Como o bolsonarismo ajudou a naturalizar a condição análoga à escravidão, por Eduardo Borges

O que o bolsonarismo fez, juntamente com o anonimato covarde das redes sociais, foi empoderar os sujeitos que flertavam com valores abjetos

MPT-RS

Como o bolsonarismo ajudou a naturalizar a condição análoga à escravidão

por Eduardo Borges

Por mais que a figura insignificante do deputado Jair Bolsonaro já nos desse pista de que se tratava de uma figura pública abjeta, os quatro anos do Jair presidente deixou evidente de que o bolsonarismo extrapolou o campo político e institucional e transformou-se em um conjunto de normas e valores representativo do que existe de pior na humanidade. Anti-humanista e com nenhum apreço pela racionalidade, o bolsonarismo foi gestado e processado em uma “esgotofera” fétida em que valores que imaginávamos estarem reclusos aos livros de história foram reprocessados por uma lente reacionária e cruel. Nosso passado escravista é um desses temas que só deveria ser resgatado para lembrar à humanidade que já fomos passíveis de agir com tamanha crueldade e incivilidade, mas que tivemos a capacidade de cortar na própria carne, resignificando nossos valores e construindo um presente amparado em um melhor grau de civilidade e respeito à dignidade humana. Ledo engano, o bolsonarismo veio para nos mostrar que não aprendemos com os erros do passado e que a humanidade realmente caminha para um quase inelutável fracasso.

            É fato que o bolsonarismo não inventou a homofobia, o racismo, o machismo e o elitismo entre os brasileiros, esse comportamento é estrutural e sempre esteve entre nós ainda que de forma latente e envergonhada. Contudo, o que o bolsonarismo fez, juntamente com o anonimato covarde das redes sociais, foi empoderar os sujeitos que flertavam com esses valores abjetos, mas que faltavam-lhes o aval de uma liderança que lhes dessem a legitimidade oficial de tornar-se orgulhosamente e publicamente um indivíduo torpe e vil. Através de falas e ações grotescas, Jair Bolsonaro foi minando por dentro instituições e valores civilizacionais. Assim aconteceu com a escravidão. Se o capitão Corona, por motivos óbvios, não pode ser responsabilizado pela existência histórica da escravidão no Brasil, pode muito bem ser responsabilizado por levar uma parcela da população a minimizar os danos históricos da escravidão na vida dos cidadãos brasileiros afrodescendentes.

Em tempos revisionistas da era bolsonarista, o deputado bolsonarista Luiz Philippe de Orleans e Bragança, por ocasião das comemorações do dia 13 de maio, afirmou, em sessão realizada na Câmara dos deputados, a seguinte perola: “Eu percebi que a escravidão é tão antiga quanto a humanidade. É quase que um aspecto da natureza humana”. Para justificar sua tese, depois de dizer que costumava ler filósofos da antiguidade clássica, o deputado, que é trineto da princesa Isabel, apresentou uma série de povos que no passado também empreenderam a escravidão de seres humanos. O problema é que a fala do deputado estava completamente desconectada do 13 de maio cuja representação simbólica é a de saudar o fim da escravidão e não buscar sua justificativa histórica.

              Ao identificar a escravidão como um “aspecto da natureza humana”, o deputado tira a responsabilidade do indivíduo sobre ela. Esquece ele que se a escravidão é um aspecto da natureza humana e isso se explica no conhecimento do processo histórico desde a antiguidade, faltou o deputado dizer que também a resistência à escravidão humana é tão antiga quanto a própria escravidão. Logo, seria o caso de concluirmos que tanto a escravidão, como a resistência a ela, podem ser passíveis de pertencerem à natureza humana.

Tem mais, em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura, perguntado se seria favorável às cotas raciais nas universidades, Bolsonaro respondeu: “Que dívida é essa meu Deus do céu. Um negro não é melhor do que eu nem eu sou melhor do que ele. Por que cotas?” além de afirmar que o Brasil não tinha nenhuma dívida histórica com a escravidão. O bolsonarismo é, antes de tudo, uma questão de déficit de neurônios.

O discurso reacionário do bolsonarismo tem ajudado a naturalizar, entre parcelas das elites brasileiras, a exploração da classe trabalhadora além dos limites do que esperamos seja uma relação de trabalho que atenda os parâmetros básico de humanismo e civilidade. Se o leitor acha que estou exagerando, vamos aos fatos, eles valem mais do que mil palavras.

            Bolsonaro pode ser considerado um neo neo liberal. Depois de defender em toda sua carreira como parlamentar o estatismo e os direitos das corporações, resolveu assumir radicalmente o discurso do baronato do capitalismo brasileiro. Devidamente instrumentalizado por seu guru econômico, o ultraliberal banqueiro Paulo Guedes, o Bolsonaro candidato a presidente precisava se tornar palatável à burguesia da Faria Lima. Figura exótica e completamente desconhecida da política nacional, Bolsonaro transformou-se em uma caricatura de liberal suficiente para agradar a FIESP et caterva.

              Entretanto, como toda caricatura, resolveu ser mais realista do que o rei. Se era preciso convencer a burguesia brasileira de que ele era um candidato confiável, a subserviência deveria ser exponencial. Nesse contexto, surge o grande slogan da campanha bolsonarista referente ao mundo do trabalho: “ou todos os direitos e desemprego ou menos direitos e emprego”. Música nos ouvidos dos empresários, esse slogan simbolizaria o quanto a classe trabalhadora brasileira – aquela parcela que votou em Jair – estava completamente alienada em relação ao seu lugar na sociedade.

              O apoio dos empresários foi decisivo no segundo turno das eleições. Uma vez vitorioso, Bolsonaro retribuiu em larga escala. O primeiro presente foi a extinção do ministério do Trabalho que acabou se transformando em um filho bastardo de três outras pastas entre elas a Justiça de Sergio Moro e a Economia de Paulo Guedes.

              Criado em 1930, sob o governo de Getúlio Vargas, o ministério do Trabalho sobreviveu até mesmo aos 25 anos de Ditadura Militar. No começo do século XX a relação entre o capital e o trabalho engatinhava no Brasil e o MT surgiu justamente para mediar essa relação. A criação de leis trabalhistas, mais tarde fixadas na CLT, visava criar um aparato de proteção aos trabalhadores parte mais frágil do conflito.

              O servilismo de Bolsonaro diante do empresariado brasileiro vai muito além de uma simples vontade pessoal. O que está em jogo é um processo de desmonte do sistema de proteção da classe trabalhadora já iniciado desde a reforma trabalhista de Michel Temer. Bolsonaro apenas aprofundou o processo que serve como caminho de estabilidade da exploração da classe trabalhadora brasileira. Semelhante a 1930, a relação desigual entre o capital e o trabalho, somente aprofundou. Em um contexto do que tem sido chamado de “uberização” das relações trabalhistas, a informalidade, travestida pelo eufemismo pomposo de “empreendedorismo”, tende a aprofundar, no longo prazo, a precariedade das condições de trabalho e vida do trabalhador.

              A terceirização, aprovada por Temer e ampliada por Bolsonaro, é o exemplo mais plausível do grande engodo que caracteriza o slogan “ou todos os direitos e desemprego ou menos direitos e emprego”. Não houve crescimento do emprego formal no Brasil depois da terceirização e da reforma trabalhista do governo Temer. Por outro lado, com a intervenção na justiça do trabalho em favor dos patrões, em nome de uma mentirosa “modernização”, o que houve foi o aumento da proteção da classe patronal em detrimento dos direitos trabalhistas.

              A subserviência de Jair Bolsonaro aos empresários brasileiros chegou a ser patética. Em entrevista à jornalista Leda Nagle, disse ele:  “É um montão de coisas em cima de quem produz. Vive sufocado! Muita gente reclama que quer emprego e critica os patrões. Tenho conversado com o Paulo Guedes que gostaria de apresentar um programa “Minha primeira empresa”. Essas pessoas que reclamam que não têm emprego… Vai ser patrão! Vai enfrentar uma CLT! Contrate dez pessoas com a CLT pra ver a barra pesada que é. Sei como é difícil a vida dos empregados, mas a do patrão é também“.

              Quanto aos direitos trabalhistas ele não poderia ser mais servil, vejamos o que afirmou o amigo do Mickey “A mesma coisa é direito trabalhista. Tudo que é demais atrapalha. Muito amor até atrapalha(…) É tantos direitos. O que o patrão que quer empreender faz? Contrata o mínimo possível e paga o mínimo possível (…) Pra, quando tem uma rescisão lá na frente, ser o mínimo pra você pagar“.

              Repito: “A mesma coisa é direito trabalhista. Tudo que é demais atrapalha”. A parcela da classe trabalhadora que votou em Jair Bolsonaro precisa urgentemente de um divã. Desconfio que trata-se de um profundo caso de masoquismo.

              Não satisfeito em precarizar as condições de trabalho em nome de um servilismo vulgar ao empresariado brasileiro, Jair Bolsonaro avançou sobre um aspecto do mundo do trabalho que a princípio se entendia como fato consumado. Em uma cerimônia que anunciava a revisão de 36 normas que tratavam das regras de proteção da saúde e da segurança de trabalhadores, Bolsonaro aproveitou para criticar a emenda constitucional que pune com expropriação a propriedade rural que pratica trabalho escravo.

              A emenda diz o seguinte: “As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.”[1]

              De acordo com o presidente o empregador “não quer maldade para o seu funcionário nem quer escravizá-lo“. De forma muito consciente afirmou: “ninguém é a favor de trabalho escravo“. Desconectado do mundo real, Bolsonarismo passou quatro anos de seu governo negando e desconstruindo a realidade. Segue um dado da realidade: conforme reportagem de 14 de dezembro de 2003 elaborado por Ulisses Campbell do jornal Correio Braziliense, o Ministério do Trabalho libertou nos últimos anos 29.587 trabalhadores do regime de escravidão em seis estados.[2]

            Não satisfeito, em uma entrevista, Bolsonaro teve o desplante de dizer que a “linha divisória do trabalho análogo ao escravo é muito tênue” e que o empregador necessitava de uma garantia para que as condições de seu trabalhador não fossem classificadas como análogas à de escravidão. Ou seja, para o presidente, trabalho escravo realmente deve ser devidamente punido, mas “trabalho análogo à escravidão” precisa ser melhor analisado a culpabilidade de quem o exerce. Em outras palavras, a culpa é da vítima.

            O ex presidente ainda era um obscuro deputado quando em 2003, por conta de um sério debate na sociedade no sentido de uma tentativa de erradicação do trabalho escravo no país, foi editada a Lei n. 10.803, de 11 de dezembro de 2003, que veio dar nova redação ao delito previsto no artigo 149 do Código Penal – Redução à Condição Análoga à de Escravo.

            Como esse tipo de debate humanitário não interessava ao reacionário deputado Jair Bolsonaro, ele não ficou sabendo que o artigo sobre esse tema é bastante claro quando diz: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. Não existe linha tênue, como diria Arnaldo Cesar Coelho a Lei é clara. O que existe é uma conveniente interpretação da lei feita por um sujeito insensível e mesquinho.

            Para um “ingênuo” e “bondoso” Bolsonaro o empregador brasileiro não quer maldade para seu funcionário esse negócio de trabalho escravo existe apenas na cabeça de uma minoria insignificante. Portanto, quando ele critica o rigor e a falta de objetividade da legislação sobre o tema, a intenção é sempre o de legislar em defesa da causa dos patrões. Nesse sentido, como vem acontecendo em outros temas, o governo brasileiro se distancia do debate internacional que se mostra cada vez mais preocupado em fiscalizar o todo da cadeia produtiva dos produtos comercializados no mundo. O respeito irrestrito aos direitos humanos no processo produtivo é referência mundial nos principais países democráticos. Portanto, ao questionar a legislação que combate o trabalho escravo, Bolsonaro colocou o Brasil, mais uma vez, em situação de constrangimento internacional.

            Essa semana o Brasil amanheceu com mais uma tragédia humanitária vinculada ao mundo trabalho. Uma inspeção do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal ajudou a resgatar dezenas de trabalhadores que se encontravam em situação análoga à escravidão. O fato ocorreu em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, e além da condição de trabalho análoga à escravidão, quem também estava por trás da odiosa situação foi a maldita terceirização, encampada desde o governo Temer na rasteira do golpe contra Dilma Roussef. Uma empresa terceirizada cumpriu a função de fazer o trabalho sujo para a elite limpinha do agronegócio. As condições de trabalho eram degradantes. Relatos de trabalhadores se referiram a agressões verbais e físicas, jornada exorbitante de trabalho, além de atitudes tais como espancamentos, choques elétricos e tiros com balas de borracha.

            Mas não esqueçamos, para o ex presidente o empregador brasileiro não quer maldade para seu funcionário e esse negócio de trabalho escravo existe apenas na cabeça de uma minoria insignificante. Em suma, Bolsonaro não criou o trabalho análogo à escravidão no Brasil, mas suas falas e ações limparam o terreno para que ele continuasse existindo entre nós. Além disso, serviu também para que uma gama de canalhas, como um certo vereador, se sentissem empoderados suficientes para saírem de seus esgotos e vomitarem toda sordidez humana que, por pura ingenuidade, imaginávamos estivem restritas ao passado histórico. Não se enganem, o ventre de onde saiu essa gente continua francamente fecundo. Ou, em outras palavras, tal qual as milhares de mortes do Covid, e o sofrimento dos Yanomamis, essa é mais uma tragédia humana brasileira que vai para a conta do bolsonarismo e de todos aqueles que nele ainda continuam acreditando.

Eduardo Borges – Historiador


[1] https://jus.com.br/artigos/39728/mudancas-empreendidas-no-art-243-da-constituicao-federal-pela-pec-do-trabalho-escravo-emenda-constitucional-n-81-2014

[2] https://jus.com.br/artigos/4844/o-trabalho-escravo-e-o-novo-art-149-do-codigo-penal

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Redação

1 Comentário

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  1. o bolsonarismo não foi gestado na esgotofera, o bolsonarismo é um efeito, existe antes do bolsonaro e foi gestado na egosfera. Os fundamentos do conforto pessoal na egolatria, no meu, no melhor pra mim. E quando o melhor pra mim deixa o pior para os outros, na hora que eu viro “os outros” vou oferecer resistência, eis a origem da escravidão e a tal “natureza humana”.

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