István Mészaros – O Capital além do capitalismo

Entrevista de István Mészaros no OPOVO online

 

Polêmico e radical pensador marxista explica por que nenhuma das experiências socialistas até hoje podem ser consideradas fieis ao pensamento de Karl Marx.

 

A perspectiva política adquire ares proféticos, quase messiânicos. O socialismo é o destino inescapável da humanidade. É o futuro inexorável. Será ele ou a barbárie, como disse Rosa Luxemburgo. Isso na melhor das hipóteses, acredita István Mészaros. Pois a crise do Capital é tão grave que periga não deixar nem a barbárie.

 

Um dos mais radicais pensadores do marxismo atual, Mészaros virou trabalhador de fábrica aos 12 anos de idade. Metalúrgico, como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – lembrou ele durante a entrevista. Mais tarde, tornou-se intelectual, com estudos voltados para a exploração da classe trabalhadora.

Foi menino-operário nos anos em que a Segunda Guerra Mundial varreu a Europa. Já formulador marxista, criticou o socialismo na Hungria, sua terra natal. A ponto de fugir do País em 1956, quando se deu a invasão soviética. Mesmo no exílio, continuou a se corresponder com Georg Lukács, de quem foi discípulo.

Nas três últimas semanas, Mészaros percorreu as cidades brasileiras de São Paulo, Salvador, Fortaleza e Rio de Janeiro. Na passagem pela capital cearense, ele concedeu a entrevista ao O POVO que você confere a seguir.

O POVO – De que forma sua experiência como operário de fábrica, ainda muito jovem, influenciou seu pensamento e pensamento marxista?

István Mészaros – Eu tinha 12 anos e meio. Muito jovem ainda comecei a trabalhar numa fábrica, como metalúrgico. Coincidentemente, a mesma atuação do ex-presidente de vocês, Lula. Obviamente isso influenciou bastante. Porque, primeiro, a vida de um trabalhador era muito difícil naquele ano. E, também, era no meio da guerra (Segunda Guerra Mundial, 1939-45). Tinha a dificuldade de ser trabalhador de fábrica, operário, e estar no meio de uma guerra mundial.

OP – Como se deu o contato inicial com o pensamento marxista?

Mészaros – Nos idos de 1946, eu descobri, em uma livraria, um livro de Georg Lukács (1885-1971). Ele era um filósofo húngaro que escreveu um livro sobre os problemas da literatura húngara. Como eu estava também me iniciando nos estudos da literatura húngara, tinha alguma familiaridade com a coisa. Vi o livro, passei a ler e gostei. Uma coisa foi levando à outra. O Lukács era professor da universidade, da área de estética e literatura. E fui me aprofundando cada vez mais.

OP – Como foi a convivência posterior com o Lukács?

Mészaros – O Lukács foi meu padrinho de casamento. Eu tive a honra de trabalhar com ele durante sete anos e meio, quase oito anos, como assessor dele na Universidade (de Budapeste). Em 1956, fui nomeado professor assistente do Lukács. Eu ministrei o curso de Estética, que ele normalmente ensinava na universidade, substituindo-o no cargo. Logo depois disso, tudo explodiu. Você lembra do que aconteceu em 1956 na Hungria. Com a revolução, Lukács foi preso. Depois ficou lá, mantido sob ameaça de deportação. Eu tive de sair da Hungria. Fui para a Itália, depois para o Reino Unido, Inglaterra e Escócia especialmente. Ensinei em algumas universidades. Mas sempre mantive o contato com o Lukács. Durante 15 anos, nós nos correspondíamos normalmente, mesmo depois que ele foi liberado e ficou em prisão domiciliar. De 1956 a 1971 nós nos correspondemos. Em 1971, Lukács veio a falecer. Quando eu morrer, as cartas poderão ser publicadas. Até lá, não. Lukács foi muito perseguido, principalmente por ter relações de amizade muito próximas, de correspondência, com pessoas da parte ocidental. Como eu, que morava em países da Europa Ocidental. E lá, na Hungria, o dogmatismo era muito grande. Então, ele sofreu muita pressão, foi muito perseguido por esse tipo de amizade com pessoas do Ocidente.

OP – Como um garoto, que começou a trabalhar tão cedo, no ambiente fabril, conseguiu se educar a ponto de enveredar pelo ramo intelectual?

Mészaros – O intelectual é um trabalhador. Eu era um trabalhador de fábrica e passei a ser um trabalhador intelectual. Nós somos todos trabalhadores. A minha passagem para a academia foi natural. Na Hungria, existe o equivalente ao que há na França, a Escola Superior Normal. Com base no meu rendimento escolar, fui aceito e comecei a estudar, voltado para a área de estética. Imediatamente depois, nos idos de 1950, eu escrevi ensaio, publicado em um dos principais jornais literários na Hungria, sobre o poeta húngaro Attila József, um gigante da literatura. Esse ensaio me rendeu um prêmio, com o nome desse poeta. O que me deixou muito feliz foi o fato de que esse poeta havia sido banido de apresentações do Teatro Nacional da Hungria. Depois desse ensaio, como desdobramento, a obra voltou a ser realizada e voltou a ser apresentada no Teatro Nacional. E deu ainda mais ânimo para continuar na vida acadêmica.

OP – Como foi sua experiência, como pensador marxista, com o socialismo húngaro, antes e depois da invasão soviética de 1956.

Mészaros – Sempre fui muito crítico ao processo, da forma como se deu. Acreditava que a Hungria não era mais um país autônomo. Tinha perdido sua autonomia, porque dependia exclusivamente das relações com Moscou. Tudo que era trabalhado nessa relação de dependência com Moscou acabava refletindo negativamente para o País. Então, bati de frente. Escrevi artigo extremamente crítico, publicado em 1956, mas escrito muito antes disso. Inclusive seis meses da crítica que o (Nikita) Kruschev (sucessor de Josef Stalin como secretário-geral do Partido Comunista Soviético) fez ao Stalin (em fevereiro de 1956). Fui sempre crítico veemente da forma como as coisas aconteceram na Hungria.

OP – Quando houve a invasão soviética, como foi tomada a decisão de deixar o País?

Mészaros – Deixei o País porque não acreditava que aquilo era, de fato, socialismo. Sempre deixei isso muito claro em todos os meus escritos. Nunca titubeei a esse respeito. Sempre tive posição muito crítica ao modelo soviético. Voltando ao pensamento marxista, aquilo não tinha quase nada a ver com socialismo. Então, minha opção foi por deixar o País.

OP – Das experiências do chamado socialismo real que já tivemos, o que mais se aproxima daquilo que Marx concebeu?

Mészaros – É uma pergunta muito difícil de ser respondida. Os diferentes países enfrentaram diferentes limites. Limitações claras e específicas das suas próprias realidades. Você vê alguma sombrazinha, aqui e acolá, de coisas positivas que foram feitas em experiências dos países do chamado bloco socialista, até agora. Mas nenhuma dessas experiências pode ser considerada como, de fato, experiência de socialismo, no sentido marxista do termo. O que é o sentido marxista do termo? Uma concepção radical da emancipação da humanidade. No sentido de que isso vai ser feito com a igualdade substancial. A igualdade que temos hoje passa longe de ser essa igualdade substantiva. É uma igualdade formal. Você pode votar. Você pode, “democraticamente”, eleger seus representantes. A partir disso, essas pessoas são colocadas nas suas assembleias, nos seus parlamentos, e nós não temos mais absolutamente nenhum controle sobre as suas ações. De quatro em quatro anos, ou de cinco em cinco anos, nós vamos lá e colocamos um pedaço de papel na urna e estamos exercendo nossa igualdade formal. Entretanto, isso não tem nada a ver com socialismo, na concepção marxista original. O socialismo é algo que acontecerá no futuro. Não há alternativa a isso. É a ideia de que as pessoas irão, radicalmente, humanamente se emancipar nessa igualdade substancial. Um exemplo é o que diz o escritor norte-americano Gore Vidal, que entende o sistema americano como sendo o modelo democrático de um partido só dividido em duas frentes de direita. Existe tendência muito grande ao maniqueismo na compreensão histórica. Preto ou branco, um lado ou outro lado. E a compreensão histórica não é isso. Você tem sombras em todas as partes, sombras de problemas, sombras que não são pretas nem brancas. Sombras que são cinzas e sombras que são múltiplas. O processo histórico vai se materializar através da interação de todas essas sombras.

OP – Mas, depois de tantas experiências que se proclamaram marxistas ao longo da história, mas não conseguiram alcançar a plenitude socialista, ainda assim o senhor tem a convicção de que é possível e, mais que isso, inescapável que se alcance esse estágio de socialismo?

Mészaros – Com certeza. Acredito que o socialismo é, sim, o nosso futuro. Porque o sistema que nós temos hoje, o sistema capitalista está, de fato, destruindo a humanidade, destruindo a natureza, destruindo os recursos naturais. Porque se baseia no crescimento a todo custo e a todo preço. A lógica do sistema é crescer. Crescer, crescer, crescer. Produzir, produzir, produzir e vender. A lógica do sistema capitalista é essa. Independentemente do que você vá fazer com seu produto, o importante é vender e fazer com que a mercadoria se realize na forma do Capital. Feito isso, não tem diferença qual vai ser o destino que vai ser dado a esse produto. Você pode simplesmente comprar o produto e jogar no mar. O destino não interessa. Porque a lógica do sistema capitalista é essa. E essa lógica é que tem causado toda essa destruição que nós testemunhamos com muita clareza no mundo todo. Por isso nós tivemos duas guerras mundiais. E só não tivemos uma Terceira Guerra Mundial sob o capitalismo porque iria destruir toda a vida no planeta. Há uma frase de Rosa Luxemburgo que diz: “Socialismo ou barbárie”. Se eu pudesse fazer uma modificação nessa frase, a única coisa que eu mudaria seria acrescentar: “Socialismo ou barbárie, se nós tivermos sorte”. Porque o capitalismo vai destruir tudo e não sobra nem a barbárie. Em 1992, tivemos no Rio de Janeiro a Eco-92. O (George) Bush, pai (então presidente dos Estados Unidos) esteve presente e foram feitas promessas, e promessas e promessas. E absolutamente nada do que foi acordado naquela conferência ecológica mundial foi colocado em prática. Agora, vamos ter a Rio+20. Se a gente não tomar cuidado, o que vai acontecer é basicamente a mesma coisa. Promessas, promessas e promessas. Para juntar àquelas outras promessas que já haviam sido feitas há 20 anos. E nada vai acontecer para inverter essa lógica. E nós não temos mais tempo para ficar, de 20 em 20 anos, renovando as nossas promessas.

OP – Na sua obra, o senhor descreve uma crise estrutural, que não está sendo revertida pelos mecanismos do capitalismo. Mas, ao longo das várias crises pelas quais o sistema passou desde o século XX, ele não mostrou capacidade de adaptação e de resistência muito maior que se supunha no marxismo clássico?

Mészaros – Eu não estou falando sobre a crise do capitalismo. Estou falando sobre a crise estrutural do sistema do Capital. O capitalismo tem 400, 500 anos. O Capital existe há mais de dois mil anos. O capitalismo sobreviveu a todas essas crises superando os obstáculos que apareciam de forma cíclica. O capitalismo, de fato, é essa produção de commodities generalizada. Mas nós temos o capitalismo porque o Capital se impôs, com sua força, seu poder econômico. E foi se formando, então, o capitalismo. A crise que eu estou descrevendo não é a crise do sistema capitalista. É a crise do Capital, que se impôs de maneira a formar o que hoje se entende por capitalismo. Essas crises do capitalismo, sejam cíclicas ou conjunturais, repetem-se a cada sete ou dez anos. E o capitalismo consegue superá-las. Mas elas não são resolvidas em definitivo. E se está chegando ao ponto no qual não se pode prosseguir destruindo. Nos primeiros anos do capitalismo, pela sua força e seu poder, o capitalismo se expandia num ritmo alucinado. Há um ditado em muitas línguas que diz que o céu é o limite. Mas, depois de tantos séculos de capitalismo e de destruição, vê-se com muita clareza que o céu não é o limite. A Terra é o limite. A Mãe-Terra. E isso vai não só contra os princípios básicos do capitalismo, mas também do Capital. Essa ideia do capitalismo, de competição, de criar o inimigo. Se você não puder bater o seu inimigo pelas pressões comerciais, pela competição comercial, você acabará tendo que combatê-lo na extensão da política, que é a guerra. Perguntado sobre o que era a guerra, Carl von Clausewitz (general, estrategista e teórico militar da antiga Prússia, atual Alemanha) dizia: “A guerra é a continuação da diplomacia e da política através de outros meios”. Por isso tivemos duas guerras mundiais sob a égide do capitalismo. Mas não podemos mais ter a continuação da política por outros meios.

 

A entrevista foi mediada pelo tradutor Nícolas Ayres.

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador