X-Men: Apocalipse e o Orientalismo cinematográfico

Este fim de semana eu fui ver o filme X-Men: Apocalipse. Desta feita os heróis de HQ enfrentam um poderoso mutante que ressurgiu no Egito, terra que ele havia governado na Antiguidade como se fosse um deus vivo. Após várias transições dramáticas, evolvendo tragédias pessoais (Magneto), o surgimento de novos personagens (como o vilão), a libertação de Wolverini das garras do militar que o criou e traições ocasionais (Ororo e Magneto), o En Sabah Nur é derrotado pela ação combinada dos X-Men.

A cada filme desta série a computação gráfica foi se tornando o elemento cênico mais importante. Em algum momento, os atores poderão ser dispensados e o diretor ajudará a criar as cenas ao lado dos designers gráficos. De fato, a atuação de pessoas de carne e osso já se tornou irrelevante em filmes como X-Men.

O que me chamou a atenção neste filme foi a natureza orientalista da obra.   Aqui mesmo no GGN publiquei uma resenha do livro de Edward Said sobre este assunto https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/orientalismo-resenha-do-livro-de-edward-w-said .

En Sabah Nur é um típico tirano oriental criado pelo Ocidente para dar aos representantes cinematográficos dos ocidentais a oportunidade de demonstrar sua superioridade moral. O vilão almeja um poder absoluto, os X-Men não. Ele mata seres humanos como se fossem insetos, os X-Men defendem a humanidade. En Sabah Nur usa o egoísmo, a raiva e a vontade de domínio dos seus discípulos para se tornar um deus na terra. Seus adversários compartilham sentimentos positivos, como amizade, respeito mutuo, altruísmo e solidariedade, que os previne de almejar controlar seus iguais ou os seres humanos.

Para os autores comprometidos com o orientalismo, o mal nasce e renasce no Oriente desde as Guerras Médicas. O pouco que sabemos deste conflito, porém, foi narrado pelos gregos. Nenhuma narrativa persa das campanhas de Dario e Xerxes na Grégia chegou até nós.

A moderna construção da dicotomia Oriente/Ocidente começou, segundo Said, durante o período de construção dos Impérios Coloniais Europeus. O processo continua, pois na fase atual os norte-americanos cometem seguidas agressões aos povos do Oriente Médio sempre se colocando na condição de vítimas ou de defensores da democracia e da civilização ocidental.

Os abusos promovidos pelo orientalismo ficaram bem claros durante a II Guerra do Iraque. O país de Saddan Hussein não teve qualquer relação com o ataque ao WTC e mesmo assim a imprensa norte-americana começou a exigir a invasão do Iraque como se o país fosse responsável.

Quando a justificativa inicial para a guerra começou a perder força – as provas demonstravam que o ataque ao WTC foi realizado apenas pela Al Qaeda e pelos terroristas sauditas – o governo Bush Jr. passou a criticar intensamente Saddan Hussein por causa das armas de destruição em massa. Notícias antigas, como o ataque aos curdos com armas químicas foram requentadas. A imprensa norte-americana amplificou o discurso até que a ONU autorizou a guerra com base em evidências forjadas.

Após a invasão do Iraque por tropas dos EUA, nenhuma evidencia foi encontrada de que Saddan Hussein tinha armas de destruição em massa. Então os orientalistas operaram uma nova modificação na narrativa: Saddan queria matar o pai de Bush Jr. e teria tido tempo de enviar seu arsenal letal para a Síria. O mea culpa só ocorreu uma década depois do início dos bombardeios e dos combates que mataram milhares de civis iraquianos.

Mesmo então este mea culpa da imprensa norte-americana foi incapaz de impedir que os EUA, pautando os jornalistas comprometidos com o orientalismo, conseguissem justificar as guerras sujas promovidas por Barack Obama no Oriente Médio. Estes novos conflitos, que foram articulados por agentes da CIA e realizados por milícias locais financiadas, muito provavelmente, com dinheiro do tráfico do ópio produzido em abundância no Afeganistão ocupado pelo US Army, foram chamadas de Primavera Árabe. O próprio Egito foi praticamente destruído por uma guerra civil que ainda não terminou.

En Sabah Nur leva o espectador a sentir ódio, desdém ou desprezo pela cultura oriental, como se o Oriente fosse a fonte dos conflitos promovidos pelos EUA no Egito (e no Oriente Médio). A criação deste inimigo dos X-Men serve assim, a um propósito histórico e ideológico bem definido: anestesiar as consciências dos cinéfilos ocidentais de maneira a justificar as agressões norte-americanas aos povos do Oriente Médio.

X-Men: Apocalipse não é apenas uma nova HQ cinematográfica. O filme é um poderoso vetor do velho orientalismo que justificou a partilha anglo-francesa do Oriente Médio ao fim da I Guerra Mundial. Uma revisão da mesma foi promovida pelos EUA ao fim da II Guerra Mundial. Desde então, todas as incursões militares ocidentais naquela região estiveram mais ou menos ligadas à predominância dos interesses Ocidente no Oriente.

O Irã, país que já vítima das artimanhas da CIA (deposição do governo de Mossadeq nos anos 1950) e se tornou um vilão aos olhos dos EUA (a Revolução Islâmica, 1979 até os dias de hoje, expulsou as petrolíferas norte-americanas daquele país). Regimes brutais duradouros na região, como o da família Saud e o governo israelense, tem sido poupados, financiados e até armados pela Casa Branca. Riad e Tel Aviv são vassalos fiéis e podem fazer o que quiser dentro e fora de suas fronteiras, desde que não comprometam os interesses petrolíferos do Uncle Sam.

O filme X-Men: Apocalipse é, sem dúvida alguma, uma nova agressão cultural ocidental ao Oriente. Sua finalidade, apesar de toda inovação narrativa, sofisticação cinematográfica e virtuosismo computacional, não é diferente daquela que inspirou as obras literárias analisadas por Edward Said no livro Orientalismo. O filme também é uma evidência de que no país da liberdade o cinema cumpre uma finalidade ideológica que se encaixa perfeitamente aos interesses econômicos do imperialismo made in USA.

Os norte-americanos subiram finalmente num pedestal do qual não podem ser removidos. A superioridade moral deles é absoluta e pode vista em qualquer lugar, em qualquer situação, sendo ativamente promovida em todas as mídias. Nem mesmo os romanos, cujo domínio foi expandido e fortalecido por quase mil anos, foram tão insistentes na promoção dos valores de sua própria civilização.

Ao contrário dos norte-americanos, Roma se deixou colonizar pelos deuses dos vencidos e acabou sendo profundamente transformada pelo cristianismo. A versão norte-americana desta religião é intolerante. Ela precisa ser imposta a força onde quer que os EUA queiram impor seus interesses.  Isto talvez explique, por exemplo, o exército de pastores evangélicos que os EUA financiam no Brasil para controlar a União e, por intermédio da autorização desta, pilhar nossas riquezas minerais. Mas este drama exigirá um novo X-Men.  

Fábio de Oliveira Ribeiro

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