A República Federativa do Cadáver Esquisito, por Eliseu Venturi

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Man Ray, Joan Miró, Yves Tanguy, and Max Morise, Exquisite Corpse, 1928

A República Federativa do Cadáver Esquisito

por Eliseu Raphael Venturi

“[…] Uma noite, no entanto, quando se sente forte o suficiente, entra repentinamente no quarto, acorda o ditador e o espanca com socos, matando-o. O engraxate se livra rápido de suas roupas, despe o ditador morto e se mete ele mesmo nas roupas do ditador. Constata diante do espelho do ditador que ele realmente se parece com o ditador. Decide num átimo, precipita-se para a porta e grita, que seu engraxate o atacou. Que em legítima defesa o espancou e o matou. Que ele deve ser removido e a família, avisada”.  (BERNHARD, Thomas)².

 

1 OLHAR DA MEDUSA

Nem mais “o que é sólido desmancha no ar”.

O ar tornou-se denso demais para se explicarem discursos ou justificativas, por um lado, e adesões irrefletidas, por outro. Se não irrefletidas, pior ainda: adesões deliberadas ao discurso da exclusão e da eliminação, por um lado, e da concentração de poderes, por outro. Parece pouco significativo, mas em uma análise ética é realmente grave.

A banalidade do mal se tornou evidente: o mal político pode facilmente ser aceito, replicado, fundamentar decisões, mover massas, ser lembrado e esquecido e relembrado. Basicamente: ele é gerido. Não avançamos, aparentemente, em nada na nossa cultura de sacrifício de todos os direitos no altar do econômico. Aparentemente porque muito também foi feito e podemos ter o discernimento histórico.

Aliás, o mal banal, cívico, não apenas é evidente como desejado, cultivado, declarado e algo do que se orgulhar, para alguns. É entendido como argumento em uma discussão, ou como pressuposto em algum pensamento. É entendido como legítimo na arena pública e na privada também. Ele antecede e antecederá políticas, ele estruturará corpos de condutas coletivas.  

Com simplificações do tipo “direita” e “esquerda”, cinde-se o mundo, cindem-se os direitos, que, aliás, já tinham dado as costas aos simplismos no mínimo há décadas. É um eficaz dispositivo ideológico cuja locomotiva segue a todo vapor.

Com as simplificações de redução a partidos específicos, esquecendo-se de que há um Direito que é super partes, convalida-se tal dispositivo ideológico com ainda mais potência. São construções sobre construções como, a rigor, é a vida social.

Não que algum dia tenha sido diferente. O espantoso é que, “depois de tudo”, depois do Século XX, as coisas ainda continuem as mesmas, nas mesmas linhas de simplificação e reducionismo. Depois de todas as catástrofes ambientais e sociais. Depois de tudo, como há muito se insiste: depois dos litros de sangue e dos litros de tinta, continuamos monstros morais afiados.

A ausência do pensamento, que não é necessariamente a falta de tracejamento primário de raciocínios, mas uma certa fraqueza ética, concorre à indiferença e à leviandade, desde os espaços mais formais e instruídos até os mais espontâneos; assim como as políticas de reconhecimento e de tutela de direitos parecem agora fazer o mesmo trânsito errático.

A realidade, embora não tenha novidades, se torna mais complexa a todos. Um novo cenário de velhos objetos a ser enfrentado se apresenta. Algo que não pode ser retrocedido se evidenciou, seja no plano da argumentação racional – ou mesmo da sua total prescindibilidade, que é o caso atual em que a esquizofrenia das motivações e decisões não será censurada pela comunidade da fala –, seja no plano das emoções, mais do que nunca completamente esclerosadas.

Embora a noção ideológica de inversão seja suficiente para se compreender um mínimo fio da meada das superfícies do fenômeno em curso, parece insuficiente para esgotar suas contradições, por ora já lançadas ao mesmo plano da evidência. Não obstante a multicausalidade das apostas, o fato é a gravidade das justificações empregadas na aposta ela mesma. Aliás, justificações a rigor não foram dadas, apenas expedientes, causas fracas e finalidades díspares.

Sim: os seus parentes estão dispostos a sacrificar sua (não a deles) identidade política e a sua subjetividade existencial e de outros no altar do político ou do econômico, assim como seus professores, seus tutores espirituais e todas as figuras que se vestem de amor e podem facilmente colocar na mesa de discussão e deliberação o ódio e a exclusão como moedas rápidas e fáceis de troca. A trama de afetividades balançadas por esta constatação é terrível: afetos são extintos e novas alianças possíveis.

A responsabilidade moral, política e jurídica é diáfana como o acender-apagar de um aplicativo persistente: limpa, transparente, vaga, desocupada, vazia. Se há o lado fundamental da liberdade, há o péssimo aspecto dos danos ilesos e de seu fomento. Não que se acreditasse que punições sobre punições seriam o caminho, mas tamanha permissividade é obscena. A consciência costumava ser a melhor precaução, mas hoje o jogo se faz justamente pelos riscos severos.

O preço do gratuito se mostrou muito mais caro do que algumas propagandas que importunam ou que sejam apenas entremeadas e perturbadoras. Quando não a privacidade, a esfera pública foi o preço. Preço pago sem pudor, dádiva em doação. E os principais afetados entregam todos estes bens jurídicos, traduzíveis como direitos subjetivos, sem a menor dúvida.

Do torturador brasileiro ao conservador inglês, a velocidade é da mudança da atuação é impressionante e inversamente proporcional à capacidade de leitura e de articulação das palavras da carta lida e não autoral; e não parece impressionar em nada um auditório em êxtase, que não parece muito preocupado com coerência. O futuro está posto e a laicidade sepultada. A imparcialidade está sepultada e os cargos correndo soltos. Esquecimentos.

Aproximamo-nos da era dos Superministérios, termo que simplesmente deveria apavorar quem compreendeu o mínimo dos sentidos do totalitarismo e do autoritarismo. Os Estudos da Monstruosidade há muito já anteciparam de que histórias de monstro sempre revelam monstruosidades ainda maiores, irrompendo o peito do corpo consumido. O assombro é um modo próprio de articular formas, e as formas democráticas estão em abominável movimento de deformidade.

Ninguém deve insuflar o ódio, isto é certo. Ódio, aliás, sequer é a linguagem cabível em um universo que remete mais às respostas da comiseração, em uma espécie da lástima da miséria moral anacrônica.

A velocidade com que alguns ditos intelectuais, alguns acadêmicos e alguns pensadores, alguns artistas, enfim, aquelas populações das quais se poderia esperar algum resquício de oposição ou simples crítica, cedem ao apelo da paz também beira a consternação: e quando o conflito se apagaria tão rápido? Parece um desejo de suprimir as realidades vistas, insuportáveis, incompatíveis, inconciliáveis com a convivência.

Mas não há volta ao velho e reiterado olhar da Medusa.

 

2 A MORTE DO TEXTO E DISTOPIA DO CIRCO

Um tipo de pensar mágico e irracional, que prefere projetos políticos escritos em tópicos lacônicos à articulação do texto, mistura-se a uma grande sopa nacional virtual em que o leitor dessubjetivado não interdita mais as informações, aceita quaisquer termos, vive no estupor do desejo impregnado. A antiga televisão das massas conseguiu ser piorada, e os antigos brados dos comunicólogos em torno à interação e desalienação foram completamente frustrados.

Sim: o crime é um fato social. A violência é um fato social que assume várias formas. São redes complexas de fenômenos complexos. Daí toda a dificuldade que a Psicologia, as escolas da Criminologia, da Política e do Direito Penal encontram em elaborar estas dimensões inevitáveis da vida coletiva.

Sim: os sistemas éticos, por sua simples configuração como sistemas de moral, produzem exclusão inevitavelmente. O desafio está em corrigir estas exclusões no plano cívico e impedir que os ritos privados violem direitos garantidos universalmente a uma comunidade. São fenômenos também complexos, e também daí toda a dificuldade da Sociologia e o Direito também em estruturarem soluções, sempre imperfeitas e provisórias, dada a tamanha devastação socioambiental.

Contudo, no universo do simplismo e do reducionismo, imantado pela inversão ideológica, o econômico se sujeita ao político de modo absoluto, ao compasso de se ignorarem as micropolíticas, em um contexto infinito de atalhos que produzem as justificativas dadas. Haja Superministério.

A morte do texto concorre à morte da consciência (que é a morte da dúvida e da argumentação) na instauração do automatismo da percepção, do julgamento, da inapreensão e da acriticidade. É um modo muito compatível de se existir, conjuntamente a um modo muito compatível de se produzir a vida individual e coletiva.

É, antes de mais nada, uma pedagogia. Digere-se Macunaíma em um “audiobook” de dez minutos, assim como se torna complexa a operação de um despertador de celular. Nesta interação com textos e máquinas revela-se o tamanho dado ao mundo, pelos limites do barateamento da linguagem.

Representação, tão atacada nos velhos desejos de afirmar participação e deliberação, ainda é importante, nas formas democráticas ainda institucionais e formalmente postas. Argumentação, também neste universo, ainda é importante. Mesmo sabendo que o debate será preterido, que o plano de governo lacônico será aplaudido mesmo que sem textualidade, sem escrita, sem fluência mínima. Sem debate: nada mais sintomático.

O futuro da política mediada pelos aplicativos pode ser bastante distópico, como já está sendo, e bastante despótico. As decisões em infinitos plebiscitos pelo aplicativo Circo Romano talvez revelem constrangimentos sequer imaginados pelos mais entusiastas do Constitucionalismo Popular e afins, que nunca foram suficientemente críticos acerca dos demônios que habitam aquilo que Reich chamaria de o “Zé Ninguém”.

Um Tribunal popular, permanente e imediato, sem técnicas de argumentação, sem preocupação com justificações das razões de se decidir. Barbárie. Sangue. Foi assim com alguns dos episódios mais recentes, dadas as razões de decidir expostas ao público – que, como dito, não se importou muito com o que se disse, com o que se pensa, de onde se parte, para onde se vai.

Não são imagens novas na humanidade. Talvez entre o apolíneo e o dionisíaco, nosso mundo tão avançado e contemporâneo faça os dionisíacos mais antigos ruborizarem e se acharem apolíneos demais. E estarão certos. Temos Doutores bastantes para todo o requinte que a crueldade exige.

Nunca tivemos tanto acesso a tantos textos, mas talvez melhor houvesse o tempo de martelar pedras para voltar a se dar o valor de cada palavra entalhada.  

 

3 ARBITRARIEDADE: INVIABILIDADE DOS UNIVERSALISMOS, URGÊNCIA DAS ONTOLOGIAS DO PRESENTE

O cristalino e declarado “lawfare” mostrou o funcionamento esfarinhento de nossas instituições democráticas, sepultando-se no seio da Constituição-Cidadã que abraçou a preservação das oligarquias o amargo fruto da destruição dos direitos fundamentais.

Direitos fundamentais que, há muito, já eram bem geridos e amputados por estas mesmas oligarquias, mas que no caso do “lawfare” foram catapultados ao telejornal cotidiano, à macrohistória, a análise futura que poderá sem pudores deduzir o funcionamento dos pequenos universos, das pequenas injustiças esquecidas e negligenciadas. O Representante representou uma população até o derradeiro sacrifício.

A derrota dos universais nominalistas soma-se a única saída das ontologias do presente foucaultianas em torno do imenso jogo de linguagem aberto e fraturado. Mais do que nunca é preciso perguntar, em tempos em que as identidades pretendem por si encerrar as apreciações. As alianças se acedem e apagam em velocidade inapreensível, em que os fatos estão escamoteados em camadas de linguagem incredível, cortados que estamos por histórias demais e pouco confiantes em nossos olhares próprios.

Mas as evidências do olhar da Medusa são pouco. São apenas um canto de abertura, uma entoação de óperas em curso em outros cantos do mundo, cumprindo nossa profecia de povo colonizado. Um pouco do que nos trouxe até aqui. As reais surpresas estão no sádico porvir. Um sádico porvir que continuará com a mesma esquizofrenia dos discursos, com a mesma flutuação dos sentidos, amparado pelas mesmas instituições democráticas vigentes, fornecendo as mesmas políticas centralizadoras, consumindo o mesmo sangue social em que não se desconfia de algumas autoridades. A única hermenêutica viável permanece a da suspeita.

A maior crise moral ainda é a deliberada adoção da arbitrariedade na esfera institucional, e como ela passa nua e crua aos olhos de quem deveria apanhá-la de frente. O crime é um fato social, é cotidiano; a arbitrariedade é uma monstruosidade técnica injustificável. Com isso, naturaliza-se a ilegalidade com aparência de legalidade, o exercício de competência é deturpado em voluntarismo inconsequente. A irresponsabilidade soma-se ao jogo deliberado da decisão. A justificação moral é apagada, a jurídica é posta em contorcionismo. Havia um ideário jurídico que se apegava, com razão, a tais valores democráticos. Este ideário esfarelou.

Isto é tanto apartidário quanto indiferente a qualquer ponto no espectro político à esquerda, à direita ou ao centro: é sempre preciso insistir, pois a programação dos “boots” é baseada no binarismo de todas as coisas.

Sublinhamos: a inviabilidade dos universalismos, a urgência das ontologias do presente.

 

4 O CADÁVER ESQUISITO BEBERÁ DO VINHO NOVO

Se há algo que a política natural e animal nos ensinou é que predadores maiores sempre estão à espreita quando se acredita já ter visto de tudo. Novos monstros e monstruosidades se formam nas pacienciosas e demoradas minerações subterrâneas. Os jogos se sucedem, então, até o dia em que Gaia exerça sua Justiça Suprema: expurgar o humano de si é sua lição universal.

A luta pelos direitos humanos continuará seu caminho. Estes direitos mesmo: modernos, das grandes Declarações, dos pactos internacionais, repletos de linguagem aberta e vaga, de termos morais, de julgamentos de valor, com pretensão de universalidade, sujeitos aos usos estapafúrdios que só deveriam depor contra quem os distorce, quem os insere na política da deformação e da monstruosidade.

Direitos mesmos do Pós Guerra, nascidos da dor da morte, do desamparo, do medo, das atrocidades da racionalidade, da oposição ao poder soberano e aos micropoderes arbitrários, calcados nos universalismos, indiferentes às ontologias do presente. Direitos mesmo históricos, conquistados, compactuados. Metafísicos, que sejam, que sejam toda a crítica que recebem: direitos imprescindíveis. Direitos mesmo enquanto linguagem infinita e incansável.

Direitos que quanto mais amparam seus titulares que alcançam seu exercício pleno, mais são atacados em sua fundamentação e mais esvaziados são de sua normatividade. Dos maiores paradoxos de nosso tempo.

Os direitos seguirão seu caminho, hoje também minado por dentro, por vários pesquisadores que insistem em interpretações estapafúrdias, deslegitimantes e despotencializadoras dos direitos, cravados na parasitagem das Universidades Públicas, desconstruindo tudo aquilo que sequer se construiu: uma mínima consciência jurídica. Jogando com a ciência, com a filosofia, em movimento de corrosão.

Caminho minado pelos Poderes que apagaram seu potencial em nome da mesma oligarquização, que já mandaram literalmente às favas a regulamentação internacional, que obnubilaram suas competências legais e sua finalidade institucional. Jogando com o Direito, com as instituições, em movimento de antinormatividade.

Caminho minado pelas interpretações igualmente reducionistas e simplificantes do mundo da morte do texto e da irresponsabilidade intelectual.

A luta pelos direitos humanos continuará seu caminho enquanto o cadáver esquisito beberá do vinho novo.

A República, assim, está garantida.

 

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

¹ Disponível em: < https://www.artic.edu/artworks/119117/exquisite-corpse?material_ids=inorganic+material>. Acesso em: 31 out. 2018.
² SOUZA, Marcelo Paiva; BOHUNOVSKY, Ruth; KULISKY Yuri. Ereignisse – pequenas histórias do destruidor de histórias Thomas Bernhard. In‐Traduções, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.240‐256, jan.-jun., 2013. p. 249.
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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  1. Substituindo

    “[…] Uma noite, no entanto, quando se sente forte o suficiente, entra repentinamente no quarto, acorda o ditador e o espanca com socos, matando-o. O engraxate se livra rápido de suas roupas, despe o ditador morto e se mete ele mesmo nas roupas do ditador. Constata diante do espelho do ditador que ele realmente se parece com o ditador. Decide num átimo, precipita-se para a porta e grita, que seu engraxate o atacou. Que em legítima defesa o espancou e o matou. Que ele deve ser removido e a família, avisada”.  (BERNHARD, Thomas)².

     

    “Uma noite, no entanto, sem mais delongas, acorda o governador e o espanca com socos, matando-o. Oriexil, o gari, se livra rápido de suas roupas, despe o governador morto e se mete ele mesmo nas suas roupas. Constata diante do espelho do governador que realmente se parece com ele. Decide num átimo, precipita-se para a porta e grita que um gari o atacou. Que em legítima defesa o espancou e o matou. Que ele deve ser removido e a família avisada.

    Não se sabe ao certo se Oriexil tinha o espírito de governador ou se o governador tinha espírito de gari. ” (aconteceu em São Paulo)

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