‘Fundamentalismo de mercado diferencia Bolsonaro de Trump e Órban’, aponta Laura Carvalho

Bolsonarismo promove "agenda que destoa de outros movimentos de extrema direita no mundo atual"

Jornal GGN – “A insegurança econômica da população, quando combinada ao fundamentalismo de mercado, pode tornar-se o calcanhar de Aquiles de Bolsonaro. As ultrajantes ameaças de edição de um novo AI-5 por parte de seu clã, temeroso de uma nova onda de protestos de rua, deixam isso bastante evidente”. A análise é da economista Laura Carvalho, em artigo publicado neste domingo (1º), na Folha de S.Paulo.

A professora da FEA-USP levanta uma importante observação: apesar de apresentar uma agenda populista-conservadora, semelhante aos movimentos de Donald Trump, nos EUA, Viktor Órban, na Hungria, e do Brexit, no Reino Unido, o governo Bolsonaro se afasta de todos eles quando o assunto é política econômica.

Nos Estados Unidos, Donald Trump lançou uma guerra comercial contra a China e em favor das indústrias norte-americanas. No Reino Unido, o mesmo pensamento protecionista levou à iniciativa do Brexit. Na Hungria, Viktor Orbán impôs taxas sobre empresas multinacionais e bancos para reduzir o peso sobre os cidadãos.

Aqui no Brasil, o ministro da Economia Paulo Guedes promove uma “agenda que destoa de outros movimentos de extrema direita no mundo atual”, porque está intimamente associada ao fundamentalismo de mercado, explica Laura Carvalho.

“[Nos EUA], apesar de o governo Trump ter aprovado um grande plano de redução de impostos que beneficiou também os mais ricos, sua plataforma eleitoral de 2016 tinha explorado as relações próximas de sua oponente Hillary Clinton com doadores de Wall Street para dissociar-se não apenas do establishment político mas também do establishment econômico que, desde a década de 1980, produz desigualdades crescentes e crises financeiras ao redor do mundo”, lembra a economista.

“Da mesma forma, no Reino Unido, o apoio de agentes do setor financeiro à permanência na União Europeia foi muito utilizado na campanha a favor do brexit para opor o interesse dos bancos ao da maioria”, completa.

Em relação ao governo Viktor Orbán, na Hungria, Laura destaca que o primeiro-ministro foi eleito para derrubar a “agenda econômica neoliberal de Bruxelas.”

O que o bolsonarismo fez foi importar táticas adotadas pelas plataformas políticas do brexit, Trump e Órban: uso das redes sociais, fake news, guerra cultural, anti-intelectualismo e criminalização da política institucional. Porém, sua plataforma combina o conservadorismo moral desses movimentos com o “fundamentalismo do mercado da Faria Lima”, observa Laura.

Mas por que e como conseguiu fazer isso? Laura destaca que diversos estudos atestam o papel da melhora ou piora econômica para o resultado de processos eleitorais ao redor do mundo. Por outro lado, outros estudos mostram que o resultado eleitoral recente é também fruto de uma reação cada vez maior de setores conservadores contra o progressismo. Ou seja, não apenas o estado da economia determina uma eleição, mas o embate entre os campos de valores na sociedade.

“A partir de dados amostrais individuais que englobam 31 países europeus, nos anos de 2002 a 2014, os autores [Pippa Norris e Ronald Inglehart, no livro Cultura backlash] chegam à conclusão de que valores culturais predizem melhor o voto em partidos populistas do que o que chamam ‘insegurança econômica’, medida por indicadores de desigualdade social, renda e emprego”, escreve Laura.

Por outro lado, a economista ressalta que outros autores observam que “fatores culturais e econômicos podem não ser passíveis de separação”: “o mal-estar econômico e social gerado pela globalização comercial e pela imigração pode ter criado as bases para que políticos populistas explorassem uma divisão cultural da sociedade, atribuindo aos imigrantes e a outras minorias a responsabilidade pela deterioração da situação material experimentada por boa parte da população”.

Esse cenário pode ser observado nos movimentos que levaram à eleição de grupos conservadores e de extrema-direita nos EUA e na Europa, porém, não no Brasil, com a eleição de Bolsonaro.

“(…) caso brasileiro, ainda que produtos chineses também tenham contribuído para a perda de postos de trabalho, a globalização comercial e o crescimento acelerado da China também foram responsáveis por um superciclo de commodities nos anos 2000, que elevou substancialmente o preço de produtos que exportamos, como petróleo, soja e minério de ferro”, pontua a economista.

“Como sabemos, esse cenário externo favorável viabilizou uma agenda que trouxe muitos ganhos para a base da pirâmide (ainda que sem reduzir a alta concentração de renda no topo) por meio de forte expansão de investimentos públicos, benefícios sociais e empregos formais em setores de serviços e construção civil”, prossegue.

“Nesse sentido, as condições econômicas mais estruturais identificadas por parte da literatura como fundamentais para a emergência do populismo de direita nos EUA e na Europa não parecem ter vigorado da mesma forma no Brasil, onde a globalização comercial teve um efeito, no mínimo, ambíguo”, conclui.

Ao mesmo tempo, a economista avalia que a aliança do bolsonarismo com o mercado está sendo responsável por uma “frustração crescente da população com o alto desemprego e a perda de renda.”

“Mesmo que a recessão tenha se originado pelo fim do boom das commodities e por erros de política econômica pré e pós-2014, a percepção em meio aos sucessivos escândalos da Operação Lava Jato passou a ser que a corrupção era também a causa da crise para a maior parte da população (67% segundo pesquisa do Datapopular realizada em 2015)”, explica.

“Nesse contexto, em vez de culpar imigrantes ou a invasão de produtos chineses pelo colapso da economia, como fez o populismo de direita nos países ricos, atribuiu-se a responsabilidade pela crise ao PT, à gastança desenfreada e ao Estado corrupto”, pontua Laura.

“Em um primeiro momento, as falsas promessas de retomada centraram-se, portanto, no impeachment de Dilma Rousseff e em sua substituição por um governo supostamente comprometido com o corte de gastos públicos e a diminuição do papel do Estado na economia. A reforma trabalhista e a aprovação do teto de gastos trariam de volta os empregos e a confiança dos investidores”, continua.

“Mas a campanha presidencial de 2018 acabou se dando após sucessivas frustrações nas projeções de crescimento, um consequente aprofundamento dos desequilíbrios fiscais e escândalos de corrupção envolvendo o governo Temer. A culpa já não era mais só do PT, era de todo o establishment político”, completa Laura mostrando o quadro que levou à eleição de Bolsonaro.

“Assim, a combinação da agenda de conservadorismo moral com a de fundamentalismo de mercado, que marca o bolsonarismo, se encaixou como uma luva: livrar-se da corrupção e da crise econômica exigia livrar-se do próprio Estado em todos os seus papéis que não o de combate ao crime”, resume.

Porém, passados dois anos e meio do impeachment de Dilma, e um ano de governo Bolsonaro, o Brasil vivencia a recuperação econômica mais lenta de sua história, cenário este que comprova que “o aprofundamento da agenda centrada no corte de gastos públicos e na redução de encargos e obrigações trabalhistas” não está sendo capaz de tirar o país da estagnação.

“Se o governo Bolsonaro não abrir mão de dobrar a aposta na agenda que vem excluindo a maioria dos brasileiros do crescimento econômico, talvez seja hora de o campo democrático dedicar-se a construir um plano alternativo, capaz de canalizar o acúmulo de frustrações da população para o enfrentamento de conflitos distributivos evitados até aqui pelo Executivo e pelo Congresso”, propõe a economista.

*Clique aqui para ler o artigo de Laura Carvalho na íntegra.

Redação

3 Comentários

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  1. Farei uma leitura fragmentária, por vezes comparativa, que não me sai da cabeça.
    Lembram que o Michael Moore tinha alertado sobre a vitória de Trump, contrariando o otimismo democrata?
    Claro, ele não é bobo nem nada.
    Ele sabe mais do que ninguém o que significa ter uma planta industrial inteira ser deixada de lado para as empresas se instalarem fora dos Estados Unidos, deixando a classe trabalhadora industrial em segundo plano. Isso é da época do Reagan em diante.
    Já na época, havia, e ainda há, uma base republicana fortíssima oriunda na classe trabalhadora (branca? não sei) depauperada pelas próprias políticas daquele partido (é bom que se diga) e continuada pelos democratas.
    Os democratas são “modernos demais” (sic), é também universitária e urbana, um pouco distante da realidade dura daquela gente. E que discurso tem a oferecer para eles?
    Talvez estejamos mais próximos do governo Reagan do que de Trump (fundamentalismo religioso, fala ao “homem comum”, desestruturação econômica neoliberal) em termos de comparação, aliada a um corte histórico para comparação. Com a diferença que a gente sempre teve que se virar de algum modo, a informalidade aumenta ou diminui (algo que não dá pra tecer longamente aqui).
    O protecionismo no discurso é para atender àquela população, com saudade dos “velhos tempos”. Aqui, quem faz esse papel é a religião e a família, não o trabalho.
    Por isso, quando um Safatle fala aos estudantes para irem às bases, ele não sabe, na verdade, muito bem do que está falando. Quais bases, aquelas com as quais as pessoas não querem se identificar?

  2. Incomoda um pouco, se não muit,o que se atribua ao boom de commodities o sucesso do governo trabalhista.
    O fato é que historicamente o maior importador do Brasil até então eramos EUA.
    A partir de uma nova visão, embora as exportações para este país tenha-se ampliado em 2, a DIVERSIFICAÇÂO das exportações multiplicaram (por ex.) por OITO as exportações para a China.
    Portanto, este “boom” teria resuitados muito mais tímidos, sem esta diversificação que trocou razões ideológicas e subordinadas por outras mais pragmáticas, sem nenhum prejuízo as parceiros tradicionais.
    Além disso, as commodities são controladas por poucos (ex. ruralistas do boi, madeira, soja, cana…) ou empresas como Vale e Petrobrás (que também importa muito), o que significa que apenas isso poderia gerar aumento do PIB mas não geraria a evolução e distribuição social havida.
    Portanto, vamos para de destacar apenas esta variável.
    O sucesso deve-se a um governo para todos, até os bancos.
    Nada de “comunista “, como querem os bozos, ultraliberais e fascistas da vida.

  3. Não tem nada de narcisismo infantil, mas corrupção pura e simples que, ao que tudo indica, não se limita ao promotor Januário, mas abrange muito mais gente da Lava-Jato, a começar pelo próprio Dallagnol, que quis enriquecer com dinheiro roubado da Petrobras. Não é por outra razão que todos sairam rapidamnte em defesa do acusado. Não custa lembrar que o doleiro Dario Messer nunca foi incomodado pela Milícia de Curitiba, e isto certamente não foi a toa. A acusação que chega ao criminalista Figueiredo Basto é outro dado que revela os temores da milícia de Curitiba (não me perguntm por quê). O Poder Legislativo não pode assistir a isto como vem fazendo até agora; é preciso investigar a fundo, seja por meio de uma CPI mista ou outro meio político. Mas não adianta deixar isso na mão de deputados ingênuos, muito menos os corruptos (mas se não houver otra opção, é melhor entregar a investigação ao corruptos, porque os ingênuos acabarão por dar um atestado de idoneidade máxima ao promotor acusado).

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