Explicando prisão para bacharel de Facebook, por Luís Carlos Valois

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Por Luís Carlos Valois

Explicando prisão para bacharel de Facebook

O direito não ajuda as pessoas entenderem os seus próprios direitos, e isso toda a população já deveria saber. O linguajar, as nomenclaturas, os conceitos, são elaborados para fazer do direito algo distante, técnica nas mãos de alguns poucos. Não à toa essa quantidade enorme de advogados e faculdades de direito, as pessoas acabam precisando ter ao menos alguém que entenda esse emaranhado de códigos na família.

Simplificar tudo isso é difícil, e muitas vezes o leigo sequer quer realmente saber, age por impulso e pensa que direito é aquilo que sente, vê e ouve, ou, pior, intui, e sai por aí fazendo post de Facebook como se fosse um Phd.

Quando o assunto é prisão, tanto pior. A emotividade quando o assunto é esse chega às raias do absurdo. Mas o esforço nesse campo, para explicar alguns equívocos, ainda vale à pena, pois, afinal, o encarceramento é algo que atinge à sociedade como um todo, inclusive ao bacharel de Facebook.

Há dois tipos de prisão, a prisão antes da condenação e a prisão depois da condenação. Isso parece óbvio. Então, a prisão antes da condenação só pode existir se for necessária, enquanto a prisão posterior à condenação, por incrível que pareça, não precisa ser necessária, é simplesmente punição. Foi condenado, tem que ser preso para cumprir a pena.

Por óbvio que aqui estamos generalizando, pois há crimes aos quais não se aplica pena de prisão, aplicam-se as chamadas penas alternativas ou a multa, mas a maioria dos crimes no Brasil têm como pena principal a pena de prisão, o encarceramento, e quando aplicada essa pena, o judiciário a aplica independentemente do juízo de necessidade.

O leitor pode perguntar, mas como não seria necessária a prisão, se a pessoa foi condenada. Bem, não queremos aqui entrar no mérito da total inutilidade do encarceramento, aliás, da prejudicialidade do encarceramento para a sociedade. Nossas prisões causam muito mais males para a sociedade do que benefícios. Mas há casos sim em que a prisão, mesmo depois da condenação, se demonstra desnecessária mesmo sem julgarmos a inutilidade do instituto prisão.

Imaginemos um crime praticado por um jovem de 18 anos, um processo longo, em que a sentença sai quando ele está por volta dos 25 anos. Entre 18 e 25 anos muita coisa muda na vida de uma pessoa, ela pode ter feito uma faculdade, pode ter se alfabetizado, casado, ter tido filhos, mudado completamente de vida. Assim, quando sai a sentença de um processo longo, muitas vezes o apenado já nem necessitaria da pena, mas ela é imposta de qualquer forma, porque, segundo o direito, pena é pena e não se discute.

Imaginemos também alguém que, após cometer um crime, na fuga. por ocasião da legítima defesa da vítima ou mesmo por fato posterior, fique paraplégico, ou tetraplégico, totalmente desnecessário encarcerar essa pessoa. Mas, não importa, temos diversos paraplégicos ou tetraplégicos encarcerados, dormindo no chão, misturados com o resto da massa carcerária, sem assistência, acompanhamento, sem nada, obviamente sofrendo uma pena muito mais pesada e grave que os outros.

Agora, diferente, é a pena antes da condenação, esta deve ser necessária, e deve estar fundamentada em algum fato específico que não seja o crime em si, pois o processo ainda não acabou. Apesar de termos milhares de pessoas presas aguardando julgamento, esta não deve ser a regra. A regra é a liberdade. Mas de onde o judiciário tira a necessidade de se manter uma pessoa presa, tantas pessoas presas, antes da condenação? 

Ora, como a maioria é pobre, fica fácil imaginar a fundamentação dessas milhares de prisões provisórias (são chamadas prisões provisórias porque, para o direito, que, no papel, não vê cor, pobreza, nem gênero, deve-se respeitar o fato de a pessoa não ter sido condenada ainda, e dever ser considerada sem culpa, inocente). A fundamentação dessas prisões provisórias, porque o processo ainda não acabou, deve estar sempre relacionada a um julgamento do comportamento do réu, do acusado, evidente no momento do pedido dessa prisão.

Embora não possa ser um pré-julgamento do fato, porque o juiz deve manter sua imparcialidade, acaba sendo, pois deve haver algum indício de que efetivamente houve um crime e de que aquela pessoa é autora, mas o motivo mesmo da prisão antes da condenação não é ligado ao crime. Os motivos estão inclusive ligados mais ao processo do que ao crime.

Por exemplo, se o réu não pode ser encontrado se for solto, ou seja, não tem domicílio certo, os juízes têm entendido que isso é causa de se manter a prisão em flagrante, isto é, o pobre que não tem número na sua casa, que mora na rua ou em um barraco qualquer, dificilmente vai responder processo em liberdade.

Outro exemplo, quando a pessoa é acusada de vários crimes, ou tem condenações anteriores, o judiciário tem entendido que aquela pessoa “ameaça a ordem pública”, ou seja, pode continuar cometendo crimes, e mantém, se for caso de flagrante, ou decreta a prisão provisória.

Há ainda o exemplo de crimes muito graves com testemunhas, quando o judiciário entende que o acusado pode ameaçar uma dessas testemunhas, prejudicando assim a prova do processo.

Essas são, bem resumidamente, a maioria das fundamentações utilizadas para se manter uma pessoa presa por parte do judiciário, mas essa prisão, precisa, é necessária que esteja fundamentada, porque a pessoa presa tem o direito de poder se defender dessa perda de um direito tão importante, a liberdade.

Dito tudo isso, o judiciário, fundamentando, pode prender quem achar necessário. Portanto, é um total desserviço o que a imprensa fez após a última decisão do Ministro Marco Aurélio, espalhando notícias de que vários estupradores, latrocidas e homicidas iriam ser soltos, absolutamente mentira.

A prisão automática, quando é publicada uma sentença condenatória por um tribunal deveria, como acha a maior parte dos integrantes do STF, ser considerada inconstitucional, porque a Constituição diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória”, e trânsito em julgado é, ou deveria ser, quando não cabe mais recurso contra aquela sentença.

Mas se o judiciário pode prender qualquer um com as fundamentações acima, e com muitas outras não citadas, por que o judiciário precisaria de uma prisão automática durante um processo? A resposta é evidente, para não precisar fundamentar essa prisão.

E por que o judiciário não quer fundamentar uma prisão? Porque o judiciário não tem dado conta de tantos processos, tantos litígios, tantos fatos levados ao seu conhecimento, o judiciário está abarrotado. Sentar, ler um processo, avaliar, sopesar, adequar o fato descrito à lei, tudo isso dá muito trabalho.

Mas isso não quer dizer que muitos latrocidas, homicidas ou estupradores seriam soltos, isso com certeza não aconteceria. Presos do colarinho branco seriam soltos? Bem, difícil dizer, mas não seriam necessariamente soltos, porque o juiz do processo poderia encontrar, e a mente dos integrantes do judiciário é fértil nesse campo, um motivo para manter a prisão desses presos também.

A grande questão é que não pode haver em um país que se diz Estado de Direito uma prisão automática, durante o processo, antes do trânsito em julgado da condenação, sem qualquer fundamentação. Repetindo: as condenações antes de esgotados todos os recursos não são fundamentação, porque ainda não há pena certa a se cumprir.

Mesmo Lula poderia não ser solto diante da decisão do Min. Marco Aurélio, mas para tanto, para não ser solto, seria necessária uma decisão fundamentando a necessidade dessa prisão. Uma sociedade sã, não totalmente esclerosada, não pode ficar com medo da soltura de quem quer que seja, até porque se acreditou no judiciário que mandou prender, não faz sentido não acreditar no judiciário que manda soltar. 

A sociedade deveria ser a primeira a pedir que todas as decisões fossem fundamentadas, independente do acúmulo de processos, da quantidade de juízes ou da preguiça em fundamentar. O que precisamos é de sentido, de razão, de nexo, isso sim está em falta atualmente, e prisão sem fundamentação chega às raias da loucura, de uma sociedade, de uma imprensa, louca por grades e muros.

 
Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

5 Comentários

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  1. A regra é a liberdade.
    Não.

    A regra é a liberdade.

    Não. Não é não, senhor juiz.

    Estamos todos confinados em nossos presídios. Mas eles não são feitos de concreto e de aço e sim de preconceitos e conceitos deformados. Nossos presídios não estão fora e sim dentro de nós mesmos. 

    Um juiz pode meter milhares de réus nas prisões durante sua carreira . Mas ele dificilmente ele conseguirá  libertar alguém do seu presídio psicológico.

    O encarceramento massivo voluntário produz e legitima o encarceramento em massa de criminosos, suspeitos e inocentes. Os juízes controlam as portas de algumas prisões. As portas das outras – aquelas que operam efeitos independentemente de processos e condenações – são controladas pelos donos dos meios de produção simbólica.

    O abismo não devora quem olha para ele (como disse Nietzsche). Muito pelo contrario… O abismo entre a norma legal  (a regra é a liberdade) e a realidade antropológica (das prisões psicológicas que fomentam o encarceramento em massa) é criado pelo olhar. E somente pelo olhar que o abismo pode ser curado.

     

  2. Na justiça penal, se

    Na justiça penal, se consagrou o princípio do duplo grau de jurisdição, uma vez que, não é justo uma pessoa ser condenada e cumprir pena pela decisão de um juiz singular.

    Assim se consagrou o duplo grau de jurisdição onde o réu condenado apela para um tribunal, onde tres juízes (ou até 5 se houver divergencia) revisarão o processo e o julgarão novamente.

    No Brasil se criou o terceiro grau e o quarto grau, com o STJ e o STF.

    Isso é uma aberração tupiniquim.

    Recursos aos tribunais superiores demanda anos e anos e os tribunais superiores não podem ser revisores dos tribunais estaduais pelo simples fato de serem insuficientes para revisar todas as sentenças e acórdãos do Brasil inteiro.

    No ano passado, mais de cem mil demandas deram entrada no STF, o que dá quase 300 por dia. E o numero vem crescendo ano a ano.

    Isso é fácil de se explicar quando um simples recurso aos tribunais superiores podem interromper a execução da sentença condenatória, assim, de forma automática, e ainda criar a expectativa de que a sentença jamais se cumpra por causa da prescrição.

    Por esse motivo, no Brasil, os recursos aos tribunais superiores não tem o efeito suspensivo, assim a pena determinada em 2ª instancia tem de ser executada, mesmo com uma apelação para ser julgada.

    Isto está descrito no art. 637 do Código de Processo Penal que é muito claro:

    Art. 637. O recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença.

    Esse entendimento pacífico vigorou desde 1941 até 2009, quando o STF achou que esse artigo do CPP entrava em contradição com o inciso 57 do art. 5º que determina que ninguém será considerado culpado até o transito em julgado da sentença.

    “transito em julgado” é uma expressão que, em direito, significa que não existem mais recursos possíveis contra a condenação. Assim diz-se que a sentença transitou em julgado.

    A interpretação vigente era muito simples e direta. Se o único recurso possível não tem efeito suspensivo (recursos aos tribunais superiores) então a sentença se executa imediatamente pelo comando do art. 637 do CPP

    Foi um grande erro que causou um desastre no Brasil. Os recusrsos extraordinário explodiram chegando a uma situação insustentável. Aí em 2016 o STF voltou atrás dessa decisão de 2009 e voltou a vigorar a norma que vigia desde 1941.

    Ocorre que, com os julgamentos de pessoas poderosas do petrolão, com tantos políticos, empresários, funcionários público e poderosos, quiseram estão querendo repetir o desastroso período de 2009 a 2016, a fim de safar os corruptos de pagarem pelos seus crimes.

    A prisão após a 2ª instancia não foi criada em 2016. Foi reestabelecida após um período de 7 anos de desastre total. Em 2016 reestabelece-se o que era empregado desde 1941.

    Agora querem voltar ao desastre dos 7 anos, de 2009 a 2016 para safar os corruptos de pagarem pelos seus crimes.

     

      1. Se um juiz de 1º grau profere

        Se um juiz de 1º grau profere uma sentença injusta tem 3 desembargadores ao qual você pode apelar.

        Se os três desembargadores proferirem uma sentença injusta você pode apelar (preso) para o STJ.

        Se os 5 ministros do STJ proferirem uma sentença injusta você pode apelar (preso) para o STF.

        Difícil acreditar em Lawfare com tantos juízes, desembargadores e Ministros apreciando o caso.

        Agora muito fácil, um criminoso condenado, se esquivar de pagar pelo seu delito se utilizando de apelações e recursos infinitos suspenderem a aplicação da pena até seu crime prescrever,

        Não é a suspenção da aplicação da pena que salva uma pessoa do Lawfare.

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