suavemente e partiam imperceptíveis, de novo e de novo floresciam e morriam as violetas, os lírios, as pervinces e rosas, lindas e ricas como sempre. Vivia com elas, as flores e os pássaros falavam-lhe, a arvore e a fonte o escutavam, e ele levou para o jardim, para a mãe, para as pedras coloridas do canteiro, suas primeiras escritas e sua primeira preocupação de amizade, à velha moda.

 

      Uma vez, entretanto, chegou uma primavera, que não soava nem cheirava como nenhuma das outras; o melro cantou e não era a velha canção; a íris azul floresceu e nenhum sonho, nem personagens de contos passeavam pelo caminho dourado do seu cálice. Os morangos riam escondidos nas suas sombras verdes, e as borboletas esvoaçavam brilhantes sobre as altas umbelas, e nada era mais como sempre, e outras coisas interessavam o garoto, e ele tinha muitas brigas com a mãe. Ele próprio não sabia o que era, e por que alguma coisa lhe doía e o incomodava continuamente. Só via que o mundo havia mudado e as amizades de até agora afastaram-se dele e deixaram-no só.

 

      Assim um ano passou, um outro ainda, Anselmo já não era uma criança, as pedras coloridas e o canteiro tornaram-se aborrecidos, as flores, mudas, o escaravelho, ele guardara numa caixa, preso com alfinetes, sua alma penetrara no desvio longo e duro, e as velhas alegrias estavam esgotadas e murchas.

 

      Impetuosamente o jovem entrou na vida que para ele só agora parecia começar. O mundo da parábola estava apagado e esquecido, novos desejos e caminhos atraíam-no para longe. Ainda havia infância nele, como um perfume no olhar azul e no cabelo macio, no entanto, não gostava quando o lembravam disso; assim cortou os cabelos curtos e pôs em seu olhar tanta audácia e sabedoria quanto pôde. Caprichoso, atirou-se aos temíveis anos de espera, bom aluno e amigo, logo sozinho e tímido, um dia mergulhado nos livros até a madrugada, outra vez, selvagem e barulhento, vindo de sua orgia. Teve de deixar o lar e só tornava a vê-lo raramente, durante curtas visitas, quando aparecia mudado. Crescido e bem vestido para a mãe. Trazia amigos, livros, sempre diferentes, e quando andava pelo jardim, o jardim parecia pequeno e calava-se diante do seu olhar distraído. Nunca mais leu histórias nos veios coloridos das pedras e das folhas, nunca mais viu Deus e a Eternidade no secreto botão da íris azul.

 

      Anselmo estudou, foi universitário, voltou à terra natal com uma boina vermelha, depois com uma boina amarela, com buço sobre os lábios e uma barba recente. Trazia livros em línguas estrangeiras, uma vez trouxe um cachorro, logo carregava poemas secretos numa pasta de couro, em seguida cópias de sabedorias antiquíssimas, em seguida retrato e cartas de moças bonitas. Voltou de novo e havia estado longe, nos países estrangeiros, viajara pelo mar em grandes navios. Tornou a voltar e agora era um jovem sábio, usava um chapéu preto e luvas escuras, os antigos vizinhos erguiam o chapéu diante dele e chamavam-no de professor, embora ele ainda não o fosse, Tornou a voltar e vestia roupas escuras e seguia magro e sério atrás do carro lento, no qual sua mãe jazia de um caixão enfeitado. E então só voltou raramente.

 

      Na cidade grande, onde Anselmo dava aulas aos estudantes e onde agora era tomado por um famoso sábio, ele andava, passeava, sentava-se e levantava-se exatamente como as outras pessoas do mundo, com paletós e chapéus elegantes, sério ou amigável, com olhos solícitos e às vezes um pouco cansados, e era um senhor e era enérgico como quisera tornar-se. Agora passava-se com ele o que tinha acontecido no fim da sua infância. De repente sentia que vários anos se haviam escoado atrás de si, ficou estranhamente só e insatisfeito, no meio do mundo ao qual sempre aspirara. Não era bem uma felicidade ser professor, não era nenhum grande prazer ser cumprimentado tão respeitosamente por cidadãos e estudantes. Tudo parecia murcho e empoeirado, a felicidade morava de novo num futuro distante, o caminho para lá parecia quente, poeirento e familiar.

 

      Nesse tempo Anselmo ia muito à casa de um amigo, cuja irmã lhe interessava. Agora já não corria facilmente atrás de um rosto bonito, isso também havia mudado, sentia que a felicidade devia chegar para ele de maneira especial e não seria encontrada debaixo da janela. A irmã de seu amigo agradava-lhe muito, frequentemente ele estava certo que a amava. Mas ela era uma moça especial, cada passo e cada palavra sua eram coloridos e marcados por um jeito particular, nem sempre era fácil acompanhá-la e encontrar com ela o mesmo passo. Quando às vezes, à noitinha, Anselmo caminhava acima e abaixo pela sua casa solitária e, pensativo, ouvia seus próprios ressoarem no quarto vazio, aí zangava-se consigo mesmo por causa da amiga. Ela era mais velha do que ele teria desejado que sua mulher fosse. Era muito especial, iria ser difícil viver ao seu lado e ao mesmo tempo prosseguir no sentido da sua ambição, pois disso ela nem queria ouvir falar. Ela também era muito forte e saudável, mas mal suportava festas e negócios. Gostava mais de viver com flores e músicas e algum livro em torno de si, num silêncio solitário, esperava que alguém viesse a ela e deixava o mundo seguir seu rumo. Às vezes era tão delicada e sensível que qualquer coisa estranha lhe fazia mal e começava facilmente a chorar. Então de novo, quieta e fina, irradiava uma felicidade solitária, e quem via isso sentia o quanto era difícil dar algo a essa linda e estranha mulher, significar alguma coisa para ela. Muitas vezes Anselmo acreditava que ela gostava dele, muitas vezes parecia-lhe que ela não gostava de ninguém, que era só delicada e amiga com todos e não pedia nada do mundo, além de ser deixada em paz. Ele, porém, queria outra coisa da vida, e se tivesse uma mulher quereria em casa vida, ruído e hospitalidade.

 

      – Íris – dizia-lhe – querida Íris, se pelo menos o mundo fosse diferente! Se não houvesse senão teu belo mundo, com flores, pensamentos e música, então eu também não desejaria senão estar toda minha vida ao teu lado, ouvir tuas histórias e viver contigo teus pensamentos. Só teu nome já me faz bem, Íris é um nome maravilhoso, não sei de que ele me faz lembrar.

 

      – Sabes – disse ela – que as espadanas azuis e amarelas chamam-se assim.

 

      – Sim – exclamou ele com uma sensação de angústia – isso sei bem, e só isso já é lindo. Mas sempre que digo teu nome, ele me faz lembrar uma outra coisa, não sei o que, como se estivesse associado dentro de mim a lembranças profundas, longínquas e importantes, e no entanto não sei e nem acho o que possa ser.

 

      Íris sorriu para ele, que, perplexo, alisava a testa com a mão.

 

      – Comigo se dá a mesma coisa – disse ela a Anselmo, com sua voz leve de pássaro – quando cheiro uma flor. Então meu coração sente sempre que ao perfume está ligada uma lembrança de alguma coisa extremamente bela e preciosa, que já foi minha uma vez e perdi. Com a música também se dá isso, e às vezes com poesias: aí alguma coisa cintila por todo um instante, como se a gente de súbito visse a terra perdida lá embaixo no vale e logo ela some e agente se esquece. Querido Anselmo, creio que estamos na Terra para isso, para essa meditação e procura e escuta dos sons longínquos e perdidos, e atrás deles está o nosso verdadeiro lar.

 

      – Que lindo o modo que falas – elogiou Anselmo, e sentiu no próprio peito um movimento doloroso, como se um compasso oculto (bússola?) indicasse ali irrecusávelmente seu longínquo destino. Mas esse destino era bem outro, que o que ele quisera dar à sua vida, e então seria honroso atirar sua vida aos sonhos de lindos contos de fada?

 

      Um dia, entretanto, o senhor Anselmo voltou de uma viagem e se sentiu recebido de maneira tão fria e triste por sua casa deserta que correu para ver seus amigos e estava decidido a pedir à linda Íris que lhe concedesse sua mão.

 

      – Íris – disse-lhe – não quero continuar vivendo assim. Foste sempre minha boa amiga, preciso dizer-te tudo. Preciso ter uma esposa, sem o que a minha vida estará vazia e sem sentido. E quem poderia eu desejar por esposa, senão tu, querida flor? Terás tantas flores quantas se puderem encontrar, terás o mais lindo dos jardins. Queres vir morar comigo?

 

      Íris olhou-o tranquila e longamente nos olhos, não sorriu nem corou, e respondeu-lhe com voz firme.

 

      – Anselmo, não estou surpresa com a tua pergunta. Gosto de ti, embora nunca tenha pensado em tornar-me tua esposa. Mas vê, meu amigo, exijo muitas coisas daquele cuja esposa devo tornar-me. Exijo mais coisas que a maioria das mulheres exige. Tu me ofereceste flores, e acha que está bem assim. Mas também posso viver sem flores, também sem música, poderia passar sem tudo isso e sem muitas outras coisas mais, se precisasse ser assim. Sem uma coisa, porém, não posso nem quero passar: não poderei nunca viver nem um dia em que a música não seja o mais importante no meu coração. Se viver com um homem, ele deve ser de tal modo que sua música interior se harmonize com a minha de maneira suave e profunda; e que sua própria música se una à minha num som puro e bom, deve ser seu único desejo. Podes fazê-lo amigo? Com isso provavelmente não continuarás famoso nem receberás horárias, tua cãs será silenciosa, as rugas que conheço sobre tua testa devem todas desaparecer. Ah, Anselmo, não dará certo. Vê, és feito de tal modo que sempre arranjas novas rugas para a tua testa e tens sempre novas preocupações, o que eu penso e sou, amas e acha bonito, mas para ti e para a maioria trata-se apenas de um fino brinquedo. Ah, ouve-me bem: tudo que para ti agora é brinquedo é minha própria vida e tudo a que dedicas tempo e preocupação é para mim um brinquedo, não há valor para mim em que se viva por isso. Não me modificarei, Anselmo, pois vivo segundo uma lei que está em mim. Poderás tu te modificar? E precisaria ser completamente diferente, para que eu pudesse ser tua esposa.

 

      Anselmo calou-se, surpreso com a vontade dela, que acreditara fraca e leviana. Calou-se e, distraído, esmagou com a mão nervosa uma flor que apanhara sobre a mesa.

 

      Aí Íris suavemente tomou-lhe a flor da mão. Isso foi para ele como uma severa censura, e deu um sorriso claro e alegre, como se inesperadamente houvesse descoberto um caminho na escuridão.

 

      – Tenho uma idéia – disse baixo e corada. – Vais achá-la estranha, ela vai parecer-te um capricho. Mas não é um capricho. Queres ouvir? E permitirás que ela decida sobre mim e ti?

 

      Sem compreender, Anselmo fitou a amiga com preocupação. Seu sorriso obrigou-o a confiar e ele disse sim.

 

      – Gostaria de te confiar um trabalho – disse Íris e imediatamente tornou-se muito séria.

 

      – Podes fazê-lo, é teu direito, resignou-se o amigo.

 

      – É algo sério – disse ela – e a minha última palavra. Tu a aceitarás como me sair da alma e não quererás explicações e não perguntarás a respeito, mesmo que não entendas imediatamente?

 

      Anselmo prometeu. Então ela falou, enquanto se levantava e estendia-lhe a mão:

 

      – Muitas vezes disseste-me que sempre que ouvias meu nome sentia a lembrança de alguma coisa esquecida, que já foi importante e sagrada para ti. É um sinal, Anselmo, e isso te trouxe a mim durante todos estes anos. Também acredito que perdeste e esqueceste em tua alma coisas importantes e sagradas, que primeiro devem despertar, antes que possas encontrar a felicidade e que ela se torne certeza para ti. Vai com Deus, Anselmo! Dou-te minha mão e te peço: vai e vê se consegues achar de novo na tua memória aquilo que meu nome te faz lembrar. No dia que encontrares partirei contigo como tua esposa para onde quiseres, e não terei um só desejo que não seja o teu.

 

      Atônito, Anselmo quis interrompê-la e considerar essa exigência um capricho, mas com um olhar claro ela o fez recordar sua promessa, e ele se calou. Com os olhos baixos tomou a mão de Íris, levou-a aos lábios e saiu.

 

      Em sua vida ele se encarregara de muitas tarefas, mas nenhuma havia sido tão estranha, importante, e ao mesmo tempo tão desanimadora como essa. Durante dias e dias rodou e pensou até o esgotamento, e sempre voltava a hora em que, desesperado e colérico, considerava essa tarefa toda como um capricho de mulher e tentava afastá-la do pensamento. Mas aí alguma coisa respondia profundamente no seu interior, uma dor oculta, muito fina, uma advertência suave, quase imperceptível. Essa voz fina que estava no seu próprio coração, dava razão a Íris e exigia a mesma coisa que ela.

 

      Essa tarefa só era difícil demais para aquele sábio. Ele devia lembrar-se de coisas que há muito tempo esquecera, devia tornar a achar um único fio dourado na teia há anos perdida, devia segurar nas mãos alguma coisa e oferecê-la à sua amada, e essa coisa não era senão um canto de pássaro, um vôo de alegria ou tristeza ao ouvir uma música; que era mais fino e etéreo e incorpóreo que um pensamento, mais nulo que um sonho noturno, mais indefinido que a bruma da manhã.

 

      À vezes, quando desanimado afastava tudo isso de si e desistia cheio de mau-humor, aí de repente começava a soprar dentro dele um vento de jardins distantes, ele murmurava o nome de Íris, dez vezes e muitas vezes, baixinho e brincando, como se ensaiam sons numa harpa afinada. – Íris – sussurrava, – Íris – e com uma dor fina sentia alguma coisa movendo-se dentro de si, como numa velha casa abandonada, sem motivo uma porta se abre e uma janela range. Experimentou a memória e chegou a descobertas estranhas e surpreendentes. Seu tesouro de memória era infinitamente menor do que jamais teria pensado. Anos inteiros faltavam e estavam vazios como folhas em branco. Viu que tinha dificuldade. Viu que tinha dificuldade em imaginar de novo claramente o rosto de sua mãe. Esquecera por completo o nome de uma moça, que quando jovem perseguira durante bem um ano inteiro com um ardente pedido de casamento. Lembrou-se de um cachorro que havia comprado por capricho quando estudante e que vivera e morava com ele por algum tempo. Levou dias até se recordar do nome do cachorro.

 

      Cheio de dor, o pobre homem via com tristeza e medo crescentes, como sua vida estava atrás dele, desfeita e vazia, não mais lhe pertencendo, estranha e sem relação com ele, como alguma coisa que um dia aprende de cor, e da qual agora se juntam ainda com esforço pedaços sem sentido. Ele começou a escrever, queria ano a ano para trás, assentar suas experiências mais importantes a fim de tê-las de novo nas mãos. Mas onde estavam suas experiências mais importantes? Ter-se tornado professor? Ter sido doutor, aluno, estudante? Ou que, numa época desaparecida, esta moça ou aquela lhe agradara por um tempo. Assustado ergueu os olhos, isto era a vida? Isto era tudo? E ele bateu na testa e riu selvagemente.

 

      Enquanto isso o tempo corria, nunca correra tão rápido e inexorável. Um ano passou, e a ele parecia que estava ainda exata, no mesmo lugar onde deixara, Íris. No entanto, mudara muito nesse tempo; todos o viam e sabiam. Envelhecera tanto quanto rejuvenescera. Para os seus conhecidos tornara-se quase um estranho, viam-no distraído, caprichoso e esquisito, consideravam-no uma coruja estranha, o que era pena, mas ele ficara solteirão muito tempo. Veio à tona que esquecia seus deveres e que seus alunos inutilmente o esperavam. Aconteceu dele furtivamente seguir por uma rua, com o paletó descuidado, em trapos, a limpar a poeira dos portais das casas. Muitos supunham que começara a beber. Outras vezes, porém, detinha-se no meio de uma conferência diante de seus alunos, procurava recordar de qualquer coisa, ria de maneira infantil e comovedora, como jamais alguém o vira fazer, continuava num tom de calor e emoção que tocava o coração de muitos.

 

      Há muito tempo um novo significado chegara para ele durante a inclusão desesperada por trás dos perfumes e sinais dispersos dos anos longínquos, do qual ele próprio, todavia, não sabia nada. Cada vez mais frequentemente, lhe parecia atrás daquilo, que até agora chamara lembranças, havia ainda outras lembranças, como sobre um velho mural pintado, muitas vezes por trás dos velhos quadros, quadros ainda mais velhos dormitam esquecidos. Ele queria recordar-se de alguma coisa, talvez o nome de uma cidade, onde uma vez passara dias como viajante, ou do aniversário de um amigo, ou de qualquer coisa, e enquanto revolvia e desenterrava como de escombros um pequeno pedaço de passado, de repente ocorreu-lhe algo diferente. Um sopro o atingiu, como um vento de abril ou como um dia nublado de setembro, ele sentiu um perfume, provou um sabor, sentiu sensações delicadas e escuras em algum lugar, na pele, nos olhos, no coração, e lentamente tudo se tornou claro: devia ter sido um dia, azul, quente, ou frio, cinzento, ou qualquer outro dia, mas o espírito desse dia devia ter ficado preso a ele e  se conservado como lembrança escura. Não conseguia reencontrar o dia de primavera ou inverno, que ele sentia e cheirava claramente, no passado real, não havia junto nomes nem números, talvez fosse no tempo de estudante, talvez ainda no berço, mas o perfume estava ali, e sentia algo vivo em si, que não conhecia, nem podia dar-lhe nome ou denominá-lo. Às vezes lhe parecia que essas lembranças do passado podiam muito bem ser um sinal para uma existência futura, embora risse disso.

 

      Muita coisa achou no seu passeio desesperado pelos abismos da memória. Muita coisa ele achou, que o emocionava e o tocava, muita coisa que o aterrorizava e amedrontava, mas uma coisa não encontrou: o que significava para ele o nome Íris.

 

      Uma vez também procurou, no desespero de nada encontrar, sua velha terra, viu de novo os bosques, os becos, os atalhos, as cercas, parou no velho jardim da sua infância e sentiu as vagas flutuarem no seu coração, o passado o envolveu como sonho. Triste e silencioso retornou. Sentiu-se doente e mandou embora todos que o procuravam.

 

Um, todavia, veio a ele. Era o seu amigo, que ele não vira mais desde o pedido a Íris. Chegou e viu Anselmo descuidado em sua cela sem alegria.

 

      – Levanta-te – disse-lhe – e vem comigo, Íris quer ver-te. – Sim – disse o amigo – vem! Ela quer morrer, há muito que está doente.

 

      Foram ver Íris que estava deitada sobre um divã, leve e pequena como uma criança, um riso claro nos olhos grandes. Deu a Anselmo sua leve e branca mão de criança, que ficou na dele como uma flor, e seu rosto estava como que iluminado.

 

      – Anselmo – disse ela – estás zangado comigo? Eu te impus uma dura tarefa, e vejo que lhe foste fiel. Continua procurando, e segue esse caminho até chegares ao destino! Pensava segui-lo por minha causa, mas o segues por tua causa. Sabes disso?

 

      – Eu o senti – disse Anselmo – agora eu o sei. É um longo caminho, Íris, e eu teria voltado há muito tempo, mas não encontro mais o caminho de volta. Não sei o que vai ser de mim.

 

      Ela o olhou nos olhos tristes e sorriu confiante, ele se debruçou sobre a sua mão fina, e chorou longamente, até que a mão ficou molhada das suas lágrimas.

 

      – O que será de ti, – disse ela com uma voz que só parecia lembrança, – o que será de ti não deves perguntar. Tu procuraste muito em tua vida. Procuraste a gloria, a felicidade, a sabedoria, me procuraste, a tua pequena Íris. Tudo isso só formam lindas imagem, elas te abandonaram como agora preciso te abandonar. Comigo também foi assim. Sempre procurei, sempre havia lindas e queridas imagens, e elas desapareciam sempre de novo e murchavam. Agora não sei de mais nenhuma imagem, não procuro mais nada, voltei ao lar e só tenho que dar mais um passo, então estarei em casa. Tu também chegarás lá, Anselmo, então não terás mais rugas sobre a testa.

 

      Ela estava tão pálida, que Anselmo desesperado exclamou:

 

      – Ah, espera ainda Íris, não vá embora ainda! Deixa-me um sinal de que não te perdi totalmente.

 

      Ela assentiu e pegou um copo ao seu lado, e deu-lhe uma fresca espadana azul, recém-aberta.

 

      – Toma minha flor, a Íris, e não me esquece. Procura-me, procura a Íris, então chegarás a mim.

 

      Chorando Anselmo segurou a flor nas mãos e chorando se despediu. Quando o amigo mandou-lhe um recado, voltou e ajudou a enfeitar o caixão com flores e a levá-lo à terra.

 

      Então a vida partiu-se atrás dele, parecia impossível continuar assim. Desistiu de tudo, deixou a cidade, o emprego e desapareceu no mundo. Foi visto aqui e ali, ressurgiu na sua terra e debruçou-se sobre a cerca do velho jardim, mas quando as pessoas perguntavam por ele e queriam tratar dele, havia desaparecido.

 

      A espadana continuou sendo sua amada. Muitas vezes ele se debruçava sobre uma, onde sempre a vira ficar, e quando mergulhava longo tempo o olhar no seu cálice, parecia-lhe estarem saindo do fundo azulado perfume e pressentimento de tudo o que já foi e de tudo o que vai ser, até que triste continuava, porque a satisfação não vinha. Era para ele, como se espreitasse uma porta semi-aberta e ouvisse os mais adoráveis segredos. Atrás de sua respiração, quando pensava que agora, naquele momento, tudo devia entregar-se a ele e satisfazê-lo, a porta se fechava e o vento do mundo cortava, frio, a sua solidão.

 

       Nos seus sonhos a mãe lhe falava, e agora ele sentia sua forma e seu rosto tão próximos como nunca em muitos anos. Íris lhe falava, e quando ele despertava ocorria-lhe alguma coisa em que pensava o dia inteiro. Não tinha pousada fixa, corria o país como um estrangeiro, dormia em cabanas, dormia nos bosques, comia pão ou comia frutos, bebia vinho ou bebia o orvalho das folhas e não sabia o que fazia. Para muitos era um louco, para muitos era um mágico. Muitos o temiam, muitos riam dele, muitos o amavam. Aprendeu o que nunca conseguiu, estar entre as crianças e tomar parte nos seus estranhos brinquedos, conversar com o ramo partido e com uma pedrinha. Inverno e verão passavam por ele, ele olhava o cálice das flores, o rio, o lago.

 

      – Imagens – dizia muitas vezes para si mesmo – tudo só imagens.

 

      Mas interiormente sentia um espírito, que não era imagem e ele o perseguia, e o espírito lá dentro algumas vezes podia falar, sua voz era a de Íris e a da mãe, e ela era de confiança e esperança.

 

      Milagres se deram com ele, e ele não se admirava. E assim uma vez andou na neve por um chão de inverno, na sua barba crescera gelo. E na neve, aguda e fina, havia uma linda planta de Íris, com um lindo botão solitário, e ele se debruçou sobre ela e sorriu, pois agora reconhecia aquilo em que Íris sempre e sempre o fizera pensar. Reconheceu de novo seu sonho de criança e viu entre os bastões dourados o caminho azul claro desanuviado conduzindo ao segredo e ao coração da flor, sabia que ali estava aquilo que procurava, ali estava o espírito que já não é mais uma imagem.

 

      E exortações foram de novo ao seu encontro, sonhos o conduziram, ele chegou a uma cabana, ali havia crianças, e estas lhe deram leite, e ele brincou com elas, e elas lhe contaram historias, lhe contaram que no bosque acontecera um milagre com os carvoeiros. Ali se viu aberta a porta do espírito, que só se abre cada mil anos. Ele ouviu e assentiu para a linda imagem, e foi embora, um pássaro na sua frente cantou nas folhagens do amieiro, tinha uma voz rara e doce como a voz da falecida Íris. Seguiu o pássaro que voava e saltava mais e mais sobre o riacho e para dentro de todos os bosques. Quando o pássaro calou e não se podia vê-lo nem ouvi-lo mais, ai Anselmo parou e olhou em volta. Estava num vale profundo, no bosque, um fio d’água corria tranquilo sob largas folhas verdes; fora isso tudo estava tranquilo e esperava. O pássaro, porém tornou a cantar no seu seio, com a voz querida, e o carregou mais adiante, até que parou na frente de uma pedreira coberta de musgo, e no meio dela abria-se uma fenda pequena e estreita, que conduzia ao interior da montanha.

 

      Um velho estava sentado diante da fenda, ele se ergueu ao ver chegar Anselmo, e exclamou:

 

      – Volta, homem, volta! Esta é a porta do espírito. Nenhum dos que aí entraram retornou.

 

      Anselmo olhou para frente pela porta de pedra, aí viu no fundo do morro perder-se um caminho azul, havia colunas douradas bem próximas de ambos os lados, o caminho descia para dentro como no cálice de uma flor monstruosa.

 

      No seu seio o pássaro cantava com uma voz clara, Anselmo passou por cima do guarda, entrou na fenda, pelas colunas douradas, no segredo azul do interior. Era Íris, em cujo coração ele penetrava, era a espadana do jardim da mãe, em cujo cálice azul ele pairava suspenso e quando foi em silencio ao encontro do crepúsculo dourado, de uma só vez estavam nele toda memória e toda a sabedoria, sentiu sua mão, ela era pequena e suave, vozes do amor soavam perto e confiantes, na sua orelha, soavam de tal forma, as colunas douradas brilhavam tanto, quanto naquele tempo na primavera da infância. Tudo lhe parecia música e luz.

 

      E seu sonho também estava ali de novo, aquele que sonhara quando garotinho, de que penetrava n cálice, e atrás dele entrava e escorregava junto todo o mundo das imagens, perdia-se no segredo que está atrás de todas as imagens.

 

      Anselmo começou a cantar baixinho e seu caminho conduzia lentamente ao lar.

 

 

 

Redação

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