Luta de classes na Disneylândia, por Gustavo Conde

Reinaldo é talentoso. “Chimpanzés contaminados pelo marxismo cultural” leva quase ao gozo (pela polifonia embutida). Mas seus ethos habita o império do artifício. Trepidação semântica do modo “The Voice” de enunciar.

Luta de classes na Disneylândia

por Gustavo Conde

Passarinhos digitais me contam que o texto do Reinaldo Azevedo sobre a mãe doméstica viralizou em grupos de WhatsApp. Como eu não participo de grupos (ainda mais grupos de autoproclamados de esquerda, onde escorre narcisismo, vitimismo e autopromoção individual), eu nunca sei. É um direito que me dou diante de tantas obrigações nessa vida.

O comportamento discursivo de indivíduos em grupos de WhatsApp é um capítulo à parte no mundo da psicologia social. Como são grupos não públicos (fechados, exclusivos, vips), gera-se uma energia libidinal tóxica, em que o superego desaparece. É o nascedouro do ódio político que varreu o país, muito mais do que as redes sociais (que são públicas).

Receber um relato do que se passa ali, no entanto, causa duas sensações: uma de comiseração pelo informante (que tem de passar por aquilo), outra, de ativação da sinetinha da maldade reversa: “vamos esfolar um pouco esse deslumbre”.

Nessa toada, o que dizer, concretamente, do texto do Reinaldo, esse ‘fenômeno’? Pensei numa classificação bem singela e objetiva: circo. É um virtuosismo de escrita que impressiona bem. Tem ritmo, graça, malandragem e até sentido.

Eu me lembrei, vejam vocês, dos guitarristas Al Di Meola, John McLaughlin e Paco de Lucia e de outros músicos vistuosísticos que, às vezes, encarnam metralhadoras. Testosterona derramada em guitarras. Eu adoro o emblemático e saudoso trio de cordas (e tenho paixão incontida por Paco). Mas quando eles começam a competir entre si para ver quem é mais rápido é dose.

É a estética dos ‘rachas’, das motocicletas barulhentas, da técnica elevada à undécima potência e que, por isso mesmo, mata o humano.

Foi isso que vi no texto de Reinaldo Azevedo. Vamos a um trecho:

“Há preconceito contra negros no Brasil. Há preconceito contra mulheres no Brasil. Há preconceito contra gays no Brasil. Há preconceitos no Brasil. O maior de todos, o mal talvez incurável, a canalhice insofismável, o ódio primordial, o medo primitivo é um só: de verdade, “eles” — permitam-me as aspas, que eu mesmo costumo combater — odeiam os pobres.”

Um texto nunca pode ser lido “dentro dele mesmo”. Um texto dialoga, obrigatoriamente, com os sentidos históricos de seu tempo. Faltou Reinaldo dizer: “há preconceito contra petistas”. Essa lacuna chega a caracterizar um problema de coesão textual – para um leitor que conhece minimamente o país e o missivista – ou mesmo de “apropriação indébita”. Pode mesmo, a essa altura do campeonato, Reinaldo Azevedo dizer do “ódio primordial dos ricos contra os pobres” sem mencionar os ‘petralhas’?

Feio. A gramática é boa, o texto é sedutor, mas o sentido é meio canalha – o que não deixa de ser saboroso. Intelectuais de esquerda chegaram a comparar Reinaldo Azevedo a Machado de Assis. Depois do bruxo do Cosme Velho, o bruxo da Barão de Limeira. Haveria mais alguns pratos de arroz com feijão para se comer.

Mais um trecho:

“Aparecida, Dona Cida, nunca foi à Disney. Nem sei se o câmbio era favorável à época. Desculpo-me pelo incômodo de contar uma história assim, de chimpanzés contaminados pelo marxismo cultural, vertido, nesse caso, em borrachada didática.”

Reinaldo é talentoso. “Chimpanzés contaminados pelo marxismo cultural” leva quase ao gozo (pela polifonia embutida). Mas seus ethos habita o império do artifício. Trepidação semântica do modo “The Voice” de enunciar. É literatura, sem dúvida – mas é quase uma competição interna para ver qual metáfora estilhaça mais o sujeito-leitor.

Nesse sentido, é um enunciador agônico. Mas, dentro de um país também agônico, tais entrelaçamentos história-sujeito até que ornam (somos todos um pouco agônicos neste momento).

É bom ter Reinaldo Azevedo estalando o léxico por aí. É um cronista selvagem. Seu texto fez até a gente esquecer de Paulo Guedes e de Bolsonaro tal o seu brilhantismo literário.

Ele abre – mesmo com seu virtuosismo – um novo campo de ação para a direita. Uma direita que seja menos impostora e que tenha algum princípio democrático e mnêmico.

É importante que haja um programa político alternativo para o país. É importante para a própria esquerda que haja uma direita digna de respeito intelectual (alguns dizem que essa direita já existiu).

O contraste não pode ser entre a morte e a vida, entre o silêncio e o debate, entre a barbárie e a civilização. O contraste ideológico, combustível para a democracia, precisa ser entre duas visões de sociedade, entre dois discursos.

Reinaldo Azevedo talvez represente esse lado que nos falta: um intelectual que não é de esquerda, mas que não aceita ser rebaixado a um empilhamento aleatório de ideias mofadas – nem à violência gratuita do bolsonarismo que ajudou a parir, com seu ódio ainda não esquecido aos ‘petralhas’.

Mais uma razão para se ter Reinaldo como um referencial no debate público: ele já portou a doença do anti-petismo.

Será que ele se curou?

 

Redação

3 Comentários

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  1. Penso q o sectarismo de Gustavo Conde amplia o sentimento antipetista. Por ter criado o neologismo “petralha” o texto de Reinaldo é “meio canalha”. E quem é “antipetista” é uma pessoa doente. Por essas e outras, essa arrogância vai levar o PT a um gueto e veremos em Outubro uma derrota eleitoral acachapante do PT. Se não mudar a orientação e ouvir pessoas ponderadas como Gilberto Carvalho, infelizmente o destino do PT será triste.

  2. Reinaldo Azevedo redimido só porque teve um lampejo de humanidade?
    Fala sério!
    Ele só está criando um contraponto para a sobrevivência de sua vilania.
    Uma espécie de trégua.
    Sua biografia é de uma retidão curvilínea.

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