Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Livro “A Morte da Verdade”: a culpa é dos russos e pós-modernos, por Wilson Ferreira

A crítica literária norte-americana Michiko Kakutani vai encontrar o pecado original das fake news nos hackers russos e pensadores do pós-modernismo no seu livro

A Internet era um sonho do Vale do Silício, um paraíso inspirado na fé pela natureza humana criado por pioneiros tecnológicos. Então, apareceram “agentes mal-intencionados” que deturparam tudo com o pecado – fake news, pós-verdades, obscurantismo e preconceitos. Na capa do livro que nos conta essa história bíblica vemos uma serpente que se esgueira para fora de um balão de HQ. Essa serpente é Donald Trump e a chamada “direita alternativa”, ajudados por hackers russos. Mas também inspirados nos pensadores pós-modernos como Baudrillard e Derrida que teriam destruído a âncora filosófica da Verdade – a noção de Realidade, fazendo o Paraíso decair no niilismo e relativismo.  A crítica literária norte-americana Michiko Kakutani vai encontrar o pecado original das fake news nos hackers russos e pensadores do pós-modernismo no seu livro “A Morte de Verdade”. Kakutani revela um discurso que transforma não só a teoria das fake news em um novo rótulo do jornalismo corporativo no mercado das notícias. Também é uma forma ideológica de varrer para debaixo do tapete as mazelas da financeirização global, das “machine learnings” e algoritmos do Vale do Silício – a culpa é sempre dos russos e franceses…

Era uma vez a World Wide Web, imaginada em 1989 por Tim Berners-Lee como um sistema de informação universal, conectando pessoas e compartilhando informações. “Um caso raro em que aprendemos informações novas e positivas sobre o potencial humano”, escreveu o insider do Vale do Silício, o cientista da computação Jaron Lanier. “Um empreendimento coletivo com a doce fé na natureza humana”, completou Jaron.

Mas, como tudo, tem um lado sinistro: agentes mal-intencionados começaram a explorar a web com informações errôneas, desinformação, crueldade e preconceito. Quais foram os culpados que profanaram esse paraíso tecnológico onde não existia a presença da propaganda, punição ou exploração do medo e da morte? Ora, os pensadores pós-modernos como Derrida e Baudrillard e, como não poderia deixar de ser, também os malignos hackers russos interessados em destruir os valores da democracia, ajudando a colocar Donald Trump no poder.

Em resumo, dessa maneira a crítica literária por quatro décadas no New York Times e um prêmio Pulitzer, Michiko Kakutani, explica a ascensão da chamada “direita alternativa” e a proliferação dos fenômenos das fake news e pós-verdade no livro “A Morte da Verdade”, Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2018.

Aliás, a capa do livro de Kakutani parece reforçar essa narrativa do Paraíso perdido: uma serpente se esgueira para fora de um balão de diálogo de histórias em quadrinhos.

Michiko Kakutani

Guerras culturais  

São 270 páginas em que a autora tenta transformar a guerra particular do establishment acadêmico norte-americano contra o discurso de extrema-direita de Trump em uma crise epistemológica da própria Ciência. Trump e a chamada “alt-right” teriam inventado todos os males que assolam a Internet e redes sociais – notícias falsas, a crise do discurso racional, a pós-verdade, relativismo e o obscurantismo científico. Com o luxuoso auxílio dos espertos hackers russos (invocados agora também pelo ministro Sérgio Moro ao ser pego com a boca na botija) e os pensadores pós-modernos.

    Acertadamente, Kakutani acusa como diversionista a bandeira das guerras culturais desfraldada pela alt-right– os debates acalorados sobre religião, raça, gêneros, currículos escolares, aquecimento global etc. como cortina de fumaça para as políticas anti-imigração e destruição de direitos e garantias sociais. Porém, seus argumentos caem no mesmo feitiço das artimanhas de Trump: o livro quer ataca-lo no mesmo campo das guerras culturais.

Em primeiro lugar, acusando as “implicações culturais” do pensamento do pós-modernismo de nomes como Foucault, Derrida, Lyotard e Baudrillard – o colapso das narrativas oficiais, o niilismo, o desconstrutivismo, o relativismo e o desaparecimento das noções filosóficas de realidade e objetividade.

“Podemos afirmar com segurança que Trump jamais teve contato com as obras de Derrida, Baudrillard ou Lyotard e os pós-modernistas dificilmente poderiam ser culpados por todo o niilismo que paira livremente pelo planeta” (p.53), até admite a autora.

Para mais tarde descrever como, lentamente, as ideias da academia migraram para o mainstream político depois de a crise da noção de “realidade” (a âncora filosófica da “verdade”) foi se infiltrando na cultura popular da literatura, cinema e música pop através de artistas como David Bowie, David Lynch, Quentin Tarantino, Thomas Pynchon, Philip K. Dick, entre outros.

Bowie, Tarantino, Lynch: deixaram entrar na cultura pop a chaga do pós-modernismo…

Pensamento invertido

Ora, provavelmente por Kakutani ser uma crítica literária, ela inverte as relações de causalidade – como se o debate filosófico e cultural é que produzisse estragos no mundo político e econômico. Filósofos como Baudrillard e Derrida nada mais fizeram do que refletir ou teorizar sobre transformações que o capitalismo tardio pós-guerra estava gerando na sociedade com a aceleração tecnológica e as transformações nas relações de trabalho e exploração.

Derrida falava da crise das grandes meta-narrativas (Iluminismo, Razão, Ciência, Progresso) no livro “A Condição Pós-Moderna” como um reflexo do próprio desenvolvimento científico e tecnológico no Capitalismo – usado não para a emancipação dos dogmas, mitos e superstições, mas como instrumento de destruição, guerras, dominação e exploração. Como a detonação das bombas atômicas na Segunda Guerra Mundial, marco simbólico do início do Pós-Modernismo.

Assim como Baudrillard falava do “crime perfeito” (o “assassinato do real”) não como se o seu pensamento tivesse cometido esse crime epistemológico: Baudrillard refletia como a aceleração tecnológica em direção à virtualidade do real (dos parques temáticos como Disneylândia aos capacetes de realidade virtual do Vale do Silício) criava mundos solipsistas, niilistas, no qual o hiper-real era mais preferível do que “o deserto do real”.

Kakutani às voltas com RAVs

Russos são “RAVs”

Kakutani parece confundir o mensageiro com a mensagem. E Imputa a culpa nos… franceses. Afinal, a tecnologia (marco de pureza do progresso norte-americano) é supostamente neutra e só cria seus “lados sombrios” quando “agentes mal-intencionados” sequestram as bem-intencionadas ferramentas tecnológicas.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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