Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
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Dilaceramento tático e crise estratégica, por Ion de Andrade

Dilaceramento tático e crise estratégica

por Ion de Andrade

O cenário incerto do curto prazo vem submetendo a esquerda a um jogo de tensões que torna difícil optar por uma alternativa unitária para enfrentar o governo ilegítimo. Vão e vêm as propostas de Fora Temer e Diretas Já e de Anulação do Impeachment e Volta Dilma. Porém o que parece despudoradamente consolidar-se é a permanência de Temer até 2018, o que nos obriga a um exaustivo enfrentamento do governo zumbi, indiferente às ruas, alimentados quase que unicamente pela hipótese Lula.

Esse cenário de incertezas contribui também para a permanência de Temer fato que vai nos levando para a quarta fase do luto como o vê Elisabeth Kubler-Ross, a depressão. Aos interessados, há muita coisa sobre as fases do luto de Elisabeth Kubler-Ross na internet.

Nessa fase depressiva, o grosso da elaboração da esquerda vem se concentrando em dois temas principais: a atualização quotidiana das péssimas notícias advindas do golpe, associada a uma análise verdadeiramente apocalíptica sobre o Brasil e a crítica aberta e ou sob manto de análise da ausência do povo da grande arena cívica das ruas. Depreende-se desse nosso depressivo momento, em suma, a verdade (objetiva) de que as coisas vão de mal a pior em todas as áreas, o que se vê agravado pelo fato de que o principal interessado, o nosso povo, parece estar, conforme a melhor opinião da esquerda, francamente desinteressado de tudo o que arruína o que de mais sagrado há.

A esse dilaceramento tático que se soma ao luto em sua fase depressiva e que nos acomete a todos, nos acrescentamos uma crise estratégica. Essa crise estratégica já havia mostrado o rosto desde o fim do primeiro governo Dilma quando discutíamos fartamente a incapacidade do governo de dar o ”passo seguinte” às políticas de enfrentamento da miséria e das desigualdades com algo inovador, algo que fosse capaz novamente de produzir coesão política de amplos setores da sociedade e repor as engrenagens em marcha rumo a um novo ciclo de politização, bem estar e participação social.

Esse estrangulamento estratégico, não superado, atingiu o seu paroxismo nas jornadas de junho de 2013 que emergiram como um insondável mal-estar, uma mescla de aspirações legítimas do povo e de degenerações fascistas, a esfinge mítica do totalitarismo, metade gente, metade fera, semente do Estado arbitral fascista. Com um “decifra-me, ou te devoro”.

Como remediar a crise estratégica sem modelos de transição ao socialismo e ouvindo os cantos de sereia do país de classe média de Mercadante?

Da cartola então surgiu, não a primeira flor de uma nova era, mas a última e bonita flor do Lulismo, o necessário, embora tardio, Programa Mais Médicos.

Esse tardio programa encerra, com chave de ouro, as políticas de combate à pobreza e à desigualdade, desempenhando um papel crucial de garantia de acesso à atenção básica. Assim caracterizado, entretanto, uma vez implantado pôde mostrar que a pergunta sobre o que fazer nessa segunda fase continuava sem resposta.

Surpreendentemente, enquanto vivíamos nós entalados com essa indigestão teórica que nos fez incapaz de partir para um arremate do Projeto de Sociedade em gestação; o nosso povo continuava mergulhado na pobreza, talvez não mais a mesma pobreza na renda, mas a pobreza do país violento, horroroso para os pobres e sem perspectivas: o pão nosso das maiorias.

Não fizemos a revolução nas periferias, como clamou a Carta de Natal dos movimentos sociais, não tivemos nesse cenário estratégico para nós um PAC que atualizasse a vida dessas comunidades trazendo-as ao menos para o século XX. Esse abandono do Projeto de Sociedade nas periferias em função de uma emancipação pela renda e pelo estudo, fortaleceu naturalmente valores meritocráticos nessas comunidades, afinal, vamos entender, é humano, é melhor pensar que o sucesso material é mérito próprio de uma vida de lutas, sacrifícios e dificuldades, do que um fenômeno econômico, que arrastou 40 milhões.

A agenda estratégica do século XX, na qual o povo brasileiro foi vitorioso, porque saiu d’”O Menino morto” de Portinari, para o SUS, foi a da Sobrevivência, que Lula tão bem soube interpretar, ao arrepio de uma certa esquerda que considerava matar a fome despolitizador. A do século XXI será a da emancipação política, da dignidade, da vida interior, da cultura, da estética e de tudo que dá sentido à sobrevivência e à vida. Deverá dar alcance e sentido às lutas pela sobrevivência que marcaram o século XX. É esse processo que produzirá em massa o surgimento de uma cidadania ativa e consciente, (a classe para si) capaz de estabilizar a democracia e permitir que continue avançando. Se apenas por solidariedade já se justificaria,, emancipar as periferias significa posicionar o povo de forma forte e numerosa no cenário dos enfrentamentos que dependerão do seu insubstituível protagonismo.

O último artigo de José Dirceu, (clique aqui para ler) importante aliás, faz uma análise de conjuntura amarrada a um horizonte estratégico próximo, 2018. Ele pauta a volta ao poder e a eleição de Lula. Essa importante reflexão que sai do oito depressivo (tudo está péssimo e o povo não faz nada) e é propositiva, não cai na armadilha do curto prazo, pois enuncia tangencialmente os horizontes mais longos, mas não detalha. Entretanto, a questão que nos falta responder de forma aprofundada, é o quê e como fazer esse “depois” do longo prazo.

Precisamos portanto de uma agenda orgânica para o longo prazo, necessidade que não perde importância sequer na hipótese otimista de sermos vitoriosos no horizonte tático. Mesmo que elejamos Lula, (e ainda mais se não o elegermos), continuamos a ter imensa necessidade de uma agenda de médio e longo prazos que possamos construir ao longo do tempo num esforço coletivo do nível nacional ao municipal, nas periferias e zonas rurais e que rompa com a ditadura do curto prazo que está enlouquecendo e entristecendo a toda a esquerda e fazendo-a por impaciência afastar-se ainda mais do povo.

Recentemente a Frente Povo Sem Medo propôs uma discussão coletiva nacional em torno de temas estratégicos para o Projeto de País (clique aqui para ver). Independentemente do fato de que no horizonte tático diversos componentes dessa frente talvez não venham a apoiar Lula no primeiro turno, a metodologia da discussão coletiva de problemas complexos, que demandarão tempo e lutas para encontrar solução inova no sentido de calibrar a bússola para os grandes nortes consensuais que haveremos de definir.

Temos que passar para a quinta fase do luto de Elisabeth Kubler-Ross. A que permite enfrentar a perda com serenidade.

Nos empenhemos para eleger Lula, vamos fazer o nosso melhor para protegê-lo da sanha fascista. Mas vamos entender que Lula está no arco do curto prazo. Mesmo com ele precisamos saber para onde vamos.

Mas o arco do longo prazo funciona como o norte de uma bússola. Uma estrela que parece fixa. A ela chegaremos por múltiplos caminhos e devemos entender, sejam quais forem as circunstâncias.

A ideia da revolução das periferias, da superação da dicotomia Casa Grande & Senzala, de trazer o povo à contemporaneidade e de politizá-lo pode ser construída em cada prefeitura ganha para essa causa, em cada associação de moradores, em cada escola e em cada sindicato.

Precisamos de um projeto que nos permita construir noite e dia, de verão a verão.

Não nos iludamos, essa luta é secular.

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

10 Comentários

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  1. Sou fã número um de LULA

    Sou fã número um de LULA  ..dito isso, contar só com ele é pormos todos os ovos numa cesta frágil (até pela idade do líder)

    Importante, pra mim, seria assumirmos a opção pela correção de alguns erros HORROROSOS que foram cometidos nos últimos anos (porque as centenas de acertos são insofismáveis e indiscutíveis) ..como por exemplo

    – o de se esquecer de defender e representar também a CLASSE MÈDIA (tb um trabalhador precarizado, fragilizado e oprimido quando não é funcionário público), esta que é um importante segmento da sociedade e que muitas vêzes doi criminalizada e DISCRIMINADA por inúmeros movimentos ditos progressistas

    – Admitir que o maior dos erros foi com DILMA ao FRAGILIZAR o Estado em suas finanças, colocando-nos novamente reféns das AGÊNCIAS DE RISCO e de bancos  ..desonerando em demasia  ..contando precocemente com o “ovo da galinha”  ..cedendo às pressões libertinas por mais juros ao mercado.. 

     ..e, porque não, com LULA desde o primeiro mandato, ele que se NEGOU a FISCALIZAR e ordenar mais o mercado, a corrigir defeitos cronicos, como com o excesso de cartéis e de fusões que prejudicarão o cidadão e a eficiência da economia por GERAÇÕES  ..em praticamente rtodos os segmentos

    – penso que nestes e tantos outros temas, ainda caberia ponderarmos o efeito NEFASTO que a fulanização equivocada pela defesa dos direitos humanos provocou  ..este verdadeiro estigma com a criação do mote constantemnte usado pela direita que acusa (até com certa razão) da esquerda só defender direito pra BANDIDO e negro,  e não pra policial, de qq etnia e/ou trabalhador

    ..enfim  ..tratar destes temas espinhosos, só com muita HUMILDADE, coragem e sem preconceito  ..é coisa que envolve a EDUCAÇÃO e seus efeitos cíclicos, quer a educação vinda pelas Instituições, pela famílias, escolas, igrejas ou pela mídia (esta PORCA parceita de sempre)

    ..sem duvida é coisa pra décadas de existência

     

  2. Nos anos que esteve no poder

    Nos anos que esteve no poder a esquerda fez coisas maravilhosas. Fato.

    A queda de Dilma Rousseff foi produzida por uma coalisão de jornalistas espertalhões, juízes partidarizados e políticos ladrões. Fato.

    Todavia, o fato que deveria determinar qualquer avaliação do futuro deveria ser aquele que a esquerda se recusa a admitir: a fragilidade política do ambiente que ela mesmo construiu ao dar prioridade à distribuição de renda.

    Clinton dizia que o problema era a economia.

    No Brasil o problema da esquerda é a política.

    A política que a esquerda deixou de fazer na base precipitou a ruína de um projeto que não poderia mesmo se sustentar apenas pelo topo.

     

    1. nos….

      Idéia inovadora. Se D. Sebastião não ascender aos céus em seu Cavalo Branco, podemos embalsamá-lo, fazer um mausoléu nas Praça dos 3 Poderes e permitirmos a exposição pública. O que faremos se Lula não mais existir? Como este país sobreviveu por quase 500 anos sem Lula? Como é possível sobreviver sem Lula?  Um novo Caudolho na história das Repúblicas Latino Americanas. No Brasil, em especial. Quanto avanço da nossa Elite Esquerdopata?!

    2. Gente com fome não produz

      Gente com fome não produz necessariamente revolucionários. Pode produzir monstros que se autodevoram (a violência comum que estamos vendo) ou escravos (milhões se humilhando por um emprego de servo). Portanto a distribuição de renda é um passo inicial, a escola é um passo inicial. Entrar na periferia não é assim tão fácil, os lobos evangélicos estão por lá oferecendo “amizade” e “salvação” mas só em troca de MUITO dinheiro. Resumo: fazer mudanças não é simples. O autor do texto tem razão: é uma coisa para século.  

  3. Até aqui, tudo bem…

    “despudoradamente consolidar-se é a permanência de Temer até 2018”

    Assim a globo decidiu e foi inserido no cérebro dos brasileiros pelos jornalistas de progama da globo. Está cheio de imbecil aceitando a narrativa do plimplim de que é melhor continuar o treme, mesmo. Está mais cheio ainda de gente que acha que teremos eleições limpas e democráticas em 2018. E que os resultados contra a vontade da globo serão respeitados. Sonho de uma noite de verão! 

    Distritão, parlamentarismo, financiamento de campanha, ÇERRA45, juca, fegacê, meiReles, doriana, gilmau, elizeu quadrilha, etc, são a continuação do golpe e os fiadores da eleição de 2018.

  4. E quem é que educa o povo?

    Quem educa (ou deseduca) o povo são governos (?) estaduais e municipais e a rede sonegadora de televisão Globo/Mossack-Fonseca e seus asseclas. E quem arregimenta e organiza as gentes que chegam manipuladas e abestalhadas nas universidades? São os irmãos Koch e seus comparsas por meio dos grupos da Atlas Network e outras organizações “sem fins lucrativos”.

    https://jornalggn.com.br/noticia/libertarios-americanos-e-a-reinvencao-da-politica-na-america-latina-por-lee-fang

    Quando é que um partido, seja lá qual ou quem, ou de qual ou de quem, for, tem condições de resistir diante dessas avassaladoras operações de guerra?

    Nunca!

  5. Apenas um projeto de poder

    Análise precisa e lúcida. Luz em tempos de trevas.

    A compreensão de lutar nas duas frentes, sem que as contradições inerentes que cada uma das opções colocam em seus respectivos limites, é o que eu chamaria de uma compreensão “marxista-leninista” da realidade, se este termo já não estivesse tão gasto, tão mal utilizado que foi durante décadaas de “socialismos/comunismos” de tendências autoritárias de vários matizes. 

    O velho fantasma da questão do programa máximo X programa mínimo ainda nos visita e continua sendo uma das questões táticas e estratégicas mais compelxas no campo das esquerdas. Principalmente proque elas se contradizem, mas exigem uma condução dúplice, sem que nos percamos em armadilhas legalistas que acabam nos sufocando ou aventuras delirantes de assalto ao poder. É de fato caminhar no fio da navalha.

    O grande problema que a análise não aborda reside na postura atual do PT, que se recusa a uma autocrítica necessária, que se recusa a reconhecer como iguais os movimentos políticos partidários ou sociais não alinhados à sua “lógica eleitoral”, que se recusa a abrir mão de uma “hegemonia” no campo das esquerdas, que continua a exigir apenas a submissão de todos ,brandindo unicamente o estandarte do sebastianismo lulista, que continua não resolvendo os nós górdios, as correntes que nos mantem a todos presos à estrutura da casa-grande, que não enfrenta as questões de organização efetiva do povo para lhe dar sustentação política efetiva e nas ruas no enfrentamento destes gargalos que represam o avanço da civilização brasileira.

    A propositura da Frente Sem Medo deveria receber as propostas do PT, seria a possibilidade das esquerdas construirem um fórum , um programa político assentado verdadeiramente no povo organizado, mas o PT deseja isto de fato?

    Não, porque significaria reconhecer-se como apenas mais um entre iguais.

    Em outras palavras, o PT continua tratando apenas de um projeto de poder que depende unicamente das chances de Lula.

    O que querem de nós continua sendo apenas o voto, e depois, eles resolverão os “problemas de governabilidade” com a  arte lulista de conciliar senhores com escravos.

    A manter esta postura, caminhamos todos para o abismo do fascismo.

  6. A melhor oportunidade passou.

    A melhor oportunidade passou. De fato, a era Lula não politizou a periferia. Se tivesse politizado, três cenários seriam possíveis:  o Brasil estaria se tornando potência de médio porte, o golpe teria acontecido antes ou seriamos uma grande Venezuela. Sem consenso das esquerdas e uma elite progressista ínfima e sem identificação com os excluídos, a via mais rápida para derrotar o golpe é a eleição de Lula. No momento, é quase uma utopia. 

  7. “Da cartola então surgiu, não

    “Da cartola então surgiu, não a primeira flor de uma nova era, mas a última e bonita flor do Lulismo, o necessário, embora tardio, Programa Mais Médicos.”

     

    Lendo um trecho desses a gente entende como a esquerda tem tanta dificuldade de governar, e pior ainda, de fazer determinadas análises. Vamos verificar as grandes conquistas do Mais Médicos

    1-Hostilizou uma categoria profissional que poderia ser uma aliada do projeto petista, se o pessoal do Ministério da Saúde fosse menos truculento e mais inteligente. 

    2-Institucionalizou a terceirização e o trabalho precário na área de atendimento à saúde (ooops….o PT não é conta a terceirização? mas para o governo cubano pode….)

    3-Não resolveu nenhum dos problemas da saúde pública no Brasil, que estão relacionados, basicamente, ao subfinanciamento do sistema e à desindustrialização do país.

    4-Utilizou moeda forte para pagar um serviço que estaria disponível em reais.

    5-Finalmente, estimula a criação de faculdades particulares caríssimas, de qualidade duvidosa, que vão despejar no mercado profissionais já endividados (haja FIES) para trabalhar em condições de remuneração cada vez piores. Quem ganha com isso? Os donos de faculdades de Medicina, indiretamente financiados pelo setor público e os planos da saúde, que vão contar com mão de obra barata e abundante. E tem gente que diz ser essa uma política de esquerda (?!). É só seguir o dinheiro e a gente percebe a quem interessam essas políticas.

     

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