Observações sobre algumas ideias de Lula na entrevista dada à mídia alternativa, por Roberto Bitencourt da Silva

Representou uma oportunidade rara de ouvir o ex-presidente da República com tempo considerável para expor as suas ideias sobre o Brasil e o mundo.

Observações sobre algumas ideias de Lula na entrevista dada à mídia alternativa

por Roberto Bitencourt da Silva

Na quarta-feira (19/01), o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva concedeu uma entrevista a um pool de jornalistas que integram alguns veículos de comunicação da mídia alternativa brasileira. Foi um diálogo simpático e construtivo que marcou a interação entre Lula e os entrevistadores, assim como representou uma oportunidade rara de ouvir o ex-presidente da República com tempo considerável para expor as suas ideias sobre o Brasil e o mundo.

Assista o vídeo da entrevista aqui:

Somente tive a oportunidade de assistir o misto de entrevista e pronunciamento neste fim de semana. Sem qualquer pretensão de fazer uma exegese das ideias preconizadas por Lula, abaixo assinalo algumas percepções e propostas político-econômicas apresentadas pelo histórico dirigente petista. O propósito é chamar a atenção para certas potenciais implicações, circunstanciais desdobramentos e requisitos para o atendimento de ideias e diretrizes que esboçam um programa eleitoral e de governo, ventilado por Lula na entrevista. 

  1. A defesa de uma política externa que não seja subserviente, especialmente, aos EUA. Lula reiterou o seu agrado com a política externa que orientou as experiências dos seus dois governos, destacando que ela teve uma característica altiva, entendendo ter projetado influência e relevância mundial ao Brasil. Entre outros exemplos, acenou para a sua antiga bandeira de reorganização do Conselho de Segurança da ONU, de modo a mitigar o poder de poucos países poderosos na definição da agenda global, assegurando cadeiras a nações como o Brasil, a Índia, a Nigéria etc.; na linguagem política contemporânea, países emergentes (subdesenvolvidos e periféricos).

Ademais, ele louvou a criação do BRICs e de esforços anteriormente dedicados à integração regional sul-americana. Vale dizer que nenhuma dessas ideias, em particular as duas últimas, agradam ao imperialismo, sobretudo às áreas de segurança do governo e do mainstream econômico estadunidense. Em um eventual governo, de Lula ou de qualquer outro que simpatize com a criação de margens de autonomia nas relações internacionais do nosso país, margens pequenas que sejam, tais ideias tendem a gestar fortes atritos com poderes externos, governamentais e de conglomerados corporativos e financeiros, articulados com forças internas lesa pátria.

  • O ingerencismo estadunidense na vida política e social brasileira e de demais países. Lula não deixou de demonstrar desconforto e certa irritação ao tratar de temas ligados à participação de agentes e organismos dos EUA na desestabilização do governo de Dilma Rousseff e na criminosa ingerência ianque na soberania de outros países, como a Líbia. Manifestando conhecimento histórico sobre a trajetória imperialista norte-americana na América Latina, contudo, o ex-presidente tendeu a relativizar o peso das práticas estadunidenses que violam o direito internacional dos povos à autodeterminação nacional. Ele conferiu maior acento às elites vende pátria dos países dependentes e periféricos, como o Brasil, que “convocam a participação” made in USA nos negócios internos dos nossos países.

Sem negar relevância ao sabujo “viralatismo” das classes dominantes domésticas, me parece que diminuir o papel destrutivo que os EUA exercem sobre a soberania das nações da periferia do capitalismo, como já aconteceu diferentes vezes em nosso próprio país, tende a abrir um perigoso flanco para a difusão de uma irrefletida e ingênua percepção política, com notórios resultados desastrosos para o Povo Brasileiro. O ávido olhar do gigante do Norte para o Brasil somente enxerga um território portador de imensas riquezas a serem exploradas. Assim, efetivamente precaver-se e preparar-se contra intrusões made in USA nos nossos assuntos nacionais representaria uma prática extremamente necessária, identificando os EUA claramente como pólo antagônico da soberania brasileira. Esse cuidado mais rigoroso e decidido não esteve e continua sem estar presente na cantilena e nas categorias de interpretação política do Lula.  

  • A desindustrialização e a ventilada criação de “nichos industriais”. O ex-presidente expressou preocupação com o processo de desindustrialização que aflige a economia brasileira. Lula lembrou que boa parte dos melhores empregos e salários para a classe trabalhadora costuma ser encontrada, precisamente, nos setores industriais. O que Lula deixou de mencionar é que tal fenômeno, transcorrido desde o início da década de 1990 (quando a participação da indústria no PIB era de 25%), igualmente se deu no curso dos anos de seus governos e dos de Dilma: em 2003, a indústria correspondia a cerca de 17% do PIB; em 2015 em torno de 11%. Com uma indústria que, então, era desnacionalizada, como ainda o é, submetida a um enorme controle acionário e de gestão pelo grande capital internacional, o poder decisório que incide sobre as atividades da indústria era e é situado no exterior. Urge, pois, uma deliberada e consciente ação estatal para a reversão do processo desindustrializante. Isso principalmente visando o domínio nacional e a internalização de tecnologia própria. Ações que foram dispensadas nos governos anteriores do ex-presidente Lula, como foram só rapidamente aventadas na entrevista. Ações que demandam, claro está, mudança qualitativa na relação de forças entre as classes sociais, inclusive no poder.

Além disso, com senso de oportunidade, Lula reverberou o seu desalento com o perfil do empresariado doméstico contemporâneo. Ele comparou arquétipos como o do “véio da Havan”, escandalosamente entreguista, com o de figuras como o antigo Antônio Ermírio de Moraes, mais ciosas com a adoção de políticas que preservassem certas reservas de mercado para os capitais e a produção de bens nacionais. Se é que já existiu, definitivamente não existe a tal “burguesia nacional” dotada de pretensos pendores nacionalistas. Então, como adotar medidas que promovam a (re)industrialização brasileira? Entendo que especialmente por intermédio dos investimentos, da gestão e da propriedade estatal. A “burguesia nacional” é vende pátria e “compradora”, intermediária da venda de insumos e produtos acabados importados. Não dá para contar com ela. Com o capital internacional muito menos.

Lula, hesitante, argumentou algo em torno da criação de investimentos na Petrobras e em pesquisas nas universidades públicas, “diálogos com a sociedade” etc., de sorte a fomentar a formação de “nichos industriais”. Uma questão grave, muito séria para o Brasil, abordada, em boa medida, de maneira etérea por Lula. Ainda assim, se realmente levada a cabo, consiste em uma questão que tende a gestar um terreno propício a grandes boicotes e descontentamentos das articuladas classes dominantes internas e gringas, dedicadas como estão à desnacionalização, à financeirização, à primarização da economia brasileira e à venda de bens industriais provenientes do exterior.

  • O desenvolvimentismo, a elevação da capacidade de consumo popular e a política salarial. Reiterando a sua conhecida retórica desenvolvimentista, o ex-presidente afirmou que o Estado deve desempenhar um papel ativo na economia, agindo como “indutor” do crescimento, via concessão de créditos estatais facilitados a segmentos empresariais e realização de grandes obras públicas na infraestrutura, entre outras. Além das “metas de inflação”, disse Lula que “metas para o crescimento e a geração de empregos” devem integrar o raio de atenções da política econômica. Ademais, manifestou uma grande preocupação com os baixos rendimentos e o amplo desemprego da força de trabalho. Relembrando medidas adotadas em suas experiências de governo, Lula defendeu a utilização de mecanismos de Estado que elevem os salários, sobretudo os menores, e estimulem o emprego. 

Considerando as medidas adotadas à época dos governos Lula, com certa facilidade podemos argumentar que esse tópico de ideias é o mais plausível ser submetido a tentativas de implementação, em um eventual novo governo do ex-presidente. Um leque de ideias acidamente questionadas, já beirando à criminalização, pelo bloco de poder no Brasil. Isso não é gratuito. Crescimento econômico e aumento da massa salarial contribuem para uma maior circulação de dinheiro e para ampliar a capacidade de consumo popular. Estes são ingredientes que desvalorizam aquilo que mais é perseguido pelos circuitos financeiros: a garantia da estabilidade e da força do dinheiro.

Como os economistas indianos Prabhat Patnaik e Utsa Patnaik ressaltam (ver artigo em coletânea organizada por Emiliano López, “As veias do sul continuam abertas”, Editora Expressão Popular), uma das formas assumidas pelo imperialismo capitalista financeiro do nosso tempo é a hipervalorização do dinheiro como principal mercadoria. Com efeito, contrair a demanda das classes populares, trabalhadoras e médias, particularmente nos países periféricos do capitalismo, encontra-se na ordem do dia. A estabilidade do dinheiro tem que ser endeusada (os “superávits primários”, as “metas fiscais” etc.), enquanto o consumo de massa na terra brasilis está fora de cogitação pelos poderosos.

Aumentar os níveis da miserabilidade e da superexploração do trabalho é consequência. Tudo o que tem sido feito desde o golpe de Estado de 2016 em nosso país. As ideias de Lula – por mais modestas e longe de qualquer radicalismo que sejam, na medida em que defendem um desenvolvimentismo distante da ruptura com a dependência tecnológica do país –, são ideias que ora se chocam frontalmente com o status quo. Reitero: isso mesmo sob os limites do capitalismo dependente e periférico. Cumpre destacar que o sentido do golpe foi reformular a nossa dependência, para baixo, sob um viés neocolonial. A demonização de Lula é moeda corrente, como ocorrerá, se necessário, com outro desenvolvimentista, Ciro Gomes. Um imperioso contraponto seria ativar a capacidade mobilizatória e organizacional dos trabalhadores e de setores intermediários da sociedade. De resto, para este e demais tópicos.

  • O aceno a uma reforma tributária dotada de progressividade contributiva. Lula criticou a elevada concentração de riqueza e rendimentos transcorrida desde o início da pandemia do coronavírus. Ele sublinhou a necessidade de ser aplicada uma reforma tributária progressiva, que cobre mais de quem recebe mais e que, nesse sentido, permita ao trabalhador/contribuinte que receba até 5 salários mínimos por mês ficar isento do pagamento do Imposto de Renda. Fez ainda considerações ligeiras sobre certas dificuldades que se ergueram em seus governos para a aprovação de uma reforma no sistema de tributação. Manifestou desejo, sem demonstrar maior convicção acerca das possibilidades reais de encaminhamento e do escopo de tal proposta.

Levando em conta o perfil altamente parasitário e espoliativo das burguesias domésticas, bem como o comportamento de rapina do capital estrangeiro, a interlocução que ambos possuem junto aos influentes conglomerados de mídia, é requerido muito mais do que desejos e sentimento de justiça para a assimilação da reforma tributária progressiva no ordenamento jurídico. É vital um nível inaudito de politização e de esclarecimento público, mobilizando e sensibilizando as classes populares e médias, para que se encaminhe qualquer proposta de reforma tributária favorável à classe trabalhadora e aos estratos médios da sociedade. Somente palavras, senso descarnado de justiça e desejos são insuficientes.

  • A governabilidade e a transação política enclausurada às instituições. Uma perspectiva que cerra as ações políticas ao marco das instituições estabelecidas, consiste em uma marca notória do pensamento lulista. Toda a sua trajetória de governo e, desde então, tantas outras iniciativas e limitações são demonstração dessa profunda acomodação do ex-presidente à ordem. A possibilidade de ter Geraldo Alckmin como vice em sua chapa eleitoral, ex-tucano e ex-governador de São Paulo, é mais um poderoso sinal, como foi motivo de diferentes indagações feitas pelos jornalistas na entrevista. Buscar aliados conservadores e sustentação política para garantir a governabilidade foi e continua sendo foco de atenção por Lula. As vicissitudes e os problemas dessa opção exacerbadamente eleitoreira e pragmática são notórios e é ocioso me estender a respeito.

Ademais, Lula argumentou a respeito da necessidade de dilatar a participação política da maioria nos processos decisórios das agências de Estado e no delineamento das políticas públicas. Mas, essa tese não passa pelo crivo do incentivo à organização dos trabalhadores e de demais setores populares, à manifestação efetiva da força de incidência do Povo Brasileiro no processo de construção da agenda pública e de governo. Isso só poderia ser alcançado por meio do acionamento de mecanismos de consulta pública como o referendo e o plebiscito. Oportunidades de politização, esclarecimento e mobilização popular. Em vez disso, Lula aposta em conselhos e câmaras de consulta nos aparatos do Estado, envolvendo representantes de diferentes setores da sociedade civil. Participação aguada e impotente.

O ex-presidente Lula fez ainda menção a outros temas relevantes, como o combate ao racismo, a revogação das contrarreformas trabalhistas e a possiblidade de revisão de certas privatizações ocorridas no âmbito do complexo empresarial da Petrobras. A respeito, expressou vontade de fazer algo, mas destituída de forma e clareza dos meios a serem utilizados.

Algumas aspirações e certos princípios políticos esposados por Lula são de alto interesse nacional. Outros tantos revelam um grau de obscuridade, que torna difícil identificar eventuais possibilidades de execução prática. Em todo caso, limitações, omissões, assuntos e visões opacas apresentadas pelo ex-presidente requerem das demais forças políticas, sobretudo no quadrante à esquerda, discutirem, formularem projetos e debaterem com o Povo Brasileiro. Preencherem as lacunas.

Lula é um homem de 76 anos de idade. Possui muita experiência política, defende algumas ideias (ainda que um tanto nebulosas) divergentes do sistema econômico e político instaurado, porém é dotado de acentuados traços da política tradicional. O seu carisma é inquestionável e detém enorme apelo eleitoral. Os tempos são sombrios, a navegação no rio das eleições não será fácil. O principal adversário, o ultraentreguista Bolsonaro, possui forte apoio empresarial, midiático e entre os setores judiciais, policiais e militares. Sabidamente, também guarda relações com organizações criminosas.

Por essas e outras razões, cumpre à militância petista e a demais segmentos populares, sindicais e das esquerdas, organizarem-se, prepararem-se, agirem de maneira mais consequente para enfrentar o acirrado conflito de classes promovido pelas burguesias internas e estrangeiras, conflito há anos exasperado e em curso e que não deixará de se impor nas eleições.

Na hipótese de vitória eleitoral lulista, o conflito interclasses repercutirá mais ainda durante um circunstancial governo. As respostas das forças populares, sindicais, estudantis, progressistas, à guerra de classes levada a cabo pelo condomínio do poder, aos graves desafios e dilemas nacionais, essas respostas talvez possam passar por Lula, em função do seu incontestável peso eleitoral. Mas deverão ir muito além dele.

Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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