O devir-negro da humanidade [Diálogos com o teatro]

Três Pretos: Valor de Uso, espetáculo da Sociedade Abolicionista de Teatro, com dramaturgia e direção de José Fernando Peixoto de Azevedo, e em cartaz no Sesc Pompéia até 1º de dezembro, é uma peça densa e intensa, um chacoalhar para nosso quotidiano conflagrado – explicitação do retorno de um passado mal resolvido em uma estrutura caduca e destrutiva. A guerra pelo petróleo do texto apresentado na pele negra dos negros das fazendas de café. A Guerra do Paraguai, a promessa de alforria para os que sobrevivessem à barbárie encetada pela dita civilização – a promessa reiterada e nunca cumprida. Até hoje. A guerra, a guerra contra o terror, a guerra de extermínio; a guerra, o terror e o extermínio – o devir-negro da humanidade, a condição do negro como antecipação da condição de todos.

A montagem de José Fernando segue seus últimos trabalhos: a eliminação da coxia, com as estruturas do teatro a vista e a equipe técnica em palco; três telões ampliam – amplificam – e repetem detalhes da cena: parte da linguagem cinematográfica trazida para o palco, sem com isso abandonar a linguagem teatral (diferentemente da pirotecnia kitsch de um Robert Lepage, que mimetiza o cinema no palco, perdendo as potências possíveis de ambas as linguagens); o texto é denso, mas não ocupa todo o tempo, evitando uma peça muito erudita ou pesada (a última fala é uma crua denúncia da situação atual); a encenação acrescenta camadas que palavras dariam conta com muita dificuldade – se dessem. A cena do estupro, logo no início, é particularmente violenta, não por trazer a violência bruta e embrutecedora (do público, inclusive), já marcada antes pela briga animalesca entre os três – que faz, paradoxalmente, o agradável odor de café sobre o qual lutam ocupar todo o teatro -, e sim por conseguir transmitir a agonia, o lento passar do tempo nos homens que se revezam sobre o corpo da mulher – por mais que não seja uma cena demorada ou arrastada: o corpo vulnerável, os homens que a violam quase burocraticamente, o rosto de agonia da vítima projetado no telão – a violência estampada sutilmente nos detalhes, muito mais que na efetivação do coito forçado.

A peça se passa numa fazenda de café, na Guerra do Paraguai, em algum campo de batalha genérico, em qualquer guerra pelo petróleo no Oriente Médio ou no “oriente americano” – Venezuela ou Brasil pós-pré-sal e pós-golpe. Fronteiras que se multiplicam e ensejam mais motivos para guerras sem razão alguma – que não a perpetuação de um sistema estruturado para implodir a si próprio e ao planeta e às pessoas que o habitam. Estamos todos em perigo: o estado de guerra leva à dissolução do social – e todos sabemos quem serão os primeiros abatidos nessa guerra, também sabemos que após os primeiros, serão abatidos os que se sentiam imunes (e impunes) até então. É luta de classes – porém é também guerra racista, sexista. A peça identifica os corpos vulneráveis da guerra, sem, contudo, apontar culpados: uma questão estrutural, um novo ethos do estar-no-mundo capitalista – eventual desejo de morte do patrão não é em vista de um mundo sem oprimidos, antes o desejo de assumir seu papel de opressor. Que nome dar a essa situação? O autor propõe que o termo fascismo antes nos inibe o enxergar do que uma análise mais acurada do que estamos passando – talvez outras ligações com nosso passado mal contado e mal resolvido.

A Guerra do Paraguai é uma lembrança que deveria ser dolorosa a todo continente – negros transformados em máquina de destruição arrasam um país e quase toda sua população em nome de lucros dos brancos de sempre e com a promessa de uma liberdade que não conhecem nem conhecerão. Humaitá não é um lugar, é uma passagem – se tivéssemos uma história para contar.

25 de novembro de 2018

 

Redação

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