As Cartas Brancas, por Beatrice Papillon

As Cartas Brancas

por Beatrice Papillon

Quando Pero Vaz de Caminha aportou com a frota de Cabral por aqui, escreveu uma bela carta ao rei sobre as maravilhas da terra que sua majestade faria saquear no projeto colonial. Naquelas bem traçadas linhas, o ilustre signatário descreve também os belos corpos nativos que dali por diante seriam exterminados aos milhões.

Enquanto tronava na Europa, o rei expediu papéis e mais papéis com ordens para que se tocasse o terror na Ilha de Vera Cruz. Desde então, os brancos escreveram documentos e mais documentos que, em português claro, determinavam crimes contra a humanidade e a natureza. Ordens de exploração, massacres, batalhas, documentos de propriedade de terras, títulos de nobreza… papéis e mais papéis em que, pelo bico das penas lusocaucasianas, autorizaram oficialmente os métodos sanguinários com que se produziu esse país. E assim foi, porque os reis têm carta branca conferida pela igreja de um deus branco para fazer o que acharem melhor.

Cabe dizer que muito do mesmo “projeto Brasil” poderia, sim, ter sido feito por outros métodos, com menos sangue e morte. Tanto era possível, que os próprios indígenas ofereciam-lhes de sua comida, seu espaço e mesmo seus corpos para que fossem bem vindos. Mas dificilmente nos passa pela cabeça que se pudesse compartilhar essa terra sem sangrar Pindorama no fio da espada. Parece-nos sempre que a violência é o caminho natural para processos históricos. Não admira! Nunca vimos nada diferente.

E vieram séculos de escravidão. Papéis e papéis de propriedade de seres humanos, em lotes ou em unidades. Cartas de posse que dispunham sobre compra e venda, transportes, alojamento, peso, musculatura, dentição, capacidades reprodutivas, etc, etc… Assinado e passado em cartório sob os olhos da lei e de Deus.

A Inquisição também esteve aqui, arrastando as barras das batinas em poças grossas de sangue e cinzas. Tudo devidamente autorizado em cartas vindas de Roma, manuscritas em papéis de qualidade com lacres de cera vermelha e subscritas pela santidade. Assim o cristianismo produziu aqui mais papéis e papéis, com ordens de prisão, tortura, degredo e execuções públicas de mulheres, judeus, homossexuais, negros e indígenas. A turba promíscua e miscigenada nacional.

Através de cartas e documentos produziu-se o histórico obscurantista que é a marca profunda deste país. Os poderes oficiais têm o curioso hábito de anotar tudo quanto é atrocidade. Não para preservação histórica (já que quando o bicho pega a maioria dos documentos some), mas para oficializar a autorização de violências moralmente condenáveis que, se anotadas em papéis bonitos e com boa linguística, parecem justas.
É o caso dos documentos da aprovação da candidatura de Jair Bolsonaro à presidente da República pelo Tribunal Superior Eleitoral. Como é possível isso ter sido aprovado por uma alta instância judiciária? Uma pessoa que notadamente se porta como um inimigo público. Que apresenta as mais repugnantes e violentas ideias que tem da vida e do mundo como propostas para a nação. Ele deveria, por imenso acúmulo de evidências, ter tido seus direitos políticos cassados há muito tempo. Bolsonaro é perigoso para a vida pública brasileira. Um racista, misógino e homofóbico. O documento de aprovação da candidatura desse homem pelo TSE não é só um insulto ao povo brasileiro, mas configura a legitimação federal da violência. A permissão oficial ao fascismo.

No entanto, note-se a ironia, na mesma medida que a decisão do TSE é contrária à todos os princípios básicos da dignidade humana e da cidadania, exatamente por isso é que alinha-se à História do Brasil. Bolsonaro representa a secular tradição obscurantista que formou esse país.

Diante do absurdo, cabe a nós, povo brasileiro, decidirmos se vamos fazer um acerto de contas histórico com o passado de trevas. Se vamos virar o jogo para o futuro. E então? Repudiaremos definitivamente a barbárie de quinhentos anos ou daremos, com o diploma da Presidência da República, a carta branca para que um vilão continue o projeto Brasil de exclusão, devastação e aniquilamento?
#elenão

Fortaleza, 20 de Setembro de 2018

Twt: @MolotovPapillon
Inst: @PapillonBeatrice

Redação

4 Comentários

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  1. Comentário.

    Com todo o respeito ao colega, mas escrever para a patotinha é tautologia pragmática: vai concordar com o escrito quem já concorda. 

    Sugiro não falar “nós, o povo” etc. quando uma parcela do povo também votará no Bolsonaro.

     

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