Bolsonarismo é patologia, por Marco Piva

Diante do silêncio do presidente em reconhecer a derrota, bolsonaristas trancam rodovias exigindo intervenção militar

Fernando Bizerra – EFE

Bolsonarismo é patologia

por Marco Piva

Costumo recorrer à medicina para entender o que aconteceu com o Brasil nos últimos anos, especialmente após a ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República. Faço isso porque a sociologia sozinha não consegue explicar como o incentivo ao uso de armas é mais importante do que a distribuição de livros; como o uso e abuso da fé se sobrepõe ao debate dos temas que realmente importam ao país; como é possível que o achincalhamento das instituições possa significar o “exercício da liberdade”.

Em pouco tempo, o país entrou numa espiral de acirramento político onde o ódio ocupou o lugar da razão. Ao contrário de alguns analistas, dou nome aos bois. Não existe simetria honesta entre Lula e Bolsonaro. A visão de mundo destes dois líderes é completamente oposta. O agora presidente eleito surgiu no mundo da política combatendo a ditadura militar. Bolsonaro, apoiando. Lula dirigiu o mais importante e renovador movimento sindical brasileiro. Bolsonaro quis explodir o quartel para defender uma reivindicação salarial. Lula criou uma central sindical forte e o maior partido de esquerda da América Latina. Bolsonaro já transitou por sete partidos. Lula acredita nas políticas públicas de inclusão social. Bolsonaro aposta no assistencialismo tacanho e improvisado com fins eleitorais. Lula aposta na educação, na cultura e na ciência. Bolsonaro detesta o conhecimento porque prefere as armas. Lula é um líder reconhecido no mundo todo. Bolsonaro mal consegue sair do país ou receber algum chefe de Estado estrangeiro. A comparação seria longa, mas paro por aqui.

Mesmo diante de tantos exemplos completamente diferentes entre a forma de pensar e atuar de um e de outro, como foi possível Bolsonaro conquistar 58 milhões de votos? Volto à medicina que citei no início. Bolsonaro é uma infecção que provoca inflamação. O que vimos com o bloqueio de estradas federais por caminhoneiros descontentes com o resultado das urnas mostra bem a que ponto chegamos quando não separamos o joio do trigo, ou seja, quando enfiamos no mesmo saco alhos com bugalhos.

As eleições brasileiras são reconhecidas mundialmente pela sua eficiência, competência e transparência. Permanentemente auditada e atualizada, a urna eletrônica é uma grande contribuição para a democracia. No entanto, o que acontece? Bolsonaro promove uma campanha de descrédito do sistema e ao ver um resultado apertado na sua derrota, se comporta como um menino mimado que ficou sem a bola. Esta é a infecção. Daí para a inflamação, é um passo.

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Diante do silêncio do presidente em reconhecer a derrota, bolsonaristas trancam rodovias exigindo intervenção militar e a negação do resultado das urnas. Querem Lula preso de qualquer maneira, mesmo que a Justiça diga o contrário. Então, o que está por trás disso senão a expressão mais pura de que realmente o Brasil perdeu quatro anos de sua vida nas mãos de alguém sem a menor competência para ocupar a Presidência da República.

Nada em seu governo teve planejamento de longo prazo em qualquer área. As pessoas designadas para os principais cargos não conheciam a máquina pública. Experientes no mundo privado, acharam que bastaria administrar o setor público com bordões liberais e slogans de comércio varejista. Estratégia zero. Não que pudéssemos esperar algo melhor de um presidente que sequer entende a importância da liturgia do cargo. A escolha, já em 2018, não era difícil.

Chegamos agora ao ponto no qual apesar da infecção ter sido identificada, o antibiótico da democracia ainda não teve o efeito que dele se espera. A inflamação se expressou nas estradas bloqueadas – somente federais, notem bem – e na clara tentativa de desacreditar nas ruas a legitimidade das eleições.

É certo que nada se pode esperar de alguém que vê na inteligência e na razão uma ameaça à sua própria ignorância. Afinal, quem sai por aí justificando seu voto gritando “minha bandeira jamais será vermelha” sofre de alta dose de disfunção cognitiva. E nem peço aqui o famoso “faz um Google” para se obter o mínimo conhecimento da história.

Mas este é o legado que Bolsonaro nos deixa. Um país ainda mais dividido, corroído pelo ódio, abrigado num fundamentalismo religioso de ocasião que usa a fé para plantar temores e que lança mão de supostos valores nacionalistas como se a bandeira e a nação fossem propriedade de apenas um grupo social e não de todo o povo.

Meu desejo é que o Brasil volte o quanto antes à normalidade e que o debate de ideias e propostas aconteça no campo próprio das instituições. Somente assim vamos debelar a infecção e acabar com a inflamação. Antibiótico democrático já!

Marco Piva é jornalista, apresentador do programa Brasil Latino na Rádio USP e pesquisador do Centro de Estudos Latino-americanos de Cultura e Comunicação da Universidade de São Paulo (CELACC-USP).

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Redação

2 Comentários

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  1. Piva, bolsonaro não é e nunca foi líder. Comparar Lula com o B é 1 recorte válido. Porém este B foi eleito por 28 anos e ninguém viu nada! 2018 e 2022 avalanche de votos! Ele pode ser o q fordo ponto de vista das psicopatias mas é certo q há uma direita radical q o lidera há tempos. O B pode evaporar mas a direita espúria não será fácil banir.

  2. Wilhelm Reich vai dizer que a situação que estamos passando chama-se “Praga Emocional”. Recomendo muito ler o livro dele “A Função do Orgasmo” e “Psicologia de Massas do Fascismo”. Atualmente pouca gente da psicologia lembra dele e só menciona a psicanálise de Freud ou a Psicologia Profunda de Jung (alô Cine Gnose!), mas Reich tem boas contribuições que transitam do aspecto individual ao coletivo.

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