Um dos grandes negócios do momento é o da entrega de bases públicas a empresas de tecnologia. A jogada é sempre a mesma. As grandes bases de dados têm enorme valor monetário. O gestor entrega para uma empresa de tecnologia, a pretexto de ajudar a organizar os dados. Anuncia como “pro bono” – isto é, as empresas agraciadas nada irão cobrar para assumir o controle da base de dados. Ou seja, em vez de pagarem, saem como beneméritas por nada cobrarem.
Confira alguns casos desse mercado nebuloso:
1. Serra e o caso Experian
No final do seu governo, José Serra entregou à Experian – empresa inglesa que havia adquirido a Serasa – toda a base de dados do Cadin (Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público). Logo depois, sua filha Verônica Serra adquiriu uma empresa de email marketing, a Virid, e revendeu para a Experian por várias vezes o valor pago. Na época, entrei em contato com a Bolsa de Londres – a Experian era empresa de capital aberto, solicitando informações sobre o preço pago pela Virid, mas foi alegado sigilo.
2. Dória e o caso Neoway.
Prefeito de São Paulo, João Dória Jr cedeu à empresa Neoway toda a base de dados de funcionários da Prefeitura. Alegou que a empresa estava ajudando a organizar os dados “pro bono”. Tempos depois, a Neoway foi acusada de suborno na Petrobras e em cinco casos em Santa Catarina. Seu fundador foi afastado pelos sócios americanos e presidia a Lide Santa Catarina.
3. O site das Verônicas
Nos tempos de Jopsé Serra Ministro da Saúde, uma empresa montada por Verônica Serra e Verõnica Dantas, conseguiu acesso a toda a base de dados de clientes de comércio exterior do Banco do Brasil. Quando no tema vazou, o BB recuou.
4. A licitação da Zona Azul de São Paulo.
Foi uma licitação de cartas marcadas, vencida pela Estapar, empresa ligado ao BTG Pactual. Na definição do valor mínimo, levou-se em conta apenas a venda da cartões de estacionamento, deixando de lado uma bse de dados de 3,5 milhões de cartões de crédito, muito mais valioso que a venda de cartões.
5. O clube de descontos do Ministério da Economia.
Em uma decisão inusitada, o Ministérios da Economia, de Paulo Guedes, ofereceu um milhão de CPFs do setor público federal em uma licitação para clube de compras. As condições eram escandalosas:
– Não haverá nenhuma forma de pagamento, nem de porcentagem sobre as vendas. Tudo irá para a empresa cadastrada.
– As empresas selecionadas terão acesso à toda base de dados do funcionalismo público. Esse risco fez com que a Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), solicitasse a suspensão do edital, receosa de que o governo entregues grupos privados os dados pessoais dos profissionais.
– Todo o marketing será proporcional pelo Estado, através dos seus sites e de outras formas de comunicação com o funcionalismo.
– O Estado ficará com responsabilidade sobre todas as repercussões do trabalho, incluindo multas e indenização de danos a terceiros.
– Os sistemas tecnológicos utilizados exigem que, para a primeira compra, o funcionário preencha questionários indicando todos seus campos de interesse.
O caso Barroso
Agora há pouco, o MinIstro Luís Roberto Barroso anunciou a entrega de toda a base de dados jurídica brasileira – do Supremo Tribunal Federal e de todos os tribunais estaduais.
Segundo ele, Google, Microsoft e Amazon receberão as bases de dados e montarão “pro bono”, sistemas de inteligência artificial, juntando jurisprudência do Supremo, organizando os processos, definindo as etapas.
Tempos atrás, uma presidente do Tribunal Superior Eleitoral anunciou a entrega da base de dados para uma empresa. Foi alertada a tempo sobre o valor econômico da base e recuou. Tinha o benefício da ignorância para negócios empresariais.
Já Barroso, por sua ampla experiência na advocacia empresarial, não pode ceder a esses impulsos.
Não há a menor dúvida de que a inteligência artificial irá facilitar a vida de todos. Como não há a menor dúvida de que bancos de dados públicos são ativos valiosos, que não podem ser disponibilizados ao bel prazer de uma pessoa.
E é fantástico Barroso dizendo que foi ele quem colocou o desafio para as bigtecs e elas prometem entregar. Ele menciona um conjunto de características da IA, já disponíveis em inúmeros programas, como se ele próprio tivesse encomendado às empresas.
Como assim “pro bono”? Essas bases de dados alimentarão aplicativos, que serão comercializados, terão valor monetário.
Os demais Ministros do STF, assim como o Tribunal de Contas da União, não podem deixar uma decisão dessa envergadura – e desse valor – nas mãos de uma única pessoa.
Resposta de Barroso
Nota ao Jornal GGN
Ao contrário do que diz o texto, o presidente do STF e do CNJ, Luis Roberto Barroso, não entregará a base de dados jurídica brasileira a nenhuma empresa. As empresas – bigtechs ou startups – usarão dados públicos, disponíveis para consulta nos sites dos tribunais a qualquer cidadão. Inclusive esses dados já são consultados diariamente pela comunidade jurídica, acadêmica e pela imprensa por meio de programas que alimentam sistemas próprios para acompanhamento de processos ou cruzamento de informações.
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A coisa é um pouco pior do que você imagina, Nassif. A julgar pela decisão que Dias Toffoli proferiu num processo meu (voto acompanhado pelos colegas dele no STF) a tigrada da cúpula do Judiciário não tem a menor noção do que é é como funciona uma inteligência artificial e o valor que os dados acumulados tem para as empresas que criam e treibam redes neurais artificiais.
https://www.linkedin.com/posts/f%C3%A1bio-de-oliveira-ribeiro-272376155_embargos-de-declara%C3%A7%C3%A3o-activity-7120067711732228096-ilH6?utm_source=share&utm_medium=member_android
Oxalá que não tenham mesmo noção do potencial da IA. De certa forma tranquiliza que seja meramente desconhecimento.
Meu Deus do céu! Afora tudo o que já foi dito acima, há ainda a grave questão de cessão de soberania. Algoritmos opacos (uma total caixa preta no caso da IA) de empresas estrangeiras “auxiliando” magistrados no exercício de um poder de Estado? Socorro!