Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
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A emancipação do povo brasileiro, por Ion de Andrade

A emancipação do povo brasileiro, por Ion de Andrade

Recente artigo do Professor Aldo Fornazieri, “A bestialização do povo brasileiro” mostra o que ele arremata da seguinte forma: “Os partidos e movimentos sociais progressistas e de esquerda precisam ser ativos e atuantes nessa disputa de concepções de mundo e de valores através da propaganda, formação e organização dos vários grupos e segmentos sociais. Sem a criação desse terreno propício ao desenvolvimento de uma vontade e de uma força politicamente ativa nacional-popular o Brasil terá seu futuro condenado e nenhuma transformação modernizadora de sentido progressista se fará efetiva. Os campos largos da periferia ficarão a mercê da reforma religiosa conservadora e do crime organizado. Os joãos trabalhadores da demagogia e do charlatanismo e outras expressões autoritárias terão um terreno fértil para colher votos e vitórias eleitorais.”

A sua análise coincide com o que tenho defendido e é, a meu ver incontestável. Precisamos, portanto, se quisermos que o processo de democratização se torne estável e irreversível, de um robusto e consciente protagonismo das maiorias.

Pessimismo da razão

Mas por que estamos ainda nessa página? Quais são as razões para o fato de que esse ator “a esquerda” não tenh conseguido, em treze anos de governo seu, antecedido de décadas de organização partidária, produzir protagonismo político popular nas periferias, locais de onde, por imensa obviedade, jamais poderiam ter se ausentado?

Diria, com o intuito de colaborar para a compreensão de um dos mais graves gargalos da nossa realidade política sem querer culpar ninguèm, que a nossa esquerda, oriunda em boa parte de setores médios urbanos, não se identifica com as periferias egressas das Senzalas e não enxerga, por maior boa vontade que tenha, (e tem) que é ali o locus estratégico do protagonismo social. Atribuindo a si mesma esse protagonismo, não consegue sequer perceber a necessidade de mudanças em suas práticas, frequentemente limitadas ao discurso, à aula, ao voto, às redes sociais onde, aliás fala para si mesma.

Não atribuindo ao povo, a condição de protagonista estratégico das transformações sociais, sequer empresta a ele o que acumulou como cidadania no que deveria ser um imperativo cotidano de militância a serviço da sua emancipação nas periferias. Ou seja, diferentemente de países onde a ideia de nação permite uma identificação recíproca para além do abismo social, no Brasil a nossa intelectualidade, que poderia assumir a responsabilidade de colaborar para emancipar o nosso povo está, nesse particular, desidentificada e socialmente inerte.

Ora, na outra ponta, mergulhado na não cidadania secular em que o Estado brasileiro o colocou, o povo tem que se virar política e socialmente por conta própria para enfrentar um cotidiano complexo de martirizantes insuficiências, riscos, ameaças e limitações. Se coletivamente e ao longo do tempo obtêm vitórias, as “perdas de guerra” são incomensuráveis.

Onde estão os partidos de esquerda que deveriam estar implantados nos locais de trabalho e moradia dos brasileiros, principalmente dos excluídos, onde deveriam ser a base institucional para as inadiáveis lutas do cotidiano? A resposta é: os partidos têm muito, mas muito o que fazer na árdua tarefa de eleger e reeleger mandatos. Na verdade toda essa inversão de prioridades  lentifica o nosso processo histórico, impossibilita a sua estabilidade e aprofundamento e, a história dirá, talvez o inviabilize.

Portanto em primeiro lugar, e é bom que se diga, vítimas todos nós da sociedade bipolar Casa Grande & Senzala, não somos uma nação sequer como projeto arraigado no interior da própria classe média de esquerda que vem demonstrando ser historicamente impotente para desempenhar o que deveria ser o seu papel histórico mais relevante: apoiar, observar, colaborar ou assistir o povo nesse processo de emancipação lento e doloroso a que o país o relegou emprestando o seu acúmulo e cidadania.

É evidente que o amor que o povo destina a Lula se deve em grande medida não só ao muito que ele fez, mas sobretudo ao fato de que o fez sendo quem é: alguém que o povo sabe, pois o exprime em palavras e atos, que reconhece no povo, como diria Darcy Ribeiro, DIGNIDADE COMPLETA.

A grandeza de Lula (mas também a sua solidão) decorre em parte de que exprime profundamente tudo que não somos: uma nação, o que no mínimo deveria significar uma identificação recíproca de uns com os outros e a sua correspondente responsabilidade.

 

Otimismo da Ação

Como mudar esse estado de coisas?

Em primeiro lugar seria muito útil que a esquerda como um todo percebesse o problema e começasse a investir inteligência e organização para resolvê-lo. Os partidos em primeiro lugar deveriam voltar a organizar-se nos locais de trabalho e moradia como é sua obrigação e deveriam incorporar, sem a priori ou preconceitos, as reinvindicações do povo e deveriam empenhar-se em dar-lhes viabilidade na capilaridade das lutas cotidianas. Não é para subir o morro com a ideia de ser correia de transmissão de candidaturas bem nascidas e bem falantes, não. É para subir o morro para ser fator da organização popular em torno das suas prioridades objetivas e subjetivas e de lá, então, ajudar a parir novos Lulas.

Em segundo lugar seria importante que a esquerda criasse uma base institucional capaz de ser ponta de lança de uma presença política abrangente e aberta nesses locais. Na França do pós guerra, e por influência da esquerda, embora de inciativa pública, privilégio que provavelmente talvez não venhamos a ter, foram criados em toda parte os CJC, Centros da Juventude e da Cultura, entidades que abrigavam as aulas de violão e onde às vezes estava acomodada a biblioteca do bairro e o Café, e que eram palco, nos seus auditórios, da vida política local emprestando os seus espaços para as discussões dos temas de interesse de cada comunidade.

As igrejas têm base institucional e é sobre essa base que se ergue a sua presença disseminada. Qual a nossa? Cabe aos partidos pensar e materializá-la pois não temos tempo a perder.

Tenho sempre dito que a nossa luta é secular, e é. O trabalho organizado através do tempo é, me parece, a única saída viável à gaiola de aço onde somos prisioneiros. Porém a cada dia como diz Aldo Fornazieri a bestialidade rouba a vida de milhares, acreditemos, de compatriotas nossos. Quantos Lulas perdemos por dia no Brasil?

Bom seria se os partidos de esquerda e a esquerda como um todo percebessem que esse mutirão necessário e incontornável para nos libertar da bestialidade é a guerra que Pátria pobre e sofredora convoca.

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

6 Comentários

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  1. Talvez em parte, a falha no
    Talvez em parte, a falha no processo de conscientização das periferias, nestes 13 anos, tenha ocorrido em função das excessivas demandas criadas pela Mídia que só fez bater este tempo todo.  O PT permaneceu durante a maior parte dos seus 4 mandatos acuado, sobretudo após a denúncia do mensalão em 2005. Veja o quão pequeno é um escândalo de repasse de dinheiro de campanha DO PARTIDO para que a bancada fisiológica votasse no projeto de desenvolvimento. Nada comparado aos bilhões sonegados pela Groubo e tão pouco a perda no gerenciamento dos trilhões no pré-sal.  É sempre assim. O fascismo incute ódio na Zumbilândia para que se mantenham entretidos e não se deem conta dos reais adversários.  Faltou “malandragem” da nossa parte, na melhor acepção que a palavra possa ter.

  2. Talvez em parte, a falha no
    Talvez em parte, a falha no processo de conscientização das periferias, nestes 13 anos, tenha ocorrido em função das excessivas demandas criadas pela Mídia que só fez bater este tempo todo.  O PT permaneceu durante a maior parte dos seus 4 mandatos acuado, sobretudo após a denúncia do mensalão em 2005. Veja o quão pequeno é um escândalo de repasse de dinheiro de campanha DO PARTIDO para que a bancada fisiológica votasse no projeto de desenvolvimento. Nada comparado aos bilhões sonegados pela Groubo e tão pouco a perda no gerenciamento dos trilhões no pré-sal.  É sempre assim. O fascismo incute ódio na Zumbilândia para que se mantenham entretidos e não se deem conta dos reais adversários.  Faltou “malandragem” da nossa parte, na melhor acepção que a palavra possa ter.

  3. Historico

    Numa rapida analise dessa questão, lembro que alguns intelectuais não inserem em seus livros a grande massa, desde que George Orwell em seu livro 1984 afirma, através de seu personagem Winston, quando o mesmo entra num pub e observa a inércia da massa ali composta; “não sera do proletariado que vira qualquer mudança ou revolução”. Acho que muito influenciada por essa visão de uma massa passiva e alienada, os partidos a deixam de lado quando é necessario, mais que nunca, inseri-la no contexto politico para lutar ao lado da pequena esquerda progressista que de fato existe no Brasil.

  4. Um comentário particular, Ion!

    Precisamos observar o mundo não só por um olhar social, coletivo. 

    Cabe observar também o indivíduo e seus desejos mais íntimos, sem menosprezar ainda um terceiro eixo que é o lado espiritual.

    Nós precisamos ir buscar quem é o povo da periferia, quem é o classe C, D e E e quais são os seus ideais e ideias sobre a Vida e sua Fé.

    O povo quer ser o quê? O que ele almeja para a sua vida? Tem um olhar solidário ao próximo, é coletivo ou individualista seu mundo e seus ideais? 

    A esquerda não pode abdicar de fazer um diagnóstico do brasileiro existente, do brasileiro médio, do brasileiro pobre, da classe C.

    Não é somente crer que vamos nas periferias ensinar o que é certo ou errado, É preciso saber o que consideram certo ou errado os que queremos receber o voto.

    Uma Revolução verdadeira não está a caminho no Brasil nem sei se em algum lugar do Planeta. Esta só existiria em um contexto com Educação diversa da atual, libertária e não-capitalista no sentido de sermos e não de termos. 

    Os meios de comunicação de massas são quase todos capitalistas e ensinam o Capitalismo e a cada dia mais radical. Individualismo, meritocracia, empreendedorismo, status, independência e realização profissional sinônimo de acúmulo de coisas materiais. 

    Como o povo da periferia enxerga a realidade em que vive? Ele aceita pacificamente que seu bairro seja menos provido de infraestrutura, de saneamento básico, de limpeza pública, de calçamento e verde? Se sim! Como se dá este aceitamento, ele é consentido como algo sobrenatural, um carma, uma predestinação? É fabricado por alguém?

    Não adianta a gente chegar ao mundo do outro querendo ensinar a nossa lógica se a lógica do outro mundo não dialoga com a nossa, penso eu. 

    O que queremos não é necessariamente o que o povo quer. 

    É só imaginar a classe C ascendida na Era Lula e que reproduz a classe média e médio-alta tradicionais em suas atitudes cotidianas de querer certas independências, reproduzindo o mesmíssimo padrão de comportamento, realizando as mesmas coisas no dia a dia, só diferenciado o comportamento no tamanho financeiro do “pacote”, se me faço claro. E mutias dessas pessoas esqueceram a origem e nem foram capazes de defender Dilma. 

    Lula entende o povo e suas ambições dentro da realidade existente e da lucidez de perceber que o povo não quer fazer a Revolução do Proletariado, ele quer é se vestir legal, comer bem, se divertir e viajar quando possível tendo um bom emprego. 

    A questão central e necessária, que faltou mos 13 anos e meio de PT no Governo Federal, é como construir a consciência de que uma sociedade com Estado forte e indutor + controlador da economia pode gerar esse mundo sonhado. E esta é a batalha. Conseguir um diálogo que possa ser mais forte e cativante para o povo do que a ideia de que o PT e as esquerdas querem impedir de você conseguir o “seu sucesso”, a sua vitória, a sua independência. 

    Nós somos individualidades acima de tudo, esta é uma importante constatação. Enquanto esquerda buscamos maior Justiça Social, enquanto indivíduos buscamos nossos ideais diversos e não adianta sonhar com uma uniformidade ou crer que chegando na periferia e lá se instalando se torna mais fácil Educar o povo. 

    A contra-informação é massiva e 24 horas está em ação. 

    Lula é um gênio porque ouve primeiro o que o povo quer, sabe o que são suas necessidades e as deixa aflorar, sem impor condições. 

    Vamos ouvir mais o povo, ser mais o que o povo gostaria de ser e menos o que gostaríamos que ele fosse. Cativemos o povo para o nosso lado de um modo a não impedir do povo sonhar e ser ele mesmo. 

    Educação Política aliada das necessidades e vontades do povo pode ser benéfico. Agora, se predispor a querer realizar um projeto de engajamento político é um tanto prematuro. Leva muito tempo e precisa de outra Educação formal. Não vejo como a premência do hoje. 

    Hoje é poder apresentar ao povo a esperança da reconquista dos direitos, dos sonhos e da possibilidade de ascensão social. E ser didático no sentido de mostrar que existem caminhos e caminhos e que não é possível uma sociedade onde tudo que se almeja é possível realizar, que precisamos saber equilibrar sonhos particulares e possibilidades coletivas. Se a gente souber mesclar um discurso que não deixa escapar as três dimensões: a individual, a coletiva (social) e a espiritual venceremos a batalha por um outro Brasil. 

    Abraço,

    Alexandre!

    1. Concordo em parte

      Olá Alexandre,

      A questão é complexa realmente. eu também não acho que esse movimento para as periferias seja para infundir verdades, deve ser para colaborar com uma agenda expressa pelas periferias, criar identidade, politização e não adesão. Não é um trabalho de curto prazo.

      Porém acho que isso é prioritário porque as condições devida do nosso povo são ainda precaríssimas em todos os aspectos, violência,acesso à saúde, más condições de educação, oportunidades de cultura inexistentes ou raras, violência policial, principalmente contra negros, banditismo que converte crianças em aviõezinhos, etc,etc,etc. Seria monstruoso, e é onde estamos, não priorizar. Mas esse enfoque que estou colocando nesse parágrafo é ético,dasolidariedade inexistente porque nãosomosuma nação e osofrimento dessa gente é  assunto que não nos interessa,comose ocorresse na Eritréia, no Vietnam, etc.

      Para além disso há o aspecto político. Não se estabiliza a democracia sem o protagonismo dos interessados diretos. então é duplamente prioritário, por razões humanistas e por razões políticas.

      Abraço

  5. a esquerda no poder

    A ascensão do PT e seus aliados de esquerda ao poder, tem dois eixos que fez ruir o elo existente entre a base popular e a cupula do governo: Acreditar que a direita fisiologilógica se aproximava para compor com o governo e com isso fazer governo de coalisão de bons amigos. Esta composição fez os benefícios da administrção chegar ao povo pelas mãos do inimigo, o  que os condutores dos núcleos do comando central, não levaram em concideração que o embate na base é belicoso, os tijolos da base de sustentação da pirâmide política, no processo eleitoral são vuneráveis, e o coletivo consciente da base dessa pirâmide se sentiu traído. Do outro lado, a maioria da esquerda Brasileira tem sua formação, no caldo cultural religioso, se isso contribui no sentido organizacional, ao fim e ao cabo termina impedindo algumas decisões que contraria os principios recebidos desta religiosidade. 

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