Ligada a conspiradores, a revista “Seleções” exalta participação de civis em golpe de 64

Com 100 milhões de leitores em 13 idiomas, versão brasileira da “Reader´s Digest” deu espaço para Lincoln Gordon negar interferência dos EUA

Opera Mundi

Na esteira da revista de finanças norte-americana Fortune, outra publicação internacional que também deu grande espaço ao movimento civil-militar que depôs o presidente João Goulart em 1964 foi a Reader’s Digest, publicada em português com o nome Seleções.

No longo artigo “A nação que se salvou a si mesma”, a publicação exaltou a prontidão dos conspiradores civis, “defensores da liberdade e da democracia”, ao articular o golpe contra o presidente eleito. [clique aqui para ler a íntegra da reportagem original] A revista, contudo, tinha conhecimento de causa, pois a Reader’s Digest Publications do Brasil — editora que imprimia a Seleções no país — fazia parte do setor editorial do Ipês (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), entidade cujos líderes notoriamente participaram do movimento golpista.

Na edição de novembro daquele ano, sete meses após o golpe, a publicação deu grande destaque à reportagem, escrita originalmente em inglês, de Clarence W. Hall, jornalista que “passou algumas semanas no Brasil quando a revolução ainda estava viva na memória de todos”.

O longo e laudatório texto procura recriar o espírito de tensão vivenciado pela “sofrida classe média brasileira”, nas palavras da própria publicação. Para Seleções, os civis, ao verem-se “encurralados”, organizaram-se para “salvar o Brasil”. Assim, foram os industriais, a imprensa e as mulheres do CAMDE (Campanha da Mulher pela Democracia) que, com o empurrão final dos militares, uniram forças para dar o golpe e depor Jango.

A reportagem utiliza como fontes expoentes do setor empresarial, tais quais Glycon de Paiva, Harold Cecil Polland e Paulo Ayres Filho; além de uma liderança do movimento de mulheres que convocou a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, “Dona” Amélia Molina Bastos.

A revista também dá espaço para o embaixador norte-americano Lincoln Gordon fazer uma previsão, no mínimo, apressada: “Os futuros historiadores é bem possível que registrem a revolução brasileira como a mais decisiva vitória pela liberdade em meados do século XX”. O diplomata dos EUA diz ainda que seu país não interferiu em nada na questão brasileira — “nem um só dólar ou cérebro norte-americano foi empenhado nela!” —, contradizendo contatos supostamente feitos com os revoltosos e, até mesmo, o rigoroso acompanhamento de Washington.

No editorial, a revista não faz questão de esconder suas preferências e explicitar sua longa batalha contra “os vermelhos”: “Desde o seu primeiro número, um tema constante em Seleções do Reader’s Digest tem sido a ameaça que o comunismo representa para o nosso estilo democrático de vida”.

Reader’s Digest é uma das revistas mais tradicionais da imprensa ocidental. Fundada em 1922 por De Witt e Lila Wallace, foi, durante muito tempo, o periódico mais vendido nos Estados Unidos. Sua proposta editorial é republicar artigos e reportagens de diversos veículos da grande mídia, bem como produzir os seus próprios. A revista atinge cerca de 70 países, com 49 edições em 21 línguas diferentes. Nos últimos anos, vem sofrendo com a crise econômica que afeta diversos conglomerados de mídia, chegando a declarar, mais de uma vez, falência.

No editorial desta edição brasileira, o alcance mundial da revista é usado como um trunfo para Seleções: “mais de 100 milhões de pessoas do mundo inteiro terão oportunidade de meditar sobre os motivos que levaram os brasileiros à revolução de 30 de março de 1964 [sic]”.

Ipês e Reader’s Digest

Na reportagem, a revista confere relativo destaque à atuação das lideranças do Ipês, instituto fundado em 1961 “oficialmente” para defender a livre iniciativa e a economia de mercado, mas que uniu acadêmicos conservadores, empresários e militares para desestabilizar o governo Jango.

“O Ipês formou seu próprio serviço de informações, uma força-tarefa de investigadores (vários dentro do próprio governo) para reunir, classificar e correlacionar informes sobre a extensão da infiltração vermelha no Brasil”, relata Seleções.

A revista devia ter conhecimento de causa, pois a Reader’s Digest Publications do Brasil fazia parte, sob a figura do diretor da revista, Tito Leite, do setor editorial do Ipês. Conforme esquadrinhado por René Armand Dreifuss em seu 1964: a conquista do Estado, o Grupo de Publicações/Editorial da entidade era composto por figuras de peso como o general Golbery do Couto e Silva e os escritores José Rubem Fonseca, Augusto Frederico Schmidt e Raquel de Queiroz.

Além da Reader’s Digest, outras editoras e publicações que contribuíam com seus serviços para o Ipês eram: Agir, de Cândido Guinle de Paula Machado; O Cruzeiro, de Assis Chateaubriand; a gigantesca Artes Gráficas Gomes de Souza S.A., Gilberto Huber Júnior (Listas Telefônicas Brasileiras); e a Editora Saraiva, através de Adib Casseb e Paulo Edmur de Souza Queiroz.

* Colaborou Rodolfo Machado

Redação

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