Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
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Pós-pandemia, revolução urbana e de saúde pública, por Ion de Andrade

Apesar desse artigo versar sobre o pós-pandemia, é bom que se diga que ela não vai embora tão cedo, mas conhecerá recuos, como os que estão ocorrendo em alguns estados do Brasil, como o Ceará ou o Rio Grande do Norte.

Ilustração LexLatin

Pós-pandemia, revolução urbana e de saúde pública, por Ion de Andrade

A pandemia de Covid-19 liberou energias da sociedade como nenhum outro evento poderia ter liberado, exceto uma guerra. Ela mobilizou recursos materiais e de inteligência, acentuou lutas políticas, exigiu uma reflexão coletiva gigantesca, que vem se exprimindo por uma explosão de “lives” e de reuniões de trabalho focadas em tópicos sempre relacionados a ela, sob inúmeros aspectos. Vivemos numa espécie de Assembleia Geral permanente.

Além disso, sucedendo a um século tecnológico, no qual todas os desafios pareciam se curvar à tecnologia, a pandemia mostrou a vulnerabilidade e a precariedade da vida diante de doenças desconhecidas, nos obrigando ao óbvio reconhecimento de que somos a velha humanidade de sempre, a que que morreu aos milhares de peste negra, de gripe, de cólera ou de varíola.

Mais do que isso, a Covid-19 obrigou cada sociedade a um encontro com ela mesma. No Brasil, claramente, as desigualdades sociais demonstraram uma maior letalidade entre os mais pobres e uma menor capacidade desses segmentos de proteger o seu elo mais frágil: os idosos. Os pobres, e sobretudo os velhos pobres, vêm pagando nessa pandemia a fatura cheia com internamentos graves e óbitos. As periferias, jovens que são, “envelheceram” a mortalidade por Covid-19 no Brasil avolumando os óbitos não de pobres genéricos, mas de velhos pobres, seres duplamente invisibilizados pela pobreza e pela velhice.

O SUS emerge como sistema crucial e vitorioso e os colapsos completos em sistemas de saúde que ocorreram até mesmo na Europa, aqui foram pontuais, mostrando, por um esforço hercúleo, sobretudo dos governadores e de alguns prefeitos, a inacreditável resiliência do sistema que, sim, conseguiu internar a imensa maioria do seus doentes, salvando milhares de brasileiros.

O SUS, entretanto, tem trabalhado a meia máquina, com um Governo Federal que para além do proposital e reiterado mal exemplo do seu mais alto mandatário, que saiu às ruas, motivou aglomerações, dificultou o desembaraço de respiradores importados por estados e municípios na Receita Federal, vem mantendo há meses um ministro da saúde interino, sem experiência de gestão com a saúde…

Apesar desse artigo versar sobre o pós-pandemia, é bom que se diga que ela não vai embora tão cedo, mas conhecerá recuos, como os que estão ocorrendo em alguns estados do Brasil, como o Ceará ou o Rio Grande do Norte.

Não nos iludamos com esses recuos, porque eles tomam parte da dança. O predador continua solto e os susceptíveis são em número muito superior ao que o dos imunizados. A doença continuará como parte do cenário epidemiológico do Brasil, até que chegue a vacina.

Um dia, porém, a pandemia vai pertencer ao passado e vai deixar um farto material de reflexão para a sociedade. As ideias que ganharem consenso nesse processo de digestão social da experiência terão um poder gravitacional muito forte e poderão dirigir o processo histórico no longo prazo respondendo então aos desafios de hoje. Estejamos atentos a isso para que a mediocridade e o patrulhamento ideológico não matem a oportunidade histórica.

A revolução na Saúde Pública

No Brasil, temos chamado o movimento que vai modelando o acesso universal à Saúde, de Reforma Sanitária. Trata-se de um conceito crucial em torno do qual uma pressão política que foi construída através das gerações materializou o Sistema Único de Saúde.

Estou chamando de Revolução na Saúde Pública um movimento que não é antagônico à Reforma Sanitária, ao contrário, mas que deve se posicionar historicamente para terminar de construir o acesso universal à saúde num contexto em que a ideia de sistema Público signifique efetivamente que atende à nação (e não somente àqueles que não podem pagar um plano de saúde) por ter galgado, como sistema, nível de excelência em todos os requisitos desde a qualidade das instalações em toda a rede, em níveis de dignidade para profissionais e usuários, à boa hotelaria hospitalar, à comodidade dos agendamentos e à facilidade na obtenção de exames, consultas e tratamentos especializados, cuja dificuldade de obtenção martiriza os usuários.

A Pandemia mostrou que o Brasil não pode mais aceitar ter que importar respiradores, tecnologicamente muito simples, para enfrentar uma epidemia. O SUS deverá, portanto, também estar alicerçado num robusto complexo científico, industrial e tecnológico capaz de dotar o Brasil de autossuficiência nos diversos segmentos da saúde, desde a produção de medicamentos ao da produção científica e das tecnologias de diagnóstico e tratamento.

Ao lado disso, na Atenção Primária à Saúde (APS) o SUS deverá enfrentar e vencer os desafios postos por um modelo assistencial obsoleto que evoluiu de curativista que foi para outro centrado nas políticas e nos programas oficiais, sem nunca ter conseguido colocar os problemas reais dos usuários do sistema, das pessoas, no centro do modelo assistencial.

A APS executa políticas, faz visitas de prevenção à dengue mas não tem como tampar caixas d’água ou como resolver os problemas de acúmulo de lixo ou de drenagem, porque não se conecta com as áreas responsáveis pelas obras públicas no município.

Visita as famílias e enxerga problemas mas não consegue resolver aqueles que excedem os limites dos programas, principalmente os que afligem as famílias mais vulneráveis que vivem situações indescritíveis, que extrapolam o poder de intervenção da saúde transbordando para a responsabilidade, (às vezes também não prevista), da Assistência Social, da Segurança Pública ou da Rede de Proteção a crianças e mulheres.

Isso significa que a APS, com a capilaridade e capacidade de diagnosticar os limites e problemas do cotidiano do povo, deveria tomar parte, com papel dirigente, dos planos municipais de desenvolvimento, produzindo a agenda de novas políticas públicas, novas obras necessárias e novos equipamentos coletivos capazes de ser alma desse novo modelo assistencial centrado no cidadão e nos seus problemas reais, fazendo com que as demais áreas do Poder Público se obrigassem também a colocar o cidadão no centro de suas políticas.

Essa condição de semente de desenvolvimento social da APS a retiraria do jugo do cumprimento cego de programas que, mesmo devendo ser cumpridos, só visam resolver o que previram, o que abandona à própria sorte os numerosos casos que não se enquadram nos seus limites.

Eis a guerra que temos que mover.

A revolução urbana

A Reforma Urbana, à exemplo da Reforma Sanitária, é o movimento de longo prazo que deu às cidades no Brasil o que temos de institucionalidade. Tal institucionalidade, tornou obrigatória, através do Estatuto das Cidades o que se denomina de “gestão democrática das cidades” e que se consubstancia numa tomada de decisões mediada por Conselhos, num arcabouço legal complexo em torno do qual se dão as lutas por sua garantia.

Tais lutas estão eminentemente centradas nas questões de moradia, uso e ocupação do solo, mobilidade, saneamento ou riscos ambientais e sua ênfase é a da garantia desses direitos que estão previstos nesse arcabouço normativo cujo acesso, dada a sua complexidade, só é transparente para profissionais do direito ou para os minoritários urbanistas da academia que se interessam pelo povo.

As lutas são, por tudo isso, fragmentadas ao nível de cada município, a pauta e a agenda emergem das urgências e necessidades urbanas e a participação popular nesse desenho é infelizmente rala.

Toda essa dinâmica das lutas se preenche de grande peso gravitacional e mobiliza corações e mentes dos mais capazes e generosos profissionais do direito e urbanistas, que estão, para exemplificar a importância das batalhas, lidando, por exemplo, com graves problemas de remoção de famílias de assentamentos sem que tenham alternativa de nova moradia; ou de risco ambiental iminente, condições onde apenas a militância aguerrida e o profundo conhecimento técnico são capazes de fazer a diferença para uma dada comunidade vulnerável.

Entretanto, esse peso gravitacional produz, como contraponto, a dificuldade ou inviabilidade de que se agreguem à essa dinâmica variáveis novas, não previstas, centradas desta feita não nessas inegáveis necessidades por vezes emergenciais, ou no escopo legal, mas na subjetividade do povo e de como Ele concebe e sonha, para além das leis e das necessidades, o seu futuro; cuja construção poderia incluir, até mesmo numa ordem de prioridades diversa da que poderia parecer “razoável”, numerosas outras necessidades, objetivas e subjetivas, que persistem sem previsão legal.

De quê falamos? De tudo o que toca ao acesso à contemporaneidade pelos mais pobres sob todos os seus matizes. De que apesar de muitas leis, nenhuma assegura a uma comunidade vulnerável o direito a uma biblioteca no bairro, ou a conversão do riacho fétido numa alameda beira rio iluminada por onde as famílias possam simplesmente passear com as crianças… Em suma, falamos de coisa muito próxima do Direito à Cidade como concebeu Lefèbvre.

Sendo claro, da mesma maneira que o SUS acabou gerando uma APS centrada em políticas e programas, em vez de centrada nas pessoas, cuja singularidade sempre escapa aos programas; a Reforma Urbana não vem exprimindo adequadamente o seu sonho original, da construção no Brasil do direito à cidade, formulação que incluía, por exemplo, e de forma enfática, nos seus documentos fundadores, o acesso à Cultura.

Sua expressão atual, mediada por todo esse arcabouço legal acabou se tornando, mesmo reconhecendo a alma militante e resiliente, eminentemente legal, normativa e regulatória, subordinando as lutas da cidadania aos direitos legais, o que a afastou da sua dimensão emancipatória, no entanto presente desde a origem.

A dimensão emancipatória, exigiria com igual ênfase o esforço pela oferta de oportunidades ao povo, de reflexão, opinião e planejamento do seu próprio futuro, o que daria à militância dotada de conhecimento técnico a possibilidade de ampará-lo na tomada de decisões sobre o que ele almeja no território em que a sua comunidade finca raízes.

Essa abordagem resultaria em incontáveis Projetos de Desenvolvimento Territorial capazes de incluir não somente os importantes direitos previstos na legislação urbana, como também a superação das não menos incontáveis mazelas urbanas de toda ordem que escapam a nossa legislação mas constituem o cotidiano das maiorias e são a causa desse tremendo mal estar social em que vivemos cronicamente mergulhados.

Penso que caberia, portanto, nessa etapa, por parte da militância do urbanismo a guerra para que esse Desenvolvimento Territorial  de matriz popular, se articulasse com o Compromisso de algum Poder Público Municipal, permitindo a viabilização do cumprimento de uma agenda de desenvolvimento para a inclusão social e para a cidadania que pode começar nas próximas eleições em algum município mas marcará o começo de uma nova etapa civilizatória no Brasil.

Os orçamentos públicos no Brasil de hoje já estão, e não de agora, à altura da tarefa.

Para além dessa etapa local, que deve estar preenchida, portanto, de alma emancipatória, a gestão das cidades naturalmente exige um planejamento transversal de questões macro como as que tocam à drenagem, à mobilidade ou aos serviços essenciais prestados sob a forma de redes, como as de saneamento ou de abastecimento de água por exemplo.

O BR Cidades, criado pela professora Erminia Maricato tem sido um importante fórum para a discussão de ideias como essa e a sua existência dá a essa necessária revolução urbana pós pandemia melhor posicionamento estratégico do que o que vemos hoje na Saúde Pública.

Talvez, por simetria, os sanitaristas devessem criar também um BR Saúde para sonhar e materializar a necessária revolução na saúde pós pandemia.

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

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