Marcha sobre Brasília: a CPMI e a tentativa do golpe de 8 de janeiro, por Tânia M. S. Oliveira

A CPMI será o palco que desafiará o somatório de evidências, com tentativas dos bolsonaristas de “interpretações” em substituição aos fatos

Mariana Alves – Iphan

Marcha sobre Brasília: a CPMI e a tentativa do golpe de 8 de janeiro

por Tânia M. S. Oliveira

“A lição sabemos de cor
Só nos resta aprender”
(Beto Guedes)

Está nos livros didáticos de História, em todos aqueles adotados nas escolas, tradicionais ou não: a Marcha sobre Roma foi realizada pelos fascistas na capital italiana em 28 de outubro de 1922.

Os seguidores do fascismo deslocaram-se para Roma por diversos meios, inclusive com passagens de trem financiadas por membros da elite econômica apoiadora do movimento ou pelo próprio governo. A intenção – que se concretizou no dia seguinte à Marcha – era impor o ditador Benito Mussolini primeiro-ministro do país.

Quando se estuda a História da Itália no período pré-Marcha é possível verificar os movimentos que a tornaram possível. Havia um crescimento da demanda para impor um governo autoritário no país, a ampliação dos esforços dos fascistas para realizar a tomada do poder. Embora a decisão de marchar sobre Roma tenha ocorrido em 16 de outubro de 1922, apenas 12 dias antes e feita, segundo os estudiosos do tema, de forma até certo ponto desorganizada, ela foi a concretização de um processo, uma conspiração gestada muito antes de sua concretude.

As consequências da Marcha também são conhecidas: fim das liberdades e das eleições, dissolução dos partidos, morte aos adversários, censura absoluta, aliança com o Nazismo. Uma ditadura que durou mais de vinte anos, foi partícipe da morte de milhões de pessoas, e só foi encerrada com o fim da Segunda Guerra Mundial.

Um Século separa a Marcha sobre Roma e os atos de 8 de janeiro de 2023 em Brasília, capital do Brasil. Um Século, um oceano e, por óbvio, as novas ferramentas e instrumentos de comunicação, a mobilização digital que alimenta a propagação de ideias fascistas travestidas de “conservadoras”, os atentados à democracia, que são feitos supostamente em defesa dela própria e de uma interpretação do princípio da liberdade de expressão que não possui sustentação constitucional ou em qualquer norma jurídica.

As diferenças entre os dois atos seriam muitas, sobremaneira pelo distanciamento do tempo histórico e as peculiaridades de cada país. Importa aqui, no entanto, abordar o que os aproxima, o que possuem em comum.

No dia 8 de janeiro de 2023 Brasília virou palco de um cenário de violência. Apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro marcharam do Quartel-General do Exército, onde há meses mantinham um acampamento, até a Esplanada dos Ministérios, onde furaram, sem resistência da Polícia Militar, um bloqueio e invadiram os edifícios dos Três Poderes, depredaram os prédios públicos do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal e do Palácio do Planalto.

Essas pessoas vieram de vários lugares do Brasil, com financiamento de deslocamento e alimentação.

Virou lugar comum afirmar que esses atos golpistasforam o mais brutal ataque à democracia no Brasil desde o golpe de 1964. Uma afirmação óbvia, dada a gravidade dos fatos. O equívoco de alguns é assumi-los com um ato isolado de radicais inconformados com a posse do presidente Lula.

O 8 de janeiro de 2023 foi o ápice do acúmulo a partir das declarações de ameaças à democracia por parte de Jair Bolsonaro, membros de seu governo, seus aliados e seguidores, com a campanha de desconfiança contra o sistema eleitoral brasileiro, com montagens e desinformações, com estímulo à violência contra membros de outros poderes da República.

Invadir, depredar e vandalizar os prédios dos Três Poderes não foi uma ação isolada nem espontânea. Ao oposto, foi ensaiada e estimulada durante anos.  Foi uma tentativa de golpe, que teve início anos antes, com postagens e manifestações de Generais das Forças Armadas, de políticos, de blogueiros e agitadores de extrema direita. Que teve a fala do próprio Jair Bolsonaro, que desde março de 2022 já lançava, sem qualquer dado ou prova, desconfiança sobre o processo eleitoral, preparando sua base popular para questionar uma possível derrota.

A invasão a Brasília vinha sendo preparada desde o dia 3 de janeiro, quando radicais começaram a divulgar com grande intensidade mensagens em aplicativos como o Telegram e o WhatsApp para trazer manifestantes de todo o país para a capital federal, com todas as despesas pagas. Relatórios de inteligência em poder do governo indicaram que 100 ônibus com 3.900 pessoas chegaram em Brasília nos dias 6 e 7 de janeiro.

Era a Marcha sobre Brasília na mesma intenção de colocar um usurpador no poder. Foi a reação das instituições que impediu que o golpe se concretizasse. Isso e as condições externas, falta de apoio de outras nações.

Fatos postos à mesa, sem condições de dar sustentação pública aos crimes contra o patrimônio público, o bolsonarismo precisou, a partir de sua linguagem específica, tentar inverter a narrativa. Eis que temos a “teoria dos infiltrados”, que teriam transformado um movimento pacífico em vandalismo para comprometer o ex-presidente e seus asseclas. Com o que seria o governo Lula, a esquerda e os apoiadores do governo eleito os responsáveis pela destruição.

No reino do caos cognitivo e da pós-verdade não importa que as pessoas sejam identificadas, que tenham redes sociais onde sempre praticaram sua militância para defender Jair Bolsonaro, que estivessem acampadas em repúdio ao resultado eleitoral. Não importa quão inverossímil sejam o conteúdo. Para dar conta de uma lógica própria a seus discursos os fatos e provas são simplesmente descartados.

A criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito nas duas Casas Legislativas impulsionada pelos parlamentares dos partidos bolsonaristas atende a essa tentativa de confundir a população e alimentar sua base radicalizada.

O quanto dessa estratégia terá êxito depende da nossa capacidade, como governo, parlamento e sociedade, de enfrentar e desmascarar os golpistas, sem menosprezar – como já fora feito antes – suas estratégias das metanarrativas e desinformação. Tendo em conta que as construções de realidades paralelas não obedecem a qualquer critério de coesão, objetividade e decência, mas alcançam grandes contingentes de cidadãos.

Caso seja de fato instalada a CPMI será o palco que desafiará o somatório de evidências, com nomes, vídeos, fotos, declarações, depoimentos dos atores da destruição dos prédios públicos, com tentativas de “interpretações” em substituição aos fatos. Mesmo assim a tarefa é não subestimar a capacidade dos bolsonaristas de busca para impor sua versão, ridicularizando-a.

Essa lição já decoramos. Ou deveríamos.

Tânia M. S. Oliveira é advogada, historiadora, pesquisadora e membro da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

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Redação

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