Um Problema Mental da Nação, por Rubens Casara

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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No Viomundo

Rubens Casara: Na era do empobrecimento da linguagem, quem ousa ser diferente deve ser eliminado

Um Problema Mental da Nação

por Rubens Casara*, especial para o Viomundo

Os discursos de ódio, a dificuldade de interpretar um texto, o desaparecimento das metáforas, a incompreensão das ironias, a divulgação de notícias falsas (ou manipuladas) e o desrespeito à Constituição são fenômenos que podem ser explicados a partir de uma única causa: o empobrecimento subjetivo.

Empobrecimento que se dá na linguagem. Alguns chegam a falar na “arte de reduzir cabeças”, outros no encolhimento das mentes.

A linguagem, e isso já foi dito antes, sempre antecipa sentidos. Uma linguagem empobrecida antecipa sentidos empobrecidos, estruturalmente violentos, pois se fecham à alteridade, às nuances e à negatividade que é constitutiva do mundo e se faz presente em toda percepção da complexidade.

Sentidos empobrecidos que não se prestam à reflexão e que são funcionais à manutenção das coisas como estão.

A linguagem empobrecida é resultado e atende à razão neoliberal, a esse modo de ver e atuar no mundo que transforma (e trata) a tudo e a todos como mercadorias, como objetos que podem ser negociados.

A lógica das mercadorias esconde o negativo e o complexo enquanto apresenta discursos que mostram as coisas existentes como pura positividade e simplicidade.

Não é por acaso que para atender ao projeto neoliberal, que poderíamos resumir como a total liberdade voltada apenas para alcançar o lucro e aumentar o capital, cria-se uma oposição à mentalidade subjetiva, apaixonada, imaginativa e sensível.

Segundo o mantra neoliberal, não há que se sensibilizar com a violação a direitos fundamentais diante dos interesses do mercado e da circulação do capital. Há uma recusa a qualquer compaixão ou empatia. A proposta é de que se esqueça como lidar e reagir ao sofrimento e a dor.

Na era do empobrecimento da linguagem, não há espaço para a negatividade que é condição de possibilidade tanto da dialética quanto da hermenêutica mais sofisticada. Tudo se apresenta como simples para evitar conflitos, dúvidas e perspectivas de transformação.

Aposta-se em explicações hipersimplistas de eventos humanos, o que faz com que sejam interditadas as pesquisas, ideias e observações necessárias para um enfoque e uma compreensão necessária dos fenômenos.

Correlata a essa “simplificação” da realidade, há a disposição a pensar mediante categorias rígidas. A população é levada a recorrer ao pensamento estereotipado, fundado com frequência em preconceitos aceitos como premissas, que faz com que não tenha a necessidade de se esforçar para compreender a realidade em toda a sua complexidade.

Quem se afasta do pensamento raso e dos slogans argumentativos, e assim coloca em dúvida as certezas que se originam da adequação aos preconceitos, torna-se um inimigo a ser abatido, isso se antes não for cooptado.

Nesse sentido, pode-se falar que o empobrecimento da linguagem gera o ódio direcionado a quem contraria essas certezas e desvela os correlatos preconceitos.

É também o empobrecimento da linguagem que reforça a dimensão domínio-submissão e leva à identificação com figuras de poder (“o poder sou Eu”).

Pense-se em um juiz lançado no empobrecimento da linguagem, não há teorias, dogmática, tradição ou lei que sirva de limite: a “lei” é “ele mesmo” a partir de suas convicções e de seu pensamento simplificado.

Em outras palavras, o empobrecimento da linguagem abre caminho à afirmação desproporcional tanto da convicção e de certezas delirantes quanto dos valores “força” e “dureza”, razão pela qual pessoas lançadas na linguagem empobrecida sempre optam por respostas de força em detrimento de respostas baseadas na compreensão dos fenômenos e no conhecimento.

Essa ênfase na força e na dureza leva ao anti-intelectualismo e à negação de análises minimamente sofisticadas.

A razão neoliberal se sustenta diante da hegemonia do vazio do pensamento expressa no visível empobrecimento da linguagem, da ausência de reflexão e de uma percepção democrática de baixíssima intensidade.

Qualquer processo reflexivo ou menção aos valores democráticos representam uma ameaça a esse projeto de mercantilização do mundo.

Não por acaso, a razão neoliberal levou à substituição do sujeito crítico kantiano pelo consumidor acrítico, do sujeito responsável por suas atitudes pelo “a-sujeito” que protagoniza a banalidade do mal, que é incapaz de refletir sobre as consequências de seus atos.

Pode-se, então, identificar a sociedade que atende à razão neoliberal como uma sociedade do pensamento ultra-simplificado.

A exigência de simplificação tornou-se um verdadeiro fetiche e um tema totalizante. Como em toda perspectiva totalizante, há uma tendência à barbárie: aos que não cederam ao pensamento simplificado, reserva-se a exclusão e, no extremo, a eliminação.

As coisas se tornam simples ao se eliminar qualquer elemento ou nuance capaz de levar à reflexão.

A simplicidade neoliberal exige que se elimine toda negatividade e as diferenças que não podem ser objeto de exploração comercial, fazendo com que a coisa se torne rasa, plana e incontroversa, para que se encaixe sem resistência ao projeto neoliberal.

A simplicidade leva a ações operacionais, no interesse do capital, que se subordinam a um governo passível de cálculo e controle.

A simplicidade se afasta da verdade e mostra-se compatível com a informação (também simplificada).

A verdade, por definição, é complexa, formada de positividades e negatividades, a ponto de não ser apreensível por meio de atividade humana. A verdade nunca é meramente expositiva.

A informação é construída e manipulada segundo a lógica das mercadorias. A informação simplificada recorre aos preconceitos e as convicções dos destinatários para se tornar atrativa e ser consumida.

Da mesma maneira, a simplicidade neoliberal também impede o diálogo, que exige abertura às diferenças, para insistir em discursos, adequados ao pensamento estereotipado e simplificador, verdadeiros monólogos, por vezes vendidos como “debates”.

O ideal de comunicação na era da simplificação neoliberal parte do paradigma do amor ao igual. A comunicação ideal seria aquela entre iguais, na qual o igual responde ao igual e, então, se gera uma reação em cadeia do igual.

É esse amor ao igual, avesso a qualquer resistência do outro, o que só é possível diante da linguagem empobrecida, é que explica o ódio ao diferente, a quem se coloca contra esse projeto totalizante e a essa reação em cadeia do igual.

Vale lembrar que Freud já identificava nos casos de paranoia um amor ao igual (amor homossexual) que não era reconhecido e se tornava insuportável a quem amava.

Esse ódio, que nasce do amor ao igual e da comodidade gerada pelo pensamento simplificador, direciona-se à alteridade que retarda a velocidade e a operacionalidade da comunicação entre iguais, coloca em questão as certezas e desestabiliza o sistema.

Quem ousa ser diferente (e pensar para além do pensamento simplificador autorizado), deve ser eliminado, simbólica ou fisicamente, em atenção ao projeto neoliberal.

*Rubens Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

6 Comentários

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  1. Será que?

    Será, então, que a elisão do outro, no diálogo e nas mentes, tem alguma relação com o não-uso das segundas pessoas (tu, vós) no português falado e escrito no Brasil? Às vezes fico pensando em quão admirados – e aliviados – devem ficar os estrangeiros que estudam o nosso idioma quando percebem ser desnecessário conjugar os verbos nessas pessoas. 

  2. A esquerda

    “… aos que não cederam ao pensamento simplificado, reserva-se a exclusão e, no extremo, a eliminação.”

    Bom, quem é especialista nessa história de “exclusão e eliminação” é a esquerda, não??? Nesses regimes contam se em dezenas de milhões os que perderam a vida por inservíceis ao regime de plantão…

  3. A esquerda

    “… aos que não cederam ao pensamento simplificado, reserva-se a exclusão e, no extremo, a eliminação.”

    Bom, quem é especialista nessa história de “exclusão e eliminação” é a esquerda, não??? Nesses regimes contam se em dezenas de milhões os que perderam a vida por inservíceis ao regime de plantão…

  4. Um grave problema social

    Desde sempre que o homem comum é mantido como o atual Homer Simpson. Para os que dirigem o mundo não interessa muito que a sociedade em sua maioria seja esclarecida e instruida. Romain Gary no seu excelente livro autobiografico “A Promessa do Alvorecer” (La Promesse de l’Aube) diz que: “existe entre os clichês, as formulas prontas e a ordem social em vigor uma relação de aceitação e de conformismo que ultrapassa a linguaguem”. Nos estamos condicionados dentro desse conformismo social e de uma linguagem muito pobre.

  5. Razão neoliberal ou razão capitalista?

    O  texto dá a entender que no capitalismo há um contraponto positivo ao neoliberalismo, que seria telvez o keynesianismo.

    A verdade é que o neoliberalismo é apenas o capitalismo total – extendido a toda à Terra e a todas as esferas da vida.

    Mais ainda, o neoliberalismo é a face do capitalismo em sua crise final, onde o trabalho está ficando obsoleto, assim como seu resultado, o valor e o mais valor (lucro). Uma das consequências da crise é a barbárie. E um dos aspectos da barbárie é a idiotização das pessoas que, no caso do capitalismo tardiso, passa pelo narcisismo consumista (infantilização geral da população que adoça sua alma com chupetas eletrônicas das redes sociais).

    Então, não se trata da razão neoliberal, mas da razão capitalista, que é simplista porque é instrumental (instrumentaliza/mercantiliza as pessoas), pois a substância dessa razão, assim como da alma das pessoas é o capital, verdadeiro sujeito (automático, como dizia Marx) que guia as pessoas rumo à barbárie.

  6. A desrazão

    A simplicação/empobrecimento da linguagem leva à brutalização humana cujas consequências levam à barbárie, à guerra e ao genocídio. Quem é versado na história da Alemanha nazista conhece bem esse roteiro.

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