A indecência de esperar, por Jean D. Soares

Esperar que o amanhã seja outro por simples evocação da esperança de que alguém que homenageia um torturador possa se transformar do dia para noite em paladino da ciência, da saúde e da justiça é como me dirigir um palavrão ou uma piada de mau gosto.

A indecência de esperar

por Jean D. Soares

Não só é ultrajante, como é indecente esperar que algo aconteça se o governo continuar como está. Como pólvora, os pulmões ardem pelo país. Milhões de pessoas simultaneamente com medo, com fome, angustiadas, doentes.

Hoje o Brasil é um país comprometido corporal e mentalmente pela condução de seu suposto governante. A maioria dos brasileiros deveria se sentir moralmente humilhada por seus atos irresponsáveis. E impressiona que quase um terço dos brasileiros talvez leia com hesitação a virulência com que escrevo. Impressiona e me envergonha.

Evidentemente há  quem, talvez por medo, por vergonha ou por aflição, mantenha-se em silêncio, pois o futuro na mesa de jantar é mais urgente que o dos melindres políticos. Não são deles que falo, mas dos que estão com almoço e jantar muito bem garantido.

Esperar que o amanhã seja outro por simples evocação da esperança de que alguém que homenageia um torturador possa se transformar do dia para noite em paladino da ciência, da saúde e da justiça é como me dirigir um palavrão ou uma piada de mau gosto. Devo dizer que acreditar nessa mudança repentina não me parece mais inocência, mas indecência.

Já não é mais só a tragédia dos atos, mas a farsa continuada das composições, coroadas pelo efeito nefasto de uma cepa biológica fora de controle, deixada à solta, estimulada a se multiplicar, quase. Quem assiste a essas farsas em tom de espera por uma grande mudança atua como figurante dessa farsa, como cúmplice indireto dos atos de um irresponsável que faz questão de deixar morrer.

E digo indecência porque surge como juízo superficial e denegatório de um estado de coisas calamitoso, como se esperar fosse ajudar. Não ajuda. Não vai, porque até agora só se fingiu mudança para manter tudo como está, isto é, em uma espiral crescente de dor e morte.

Desde o início desses tempos viróticos colecionamos tristes enunciados e ações do governante para com o vírus, a ciência e a população. Ele não demonstrou preocupações com nossos doentes, mortos ou angustiados, com os profissionais de saúde e suas condições de trabalho, com as pessoas que não tem tempo de sentirem angústia porque sentem fome. Ele não dedicou seu tempo ao que dói. Ele não demonstrou ser estadista, não pensa em todos, mas só nos seus.

Demonstrou somente privatizar os dispositivos estatais em benefício de interesses pessoais ou escusos. Então, se depois de tanto tempo, ainda se fala em esperar, isso soa completamente indecente e precisa despertar os justos para que o justo seja feito.

Nu, em plena praça, Diógenes, o cínico, diria que indecentes são os que agem como se nada demais estivesse acontecendo, como se tudo o que nos rodeia fosse passageiro. A dor, a tristeza, a tragédia de milhares de mortos por dia tratada como notícia do caderno “Gerais”: é gente agindo para além do cinismo, diria o cão.

Ele que não tinha vergonhas, que supostamente teria solicitado Alexandre a sair da frente do seu sol, diria que o governante e todos os que o apoiam hoje são vergonhosos em sua covardia. Nu, em plena praça, ele diria que o presidente perdeu o decoro, que ultraja qualquer moral. Que é dotado de uma covardia cínica, que desonra o próprio cinismo.

A ausência de coragem alia-se aqui à atitude daqueles que sabem o que fazem e continuam a fazê-lo. Sabem que evitar o confinamento geral vai propagar o circo de horrrores, mas pensam que estão imunes enquanto tiverem como se manter, como se aproveitar ou como ganhar na situação em que todos se encontram.

A celebração de um aniversário em tempos de recordes de mortes é a última zombaria para com os falecidos e as famílias deste e de outros dias. É a atualização da indecência continuada, ruído para distrair do essencial: a incompetência para construir, a apetite pela destruição de um país.

Quem tem dúvidas de que não é mais o caso de esperar soa também indecente, semelhante. O impedimento desse sujeito deveria ser feito em tempo recorde e seu nome deveria se tornar algo de que se tem vergonha até de pronunciar, como se faz notar por sua ausência até aqui.

Num futuro não muito distante, os filhos de quem manteve a coragem de proteger o próximo dos negacionistas em tempos tão difíceis, esses filhos tratarão esse governante com vergonha semelhante àquela que os alemães têm dos membros da SS, dos partidários daquele Adolfo dos anos  30.

E espero poder chegar até esse futuro. Talvez tudo o que escrevo aqui não passe de uma fantasia exagerada, de um preciosismo de um cidadão destemperado. Senão e antes desse futuro chegar, vamos construir uma forma de passar o presente a limpo e tratar de reencontrar esperanças para reencontrar aqueles que, além da vergonha hoje, terão orgulho do país amanhã.

Jean D. Soares é investigador em filosofia e desenvolve projetos de convivência em espaços públicos.

Redação

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