Você ainda escreve cartas?

Por: Eliana Rezende

Provavelmente a resposta é: “parei faz um tempão!”

Mas houve um tempo em que as cartas possuíam um ritual de produção e atenção. Lembram-se dos envelopes que continham perfume? Pois é… novos tempos. Mas e agora?

As formas de escrita sempre encontraram diferentes suportes e as cartas tal como os diários, representam uma forma de escrita ordinária onde imprime-se com o que se sente.

A relação com a escrita neste caso específico é uma relação tátil e de afetos. Sob esta ótica, era ritualística e envolvia um tempo cíclico composto de começo, meio e fim. Exigia uma composição que ia desde a escolha do tipo do papel, a tinta, o cunhar as palavras de próprio punho, a busca de um envelope que não alterasse a forma de dobras e, óbvio: filas nos correios, compra de selos, o uso das colas e finalmente o encontro com uma caixa que servisse de fiel depositária até que esta encontrasse seu destinatário.

O recebedor da carta inspecionava quem lhe havia remetido, de onde, em que data e há quanto tempo ela viajava ao seu encontro. A leitura seguia sempre a busca de um melhor lugar. Era lida, relida e muitas vezes guardada afetuosamente entre os principais valores pessoais de cada um. Algumas continham o perfume dos papéis e até objetos que eram-lhes acessórios (pétalas, desenhos, e outros objetos que teciam com a carta os seus sentidos). A resposta quase nunca imediata necessitava do tempo da elaboração. Era preciso buscar todos os utensílios da escrita para além das palavras que expressavam de fato o sentido ao dito.

A escrita em traços duráveis e em espaço íntimo trafegava por espaços públicos, de mão em mão, de pessoa em pessoa até o seu destinatário.

De fato uma grande elaboração!

Como historiadora, todo este trânsito é fascinante e passível de muitas “leituras”. São modos de viver, pensar e produzir culturalmente modos de estar.

Hoje, em tempos de tanta imediaticidade e consumo, tudo passa muito rápido, com economia silábica e fonética. As palavras deixam de ser pensadas e as correspondências giram em torno do imediato. Roubou-se a aura da palavra cunhada e da magia que seus complementos tinham (os selos, os papéis, os timbres, as tintas, o rebuscado de letras e formas, sua sinuosidade e curvas).

Escrevi muitas cartas (imagine o trabalho que tive pelo tanto que sou prolixa!!!), recebi muitas e experimentei o prazer de estar longe do Brasil e aguardar ansiosa que alguma me chegasse.

Já tive nas mãos cartas escritas por pessoas que morreram há séculos e tenho que dizer que é uma emoção ver ali a tinta impressa com a energia dos punhos de alguém como, por exemplo, Mário de Andrade. A forma como a caneta tinteiro modifica seus tons e como o papel vai ganhando um tom sépia.

Talvez esse saudosismo tenha a ver com a minha pratica profissional e com minha experiência de vida. A adaptação houve. mas ainda tenho muito vincada em mim a experiência da escrita de próprio punho.

Os tempos hoje são outros:

Desaparecimentos e perdas são usuais e muitas vezes temos a ingrata surpresa de descobrirmos que nossos conteúdos digitais foram para além das nuvens.

Obsolescências, superficialidades… pressa. São muitos os males que atingem nossas comunicações. Como disse, a relação é tátil e sensorial própria de um tempo que talvez tenha passado. Para nós, homens e mulheres de um tempo de transição, é às vezes difícil verificar como tudo passou tão rápido por nós.

Apesar de tudo, tento pensar que a qualidade dos textos se preserva e que apenas os suportes se alteraram. Mas infelizmente todo o código social e cultural em torno dessas produções se alterou para sempre. O tempo dirá com quais resultados. Acho que o principal componente de todo este ritual de sensibilidades e cuidado era exatamente o tempo e atenção dispensada ao seu preparo.

Você poderia perceber a atenção em cada detalhe material: o papel escolhido e sua textura, a tinta enquanto espessura e cor, letras trêmulas ou incisivas, as formas de dobra e até o tipo de envelope. Tudo denotava cuidado, esmero, atenção e principalmente um dos recursos mais escassos que temos: tempo.

Hoje, a volatilidade é grande. Com os meios digitais apascentou-se o espírito ansioso. Mas, e todo o “conjunto da obra”? Como referir a emoção que às vezes tínhamos quando víamos o carteiro? Lembro-me de ter corrido atrás deles algumas vezes com receio de que minha carta não chegasse.

Bons tempos…

Como falar disso a um natodigital?! Eles de fato não saberão, infelizmente, o é isso.

Acho que uma amarração fantástica para este tema sejam os filmes “O carteiro e o Poeta” (que você pode assistir aqui) e “Central do Brasil” (que você pode assistir aqui). O sentido das cartas que tecem vida é uma deliciosa lembrança e uma forma belíssima da ficção encontrar a escrita. 

Estamos no  mundo atual vendo a conformação de uma nova relação com as formas de escrita, seus suportes e os modos pelos quais nos relacionamos com nossas correspondências ordinárias. É um patamar de mudança cultural, e por isso é tão afeito aos nossos esquemas sensoriais. E por ser sensorial, imprime em nós muitas emoções e sensações. Não há nada de errado em uma forma ou outra. O que de fato importa é que a comunicação se estabeleça. Óbvio está que se vier com mais elementos que alimentem o sensorial, melhor! Anteriormente tínhamos todo um conjunto de códigos de posturas, que davam uma forte dimensão de “valor” ao que imprimíamos em tinta: era uma escrita de próprio punho com as inconstâncias e oscilações do que nos vinha pela alma. Hoje a escrita padronizada e eletrônica tira isso e muitas outras coisas… mas é uma passagem, e como tal precisa ser trilhada…

A experiência da escrita, interlocução e troca é uma das grandes aliadas no alargamento do espírito. Nos oferecem olhares que de onde estamos não enxergamos. Por isso, o tempo despendido em cada comentário, em cada correspondência tem valor agregado que não possui cifras, é intangível. 

O tempo da vida e as palavras que as nomeiam dão formas ao sentido e ao vivido pensado.  Nominar é, em última instância, “trazer à existência”. São com as palavras que expressamos ideias, sentimentos, projetos, sonhos, expectativas, reflexões, tecemos críticas e construímos pontes entre o sensível e o visível. Tudo isso as tintas fazem por nós. De punho ou em um jato de tinta contam ânimos e prismas de mundo. Com elas construímos e partilhamos o saber e o conhecimento. Construímos mundos…

Nas cartas havia todo o conjunto de sentidos que partiam junto com os escritos e daí talvez toda a sua magia. Eram remetidos com elas pedaços de nossas existências compostas, muitas vezes, com folhas secas, pétalas, fotografias, bilhetes de ingresso de lugares incríveis e até beijo feito em batom! Elas são de fato auxiliares sensoriais por onde nossas memórias encontram as vias de acesso ao passado.

__________________________

Posts relacionados:

Palavras vincadas

O papel e a tinta por Da Vinci

Pensados a tinta e escritos à máquina

Como se constrói uma Narrativa Fotográfica?

Chegamos ao fim da leitura?

*

Publiado originalmente no blog Pensados a Tinta

Você tabmém pode acompnahr o blog atrave´s de sua página no Facebook

 

Redação

7 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Estou lendo o livro de cartas

    Estou lendo o livro de cartas do Glauber Rocha (Cartas ao Mundo) publicado pela professora Ivana Bentes (UFRJ) há um bom tempo e é sensacional.

    Pouca gente conhece o Glauber dos anos 70, o cineasta de prestígio internacional nos anos 60 deu lugar ao quase político nos anos 70. 

    Além do exílio angustiante, ele dizia coisas que aconteçeram anos depois e permaneceram atuais:

    – Crise do socialismo real no leste europeu (queda do muro);

    – Globalização e financeirização, geradoras de uma crise próxima a de 29 (2008);

    – Novo papel dos militares nas novas democracias latino-americanas (Hugo Chávez);

    – Enfraquecimento dos partidos e ascenção dos movimentos sociais;

  2. Os 2 filmes citados são muito bons de ver!

    Mas abri aqui para comentar que faz muito tempo eu soube que os romanos escreviam cartas usando os verbos no passado, porque obviamente suas correspondências demoravam muito a serem entregues:

    Tulius, escrevi para você no dia 9 de agosto de 2014…

     

     

  3. Modelos de Cartas

    A questão das cartas tinha uma importância tão grande que por volta dos anos 60 e 70 havia livros com modelos de cartas amorosas, com linguagem melíflua e rebuscada, para auxiliar aquelas pessoas que queriam engatar um romance, mas não tinham a habilidade para redigir uma carta. Era muito engraçado, porém extremamente útil.

    1. Há um texto, genial na minha

      Há um texto, edmorc, genial na minha opinião, do sociólogo Niklas Luhmann intitulado O Amor como Paixão: Para a Codificação da Intimidade em que o autor argumenta como o missivismo precedeu o romantismo como prática social, não somente como estilo literário. Isso, lá atrás.

      Ou seja, as comunicações individuais dos amantes gradualmente foram consolidando modos padronizados de expressão dos sentimentos mais pessoais. O título é claríssimo: um código de expressão do amor romântico foi sendo instituído.

      Eu lembro muito desse livro para enfatizar que os modos generalizados de falar, agir, pensar – e até sentir – vão estruturando e orientando a ação das pessoas. Muitos gostam de acreditar que são muito livres para decidirem o que gostam, deixam de gostar, pensam, deixam de pensar, etc., mas ignoram os fatores objetivos do ambiente social.

  4. Tenho um amigo que adora

    Tenho um amigo que adora cartas. Escreve cartas pra todo mundo; até, ou principalmente, pra mulher dele e pros filhos.

    Mas ele faz questão de dizer que não tem nada contra o computador. Pelo contrário: ele primeiro digita tudo e depois, somente depois redige à mão o texto na última forma. “Não tem que ficar amassando papel”, diz ele.

    Ele justifica isso de muitos modos, mas os principais são: “a alegria de quem recebe a carta do carteiro ou de quem abre a caixa do correio e não vê só conta pra pagar e material de publicidade”; e o “prazer” dele de escrever.

    Diz ele que “relaxa”; que é um momento dele e somente dele.  Ele gosta de lembrar que os filhos ainda pequenos falavam entre eles próprios pra não perturbarem porque o “papai está escrevendo”.

    E são cartas maravilhosas. Cheias de histórias, passagens, lembranças, etc.

    Ele diz que leva dias e até meses para concluir uma missiva…

    Quando é possível se encontrar face a face – aniversários, principalmente – a conversa com ele muitas vezes é assim: “lembra que eu te falei” daquilo ou daquilo outro?

    Você acaba respondendo: “lembro”.

    Ele faz de propósito. Um barato.

  5. Sinto saudade do tempo das

    Sinto saudade do tempo das cartas. Era muito bacana a gente receber as cartas de um namorado, ou de quaquer pessoa que se ama. Era até comum abri-las e cheirá-las como se estivesse sentindo a presença do outro. Até os selos podiam dar mais importância àquela chegada do envelope recheado. A letra não era menos importante, pois através dela podíamos até sentir mais ou menos o estado de quem escreveu; o nosso também. Lembro-me de quando um dia enviei uma carta pra uma prima e ela respondeu perguntando-me se a havia escrito bêbada, tal a diferença entre as demais. Na verdade, passava por um período estressante. Quando menina, comparava minha letra a de algumas colegas de classe e passei a sentir quase uma inveja, porque eram letras maravilhosas, todas bordadas. Foi seguindo direitinho a Caligrafia Vertical que eu consegui ter a caligrafia que desejava, sempre enchendo os peitos quando era elogiada por outros. De vez em quando me arrisco a fazer uma carta, mas só as envio pra quem me tem muita consideração, por medo de ser criticada. Por fim, ainda guardo comigo muitas cartas da minha mãe. Nelas estão passagens incríveis da vida da minha família; são uma relíquia.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador