Mudando de fase

Costumamos nos esforçar para ver o mundo de uma maneira coerente. De fato, a maioria das pessoas tem uma preocupação mínima com a coerência lógica (permita-me o pleonasmo), a exigência usual é de uma coerência com os costumes, com a normalidade. Todo o esforço das pessoas comuns consiste em se familiarizar com as coisas, tornar o hoje igual ao ontem, uma lástima. Consegue-se isso eliminando toda a natureza milagrosa das coisas. Mas é dessa forma que deixamos de ser crianças e que evitamos a loucura, (teria sido melhor, provavelmente, identificar a loucura à tristeza, mas a identificamos com a estupefação, o que deve ser muito mau sinal, aliás). Somos escravos do tédio.

Proponho certa identificação da loucura com a tristeza: não pode haver loucura alegre; e a tristeza vazia, a tristeza sem causa real, é forte indicação de loucura. A tristeza deve existir para corrigir, ou readaptar a pessoa a algum tipo de perda. A morte de uma pessoa querida, por exemplo, deve evocar tristeza. Tristezas sem causa aparente, sem objeto, são indicativos de disfunção psíquica, de algum tipo de loucura. Perceba que nosso mundo é fortemente patogênico, dada a quantidade de pessoas a buscar felicidade química. A felicidade química, aliás, é utilizada para fragilizar as pessoas e mantê-las cativas, verdadeira arapuca.

Costumamos admitir, ou melhor, pressupor, que nosso mundo tem uma coerência; por exemplo, vejo uma sala ao meu redor e essa sala não poderá desaparecer sub-repticiamente; caso ela desapareça assim, sendo substituída por um quarto de dormir, pressuporei que tive uma perda de sentidos e que fui levado ao outro cômodo enquanto estava desacordado. Não me será aceitável concluir que a sala em que estava se transformou repentinamente em um quarto; transformações desse tipo nos seriam indicativos de loucura e imediatamente corrigidas. Seria mais adequado que identificássemos tais descontinuidades, transformações como essa e outras, à infantilidade e não à loucura. Crianças podem perceber o mundo assim, de forma desconexa; adultos que o permitam serão taxados de loucos, mesmo que o façamos alegremente.

Penso que estejamos prestes a mudar de fase, como em um videogame. Não sei quanto a vocês, mas eu adorarei passar pra outra fase, essa já se esgotou. Não que esteja tediosa, não está (o tédio é um monstros imenso que aterroriza um enorme contingente de loucos; o tédio é filho da loucura e dependente dela. Nossa maior riqueza é o tempo; o tédio é a ilusão de que o tempo seja cruel. Tempo é vida), mas uma nova fase promete novidades assombrosas!

Como passar para uma nova fase? Não sei, mas me parece óbvio que, para permitirmos tal acontecimento, temos que abdicar da exigência de continuidade. Deveremos então permitir a transmigração para a ambientação da nova fase de maneira infantil, sem exigirmos a coerência absurda que costumamos impor ao mundo. A infinitude presente em cada momento nos assegura uma ampla diversidade de possibilidades a cada instante; alegria será a medida da sanidade: tristeza é loucura.

De qualquer modo, embora eu não tenha ideia de como conseguir mudar de fase, uma coisa me é certa: não será através da normalidade. A normalidade talvez tenha como objetivo exclusivo nos manter nessa fase atual, talvez essa seja a fase da normalidade, de qualquer modo ESSA normalidade em que vivemos é a normalidade da fase que quero superar.

Atente, por exemplo, às cores e não as tema. Talvez se perceba, eventualmente, em algum mundo em negativo, ou cercado por pessoas roxo-esverdeadas. Não as tema, busque-as, busque a visão alternativa; não são monstros, são seus olhos (a prática de meditação será de grande valia para a manutenção do auto-controle). Deixe-se guiar pela curiosidade, não pelo medo.

Sintonias

Outra abordagem do mesmo tópico consiste na percepção das sintonias. Podemos ver nossa inserção no mundo como uma espécie de receptor. Somos análogos, em certa medida, a aparelhos de rádio, ou TV, sintonizando e captando o mundo ao redor. Crianças saem pelo mundo experimentando giros em seus seletores de canal, sendo “corrigidas” pelos pais e induzidas, ou guiadas, a sintonizar os mesmos canais que eles e a manter-se assim, congeladas em um único canal, para sempre.

Parece bastante tolo termos que escolher um único canal e nos manter nele, mas em nosso mundo somos obrigados a fazer isso. Só nos permitimos mudar de canal com o auxílio de cogumelos, ayauasca ou congêneres, e mesmo esses são proibidos, embora nem tanto quanto a mudança de canal, sinal de loucura, aos olhos dos tolos.

Bem, um dia você foi levado a sintonizar em um canal e congelar nele; é assim que deixamos de ser crianças. Agora, suponha que, por um azar, você tenha congelado em um canal análogo a um desses de pregação de crente! Veja a tragédia. Pode ter acontecido. Como ser feliz sintonizado em um canal assim? talvez seja impossível. O remédio, então, será mudar de canal, de sintonia, ou de fase, conforme a terminologia. Aliás, acho que a próxima fase consistirá no domínio do seletor de canais, ou da posse do controle remoto, o que corresponde ao mesmo. Pareceremos uns loucos! Rarararara.

Mas, anime-se, permita-se guiar pela alegria, evitando os canais entediantes – recomendação bastante óbvia, aliás, quem precisará dela? – mas não é o que costumamos fazer, tememos a loucura, o absurdo, a estupefação com a magia miraculosa do mundo, com o milagre correspondente a cada momento único de nossa existência!

Temos sido escravos do tédio, estamos muito doentes.

 

 

@page { margin: 2cm }
p { margin-bottom: 0.25cm; line-height: 120% }
a:link { so-language: zxx }

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador