Morte do Leiteiro, por Carlos Drummond de Andrade

 

Dia D – Dia Drummond

“Morte do Leiteiro” é um poema de Drummond do livro ‘A Rosa do Povo’ publicado em 1945.  O texto aparece, segundo o professor Alexandre Pilati, no panorama literário mais amplo dos anos 30 e 40 no qual o o poeta é levado a se posicionar frente a acontecimentos como o surgimento do facismo, a Guerra Civil Espanhola e Segunda Guerra Mundial

 

o poeta diz o poema “Morte do Leiteiro”

 

Morte do Leiteiro (A Cyro Novaes)

 

Há pouco leite no país,

é preciso entregá-lo cedo.

Há muita sede no país,

é preciso entregá-lo cedo.

Há no país uma legenda,

que ladrão se mata com tiro.

Então o moço que é leiteiro

de madrugada com sua lata

sai correndo e distribuindo

leite bom para gente ruim.

Sua lata, suas garrafas

e seus sapatos de borracha

vão dizendo aos homens no sono

que alguém acordou cedinho

e veio do último subúrbio

trazer o leite mais frio

e mais alvo da melhor vaca

para todos criarem força

na luta brava da cidade.

 

Na mão a garrafa branca

não tem tempo de dizer

as coisas que lhe atribuo

nem o moço leiteiro ignaro,

morados na Rua Namur,

empregado no entreposto,

com 21 anos de idade,

sabe lá o que seja impulso

de humana compreensão.

E já que tem pressa, o corpo

vai deixando à beira das casas

uma apenas mercadoria.

 

E como a porta dos fundos

também escondesse gente

que aspira ao pouco de leite

disponível em nosso tempo,

avancemos por esse beco,

peguemos o corredor,

depositemos o litro…

Sem fazer barulho, é claro,

que barulho nada resolve.

 

Meu leiteiro tão sutil

de passo maneiro e leve,

antes desliza que marcha.

É certo que algum rumor

sempre se faz: passo errado,

vaso de flor no caminho,

cão latindo por princípio,

ou um gato quizilento.

E há sempre um senhor que acorda,

resmunga e torna a dormir.

 

Mas este acordou em pânico

(ladrões infestam o bairro),

não quis saber de mais nada.

O revólver da gaveta

saltou para sua mão.

Ladrão? se pega com tiro.

Os tiros na madrugada

liquidaram meu leiteiro.

Se era noivo, se era virgem,

se era alegre, se era bom,

não sei,

é tarde para saber.

 

Mas o homem perdeu o sono

de todo, e foge pra rua.

Meu Deus, matei um inocente.

Bala que mata gatuno

também serve pra furtar

a vida de nosso irmão.

Quem quiser que chame médico,

polícia não bota a mão

neste filho de meu pai.

Está salva a propriedade.

A noite geral prossegue,

a manhã custa a chegar,

mas o leiteiro

estatelado, ao relento,

perdeu a pressa que tinha.

 

Da garrafa estilhaçada,

no ladrilho já sereno

escorre uma coisa espessa

que é leite, sangue… não sei.

Por entre objetos confusos,

mal redimidos da noite,

duas cores se procuram,

suavemente se tocam,

amorosamente se enlaçam,

formando um terceiro tom

a que chamamos aurora.

Redação

1 Comentário

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  1. Obrigada

    Saindo do chavões: “obrigada por compartilhar, obrigada pelo presente “… confesso que esse poema de Drummond me seduziu, em garota, a ler sua obra.Tem uma dramaticidade tão grande, que seduz. O contexto social, a imagem plástica … tudo nele é lindo.

    Quando comprei o exemplar de “Drummond em frente e verso”, na Bienal em SP, lá se vão quase 3 décadas, vi que acompanhava o encarte um disquinho 45 rotações, compacto duplo, Drummond dizendo seus poemas. Ali pude ouvir meu pai poeta ler seus versos, pela primeira vez.

    Tenho uma ligação extra corporal com Minas, mais por Drummond, desde sempre, do que por minhas raízes mineiras, só recentemente tatuadas em mim.

    Isso é lindo!

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