O em que a reforma tributária não mexeu, por Luiz Alberto Melchert

A maior aberração do nosso arranjo econômico sofreu um retrocesso com o novo sistema tributário

Foto: Agência Brasil

O em que a reforma tributária não mexeu

por Luiz Alberto Melchert*

Desde o fim dos anos 1990, os operadores da receita pública vêm tentando equiparar pessoas físicas e jurídicas na atividade agropecuária. É que, ao contrário dos demais setores da economia, na agropecuária não há limites de tamanho de operação que obrigue o investidor a abrir uma empresa. Isso é um resquício da Lei de Terras de 1850, que nunca foi revogada. É que as terras, que antes pertenciam a El Rei, com a Independência, foram devolvidas ao imperador que se obrigou a distribuí-las via leilões que, na verdade, oficializaram a estrutura fundiária já existente. Durante a República, isso se manteve porque a influência dos proprietários continuou essencial para o sistema eleitoral. De lá para cá, nada mudou, haja vista a importância da Bancada Ruralista no Congresso, que depende diretamente da persona do proprietário rural como autoridade local, quando não regional.

Para o público, vende-se a generalização da ideia do fazendeiro, do produtor que vive na terra, da terra e para a terra, levando comida ao prato do restante da sociedade. Essa ideia ganhou roupagem nova com “agro é tech, agro é pop”, mas sempre relacionando à presença do proprietário, o que está longe de acontecer. Juntamente com a imagem falaciosa do produtor rural vem a justificativa para manter a terra como instituição individual, por mais que sua atividade seja verdadeiramente empresarial.

Na indústria e no comércio, o agente tem que estar cadastrado no CNPJ, mesmo que como micro empreendedor individual (MEI), com no máximo um empregado e respeitando limites rigidíssimos de faturamento.

Na agropecuária, ao contrário, vastas extensões de terra com milhares de empregados, bem como um ativo imobilizado de até bilhões de reais, podem estar vinculados a uma só pessoa física , cadastrada como empregador individual (CEI). Como se essa distorção não bastasse, existem múltiplos CEIs vinculados á um só CPF, assim como se pode registrar uma propriedade rural como Fulano de Tal e Outros, relacionando um só cadastro de empregador individual a mais de uma pessoa, num arranjo lógico que resvala no mais evidente desvario. É que tão mal disfarçada sociedade estar vinculada a um só indivíduo chega a ofender a inteligência do menos douto observador. Como corolário, nada impede que a mesma pessoa física mantenha atividade industrial ou comercial que requeira a constituição de empresa.

Tão evidente desatino baseia-se em que, perante o sistema tributário, a pessoa física trata suas contas em regime de caixa. Ao contrário de uma empresa, a pessoa física encara a compra de um – digamos – trator como uma despesa, baixando o investimento de uma só vez perante o imposto sobre a renda. Ademais, ele goza de isenções jamais sonhadas por uma pessoa jurídica, além da imunidade sobre a cobrança de tributos como o PIS-Cofins.

O agricultor ainda tem acesso a recursos com juros altamente subsidiado, seja para custeio agrícola, seja para aquisição de maquinário em programas como o Moderfrota, um dos responsáveis pela pujança do setor no Brasil. Até mesmo caminhonetes de luxo e aviões são adquiridas com isenção de impostos por agricultores gigantescos mediante a apresentação de somente um CPF atrelado à condição de produtor rural.

As distorções vão muito além, posto que um indivíduo pode ser considerado como empreendedor rural mediante um contrato de arrendamento, mesmo que nunca tenha sujado de terra a botina. Para obter crédito, uma pessoa jurídica precisa apresentar provas de solidez patrimonial e negocial, principalmente, de liquidez. Para uma pessoa jurídica , apresentar um balanço que demonstre patrimônio imobilizado de alto valor, mas sem liquidez, não adianta nada. É preciso que ele mostre que sua atividade é lucrativa e, principalmente, capaz de gerar caixa, ou alta probabilidade de liquidar seus compromissos. O agricultor como pessoa física, ao contrario, só precisa mostrar a capacidade de gerar renda futura. Assim como um trabalhador consegue crédito mediante um contrato de trabalho, ao agricultor basta apresentar um projeto em que a colheita, otimistamente estimada, é capaz de gerar recursos mais que suficientes para quitar o empréstimo de custeio. A rigor, a expectativa de colheita é a garantia do empréstimo, proporcionando acesso a recursos a quem sequer terra tem, bastando contar com um contrato de arrendamento rural.

Recentemente, deu-se um nó jurídico que estabeleceu a recuperação judicial de pessoa física, o que é uma aberração, haja vista que a avaliação do patrimônio torna-se absolutamente subjetivas, posto que o produtor rural, como pessoa física, só precisa manter um caixa rural e não um balanço contendo os conceitos de depreciação e exaustão inerentes à sua atividade.

Assim, a maior aberração do nosso arranjo econômico sofreu um retrocesso com o novo sistema tributário, visto que a tão almejada equiparação não foi contemplada, ao mesmo tempo em que o processo, que vem do fim do século passado, estancou-se em prol da manutenção do poderio ruralista com reflexos no Congresso Nacional.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

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