Epidemia de doenças mentais em tempos de capitalismo ultraliberal, por Rita Almeida

Epidemia de doenças mentais em tempos de capitalismo ultraliberal

por Rita Almeida

Não é necessário ser especialista para ver “a olho nu” o que algumas pesquisas, aqui e acolá já constataram: as desordens psíquicas ou psiquiátricas estão em uma reta ascendente. Diante desta realidade, as perguntas que vou fazer a seguir não são de modo algum inéditas, mas precisam ser repetidamente levantadas: Será que estamos mesmo adoecendo mais da nossa psique? Será que estamos apenas conseguindo diagnosticar, pelo avanço das ciências médicas e psicológicas, problemas que antes não conseguíamos? Ou será que ampliamos tanto o espectro do que é considerado “patológico” que transformamos quase tudo em doença mental?

Diferentemente de outros campos da medicina, a psiquiatria traz consigo uma particularidade, especialmente no que se refere ao diagnóstico, já que grande parte das doenças mentais não é comprovada por exame. Ou seja, mesmo que o sujeito não apresente nenhuma anomalia ou disfunção que possa ser observada em um laboratório de análises clínicas ou de imagem, ainda sim, por um conjunto de sintomas e sinais, ele pode ser diagnosticado como portador de algum transtorno mental. Essa peculiaridade leva a algumas questões éticas que perseguem a psiquiatria desde o seu nascimento: Qual é o limite que distingue a loucura da normalidade? Como fazer esta medição?

A novela Machadiana, O Alienista, ilustra bem esse incômodo ético. Simão Bacamarte é o médico que envereda pelo ramo da psiquiatria e que, autorizado pelo rigor da sua ciência, acaba por internar todos os cidadãos de Itaguaí, até que só resta ele mesmo fora do hospício. Publicada pela primeira vez em 1882, o texto de Machado de Assis nos soa mais como uma profecia. Hoje, o DSM – Bíblia da psiquiatria americana exportada para o mundo que está na sua V edição – transforma quase todos os nossos mal-estares em patologia.

Mas, diante das três questões que levantei no início do texto, defendo que, a última responda mais ao que temos tomado como direção em nossos tempos de capitalismo ultraliberal. Ampliamos sobremaneira o limite utilizado para diagnosticar os males que atormentam nosso ser, transformando-os em alguma doença, de preferência medicalizável. E seria ingenuidade pensar que isso se deve a um suposto avanço científico que “descobriu” novas doenças. A verdade é que “fabricamos” novas doenças, e para um propósito muito simples, para que sejam vendidas no mercado.

Dany Dufour – em A arte de reduzir as cabeças – vai dizer que, o avanço do capitalismo, representa a morte do sujeito crítico kantiano e do sujeito neurótico freudiano; ambos sujeitos modernos. Ele nos lembra que, tal como formula Lacan quando nos diz que “o inconsciente é a política”, esse Outro que já está posto aí quando chegamos ao mundo não é um organismo fixo, ele modifica ao longo do tempo, o que, consequentemente, interfere no tipo de sujeito que irá emergir em determinada época. Assim sendo, o sujeito dos nossos tempos – balizado pelo Outro da política do capitalismo ultraliberal – seria o sujeito pós-moderno; um sujeito sem limites. Na busca da radicalidade da sua “liberdade” tal sujeito rejeita se submeter a qualquer tipo de categoria ou determinação, seja no campo da sexualidade, da identidade ou da geração. Ao rejeitar o recalque como estratégia, acreditando que assim teria mais garantia de satisfação, o sujeito pós-moderno favorece a plenitude do capitalismo, afinal, quanto menos barreiras (externas ou internas), mais interessante a esse modelo político-econômico. Se o sujeito que faz mover o capitalismo é o consumidor, ele é tanto mais interessante quanto mais flexível, descontruído e mutante for. O novo capitalismo, dirá Dufour, tem como objetivo principal destruir sistematicamente todas as instituições e todas as referências culturais e simbólicas que possam entravar a livre circulação das mercadorias.

Mas, voltando ao tema dessa nossa psiquiatria que serve ao mercado de consumo, é curioso que, em tempos de defesa irrestrita a tantas “liberdades individuais”, as diferenças que emergem sejam cada vez mais capturadas pelo mercado, incluindo o de diagnósticos e medicamentos. Atenta a tanta diversidade, a indústria farmacêutica – uma das três mais poderosas do mundo – não para de crescer e de se diversificar. Todo dia há uma nova pílula para cada novo mal-estar do ser.

E enquanto o sujeito freudiano tinha interesse em decifrar seu mal-estar, interrogá-lo para saber mais sobre seus sintomas e o véu que os encobria, o sujeito pós-moderno não quer saber nada sobre isso, na medida em que não acredita que haja qualquer simbólico que o anteceda e o determine de algum modo. O sujeito pós-moderno parece querer viver sem referências, ou seja, sem passado, usa o seu presente para consumir e o futuro para pagar a fatura do cartão. E, sem uma barreira identitária ou simbólica que o marque e que o determine em seu passado, temos sujeitos que não se sentem impelidos a escolher entre uma coisa e outra, já que eles podem,  tranquilamente, querer as duas coisas. E se sabemos que desejar implica em escolher entre uma coisa e outra, o sujeito que interessa ao nosso tempo não deseja, pois ele quer tudo. Então, que consumidor maravilhoso ele se tornou!

Para esse mal-estar sem passado, sem recalque e sem desejo, resta a prateleira de medicamentos, que serve muito bem à nossa epidemia de doenças do ser, chamadas de mentais, quem sabe apenas para caber no discurso da ciência. Talvez não seja possível resgatar o sujeito freudiano, mas, talvez seja necessário sustentar uma ética do desejo, tal como a psicanálise propõe. Isso significa escutar o sintoma como algo que diz da matéria-prima da qual fomos feitos e que serve, sobretudo, para nos manter desejantes. Tal ética inaugurada por Freud nos alerta que é impossível eliminar todos os nossos sintomas sem perder junto com eles, aquilo que representa nosso estilo de ser, aquilo que nos aproxima da obra de arte e nos afasta de sermos mera cópia de um original previamente definido, higienizado, polido e considerado normal.

Nesse sentido, o deprimido de nossos tempos, talvez, seja menos doente do que supomos. Quem sabe seja apenas esse sujeito que foi alijado do desejo e que, consumindo a si mesmo, nos denuncia que consumir não é a saída?

Rita Almeida

3 Comentários

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  1. Não é exagero: estamos mais insanos mesmo.

    Eu não sei se poderíamos chamar de doença ou de mal estar agudo, mas seja o que for, as pessoas estão mesmo sendo destroçadas em nossa sociedade. Miséria, desigualdade, ultra-individualismo, exigência de estar sempre atento (parece que somos todos escoteiros) às mudanças e nos adaptarmos a elas, aprendizado constante etc.

    E mesmo quando as pessoas vivem num padrão classe média, há uma pressão terrível para não cair o nível sócio-econômico e para subir mais degraus.

    Isso adoece mesmo a alma. E claro que a indústria de remédios se aproveita. Mas que não estamos são, isto não estamos mesmo!

    Mas a solução não é psicanálise. Ela só nos tornará mais adaptáveis e um pouco mais resistentes, além de não ser acessível a todos. A solução é sair do capitalismo.

  2. Nos EUA a indústria farmacêutica é insana

    Excelente artigo!

    Acredito que vocês saibam das coisas aqui, mas não me canso de me horrorizar quando vejo comercial de anti-depressivo antes do noticiário (da PBS!) das oito.

    Conheço uma história surreal: a filha da minha vizinha estava tomando prozac porque disse para a ginecologista (sim, isso mesmo), que não suportaria mais um semestre na faculdade. Eu fiquei pasma e disse: mas é normal os jovens adultos se sentirem inseguros em situações novas, etc, etc. Coverse com sua filha e aponte uns caminhos, umas estratégias. Ela me olhou incrédula e disse: mas como ela poderá suportar tanta coisa?

    Pois é…

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