VIA MANGUE: Inauguração do monumento à brodagem público-privada

 

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Por Leonardo Cisneiro I Direitos Urbanos I Recife

 

Nos jornais de 21 janeiro de 2016 vemos gente se estapeando pela paternidade da Via Mangue, a presidente, o atual prefeito, o ex-prefeito, querendo tirar casquinha na suposta popularidade trazida por esta obra. O jornal comemora a conclusão da obra depois de uma série de gambiarras grotescas.

Mas o que a gente precisa lembrar mesmo hoje é o tanto que essa obra representa do que tem de errado no desenvolvimento urbano do Recife: uma absurda “inversão” do que deveriam ser as prioridades da mobilidade urbana justa e sustentável, investindo meio bilhão de reais no transporte individual, a opção de mobilidade de 30% da população, enquanto que o mesmo dinheiro daria para bancar um VLT ligando Boa Viagem ao Centro da cidade. As gambiarras também seguiram a supremacia do automóvel e dentre elas se destaca a criminosa alça de acesso ao RioMar, que interrompeu o caminho da calçada e tornou um esporte radical a travessia de bicicleta. Até a própria ciclovia é um escárnio: pensa a bicicleta a partir da lógica do carro, confinando-a numa via expressa sem conexão com a malha urbana, com a riqueza de atividades urbanas de uma rua normal, que a bicicleta permite acessar melhor do que o carro. É uma ciclovia para esporte ou lazer, mas não para a bicicleta como um modal de transporte.

Mas se fosse só isso, era só incompetência. O problema da Via Mangue é bem pior, é muito mais embaixo. Essas fotos o ilustram e são só um dos exemplos. O problema fundamental da Via Mangue é como ela ~coincidentemente~ foi concebida para viabilizar ou alavancar uma série de mega-empreendimentos privados, desde o RioMar ao Le Parc e esses empresariais da Queiroz Galvão aí. Ou seja, um investimento público de meio bilhão de reais, com tantos outros usos para esse dinheiro, serviu para criar BILHÕES de reais em valorização imobiliária, bihões de reais no bolso de investidores privados que não deram um real para a obra nem vão repartir seus lucros com o poder público. Sem falar, claro, no benefício que trouxe para a mobilidade só da parcela mais rica da população. Ou seja: é uma obra essencialmente concentradora de renda, privatizadora de recursos públicos.

A verdade é que todos esses que reivindicam a paternidade/maternidade da obra fizeram a nós todos, cidadãos recifenses, sócios involuntários do RioMar, do Le Parc, dos empresariais da Queiroz Galvão, sem nos consultar, e sócios de mão única, a quem cabe só colocar o dinheiro e assumir os riscos e os prejuízos.

E pra não acharem que estou viajando ou vindo com papo de comunista, basta lembrar que DUAS diretrizes do Estatuto da Cidade, duas diretrizes fundamentais da política urbana, falam justamente disso:

“Art.2º –

IX – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização;
(…)
XI – recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização dos imóveis urbanos;”

Além disso, um instrumento tributário já bem esquecido, a contribuição de melhoria, também trata disso diretamente: “Art 1º A Contribuição de Melhoria, prevista na Constituição Federal tem como fato gerador o acréscimo do valor do imóvel localizado nas áreas beneficiadas direta ou indiretamente por obras públicas” (Decreto-lei 195/1967).

Ou seja, a lei não só permite como OBRIGA o poder público a cobrar dos particulares beneficiados por uma obra pública a divisão da conta. Mas todos os que estão indo lá disputar um lugar na foto hoje OPTARAM por fazer esse agrado a Paes Mendonça, aos Moura Dubeux e aos Queiroz Galvão, dentre outros.

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PS: ano passado fui aos EUA numa viagem para conhecer mecanismos de participação e controle social. Em uma visita à Prefeitura de Kansas City, soube que a cidade estava para inaugurar uma espécie de VLT na sua área central e a aprovação dessa obra passou por várias audiências onde foi negociada com a população sua extensão e seu orçamento, além de um plebiscito para autorizar o endividamento público e a instituição de uma taxa análoga à contribuição de melhoria. 

O secretário que nos recebeu lá disse que nenhuma obra desse porte é aprovada sem um plebiscito. Não vou me estender aqui, mas vi vários outros exemplos similares, em que a população participou da concepção inicial dos projetos, discutindo inclusive o impacto orçamentário e também discutindo quem iria bancar as obras, como no caso da requalificação da rua principal de Concord, New Hampshire. 

O interessante é que essa participação tanto não pareceu atrapalhar o processo quanto até pareceu acelerá-lo, já que a população participa da discussão do financiamento da obra e pode decidir pela instituição de taxas. E olhe que não estamos falando de um país bolivarianista… (PS do PS: não estou dizendo que não ocorra brodagem público-privada pesada lá, claro que ocorre. Mas são só alguns exemplos de que é possível fazer diferente..)

 

*Leonardo Cisneirosativista do Direitos Urbanos | Recife, professor de filosofia na UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco). E tem formação em Direito.

Redação

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