Marine Le Pen e os bárbaros

Esta semana Marine Le Pen, líder da extrema direita francesa, comparou o afluxo de refugiados sírios às invasões bárbaras do Império Romano. Esta comparação é mais impertinente do que interessante.

Os bárbaros povoam a literatura romana desde o século I aC e I dC. Tito Lívio (Ab Urbe Condita Libri) refere-se a centenas de povos que os romanos combateram e assimilaram durante os primeiros séculos de sua existência. Somente no livro I de seus Comentários de La Guerra de Las Galias (Obras Maestras, Barcelona, Espanha, 1945), Júlio Cesar refere-se aos helvécios, secuanos, alóbroges, tigurinos, eduos, latóbrigos, rauracos, boyos, germanos, suevos, trevirences e galos*. Alguns séculos depois, todos estes povos já estavam mais ou menos romanizados. “Tu fizeste do mundo uma cidade” disse o galo-romano Rutilius Claudius Namatianus ao repreender Júlio César no século V.

O domínio romano na Gália deixaria de existir durante as invasões bárbaras https://pt.wikipedia.org/wiki/Migra%C3%A7%C3%B5es_dos_povos_b%C3%A1rbaros. Godos, ostrogodos, visigodos, hunos, alanos, alamanos, francos e outros povos invadiram a Gália e nela estabeleceram domínios temporários e duradouros. Os franceses modernos são descendentes destes bárbaros e dos galos-romanos que foram submetidos pelos invasores daquela porção da Europa.

A conquista da Gália por Júlio César terminou em 52 aC com a vitória na Batalha de Alésia https://pt.wikipedia.org/wiki/Batalha_de_Al%C3%A9sia . A Síria já havia sido conquistada por Pompeu em 64 aC https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%Adria_(prov%C3%Adncia_romana). As diferenças entre sírios conquistados por Pompeu e os bárbaros submetidos por Júlio César na Gália são evidentes.

No século I aC a Síria já era uma nação com estruturas de poder centralizadas em Damasco há vários séculos. A cultura era mais ou menos homogênea, a escrita era bem difundida e muito empregada pelos sírios. A Gália era povoada por diversos povos, muitos dos quais ágrafos. A escrita não era largamente utilizada naquela porção da Europa e o alfabeto usado entre os bárbaros da região era o grego. Quando os romanos chegaram à Síria encontraram cidades vibrantes e antigas cercadas por imensas muralhas de pedra. Na Gália os aldeamentos eram fortificados com paliçadas de madeira. 

É evidente, portanto, que os sírios estavam num estágio de civilização bem mais avançado que os antepassados de Marine Le Pen quer eles tenham sido galos-romanos, godos ou francos. Não me parece que ela mesma possa se dizer “romana”, mas é exatamente isto que a fala dela dá a entender.

A “romanidade” da líder da direita francesa é risível e não resiste a dois minutos de discussão histórica. De fato, a reação de Marine Le Pen a onda de refugiados sírios é histérica e, portanto, irracional. Os sírios modernos não são bárbaros, nem devem ser comparados aos antepassados dos europeus. Eles não estão invadindo a Europa para substituir um Império em declínio, tampouco pretendem conquistar territórios. Eles foram expulsos das suas cidades e casas por uma guerra civil que não desejaram. Os refugiados, quaisquer que sejam suas origens, são seres humanos e como tal devem ser tratados na forma da Lei Internacional (que garante o direito de asilo e reprime o racismo).

Uma última consideração. Não sou um cristão, mas fui catequizado quando era criança. Se não estou enganado, me parece que não haveria cristianismo na França se a religião pregada por Paulo de Tarso não tivesse fincado raízes em Antioquia, uma cidade na Síria. Quando chegou a Roma, a religião de Marine Le Pen já era praticada por sírios, só muito tempo depois se espalhou para o resto da Europa.  Ao rejeitar os refugiados sírios a líder da direita francesa rejeitou também a história do próprio catolicismo. Impossível esquecer que o catolicismo só se tornou a religião dos gentios (e não apenas de judeus como queria Pedro), após o Incidente de Antioquia https://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_de_Tarso#O_Incidente_em_Antioquia.

 
 

*ortografia espanhola

Fábio de Oliveira Ribeiro

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