O dilema de Darcy Ribeiro: passado e futuro da esquerda brasileira, por Jones Manoel

Que as novas gerações, nas quais me incluo, saibam tomar nas mãos a biografia e a obra de Darcy Ribeiro para construir a nossa tão necessária revolução

Foto: Reprodução

do Blog da Boitempo

O dilema de Darcy Ribeiro: passado e futuro da esquerda brasileira

por Jones Manoel

No mês de março, viajei para São Paulo para participar de um seminário no Sesc em comemoração aos 100 anos de nascimento de Darcy Ribeiro (agradeço ao professor e pesquisador Marcio Farias e à toda equipe do seminário pelo convite). Essa atividade me levou a aprofundar as reflexões que já venho fazendo sobre Darcy Ribeiro e o trabalhismo no Brasil, ensejadas pela pesquisa para escrever um livro sobre Leonel Brizola. Durante a viagem de ida, no avião, peguei para reler o livro Tempos de turbilhão: relatos do golpe de 1964, com escritos de Darcy e organizado por Eric Nepomuceno (Global Editora, São Paulo, 2014).

Durante a releitura deste livro, entre uma turbulência e outra, pude pensar em um grande dilema existencial, político e teórico de Darcy Ribeiro. Um dilema que não é apenas desse mineiro apaixonado pelo Brasil, mas de todos que querem a nossa Revolução Brasileira e a emancipação de nosso povo. Darcy Ribeiro sempre foi uma figura política que soube combinar como poucos a capacidade de refletir sobre os dilemas políticos do Brasil, da América Latina e do mundo em longa duração histórica, altíssimo grau de abstração e elevado refinamento teórico, com a capacidade de fazer política no hoje, nas estruturas dadas de poder. Um engenheiro de políticas públicas, instituições e reformas.

O mineiro de Montes Claros conseguia debater a história e a teoria da universidade na América Latina e pensar os pequenos detalhes de uma política pública educacional ou de um modelo de instituição universitária. Transitava com maestria do complexo e abstrato ao simples e imediato. Da grande reflexão teórica até a arte sem glamour de escrever um projeto de lei. Era, ao mesmo tempo, um homem de governo, um burocrata no melhor sentido da palavra, um intelectual e um construtor de novos horizontes de possibilidades históricas.

Essa qualidade dupla produzia uma angústia existencial e teórica em Darcy Ribeiro: ele sabia todos os limites que o capitalismo dependente brasileiro impunha (e impõe) a qualquer prática de reformismo institucional na dinâmica de poder e de relações econômicas postas. No entanto, colocado em situação de protagonismo crescente na vida institucional brasileira desde o governo JK, foi chamado a produzir inovações e reformas que o faziam questionar se era necessário um novo Brasil para fazer nascer, por exemplo, uma nova escola e uma nova universidade.

Na exposição do Sesc, num dos vários quadros com frases e reflexões de Darcy Ribeiro, essa me chamou muito a atenção (transcrevo o trecho a partir da foto que tirei da exposição):

Que terá acontecido nesses anos de iniquidade com a própria escola-parque da Bahia? Ali se realizava o grande experimento de Anísio. Ali se ensaiava a escola brasileira do futuro, para ser multiplicada pelo Brasil inteiro quando o Estado, afinal, corresponder à nação e um e outro forem regidos pela vontade do povo expressa em eleições honestas. Então – quando virá esse então? Precisaremos do socialismo para ter no Brasil a escola pública que a democracia capitalista generalizou no mundo inteiro?

Anos depois de Darcy Ribeiro produzir essa reflexão, seguimos sem uma escola pública universal, digna, de qualidade e honesta para todas as crianças e adolescentes do país. O próprio Darcy passou mais de 40 anos lutando por uma escola honesta e morreu sem ver realizada essa premissa civilizatória fundamental. Isso indica que a história provou que precisamos do socialismo para realizar as mais básicas tarefas democráticas e civilizatórias? Embora considere que a resposta seja positiva, é necessário argumentar com vagar sobre o tema. Por isso, volto ao livro Tempos de turbilhão.

Darcy foi ministro da Educação e depois ministro da Casa Civil de João Goulart. Viu de perto os desdobramentos da luta de classes em processo durante o governo Jango. Suas considerações pessoais, teóricas e políticas sobre esse governo, o golpe de 1964 e as reformas de base são muito importantes para pensar o passado, presente e futuro do Brasil. Vejamos.

Darcy sublinha os dois pilares fundamentais das reformas de base do governo Jango: reforma agrária e lei de remessa de lucros. Esses dois pilares reformistas, articulados com um amplo conjunto de mudanças, não iriam criar o socialismo brasileiro, mas mudar o modelo econômico, o padrão desenvolvimento, forjando um capitalismo brasileiro com menos dependência, desigualdades, miséria e pendor primário-exportador. Nas palavras do ex-ministro, “o que se pretendia era uma reforma estrutural de caráter capitalista” (RIBEIRO, 2014, p. 58). Contudo, as reformas de base foram “vistas como revolucionárias em razão do caráter retrógrado do capitalismo dependente que se implementou no Brasil sob a regência de descendentes de senhores de escravos e de testas de ferro de interesses estrangeiros” (RIBEIRO, 2014, p.  58).

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn”      

Continuando a reflexão, Darcy chega a uma conclusão que pode ser perturbadora para alguns, afirmando que o “governo Jango era reformista, mas a profundidade das reformas que propunha fez com que ele passasse a ser percebido como um revolucionário, provocando, assim, uma contrarrevolução preventiva” (RIBEIRO, 2014, p. 59). A consequência teórica dessa leitura do significado do golpe de 1964 é que um verdadeiro reformismo, visando, por exemplo, a reforma agrária, precisa ter como horizonte uma estratégia de Revolução Brasileira, considerando o caráter antirreformista da classe dominante do país. E é justamente a essa conclusão que Darcy chega, quando diz que Jango caiu “porque a única forma de enfrentar uma contrarrevolução é fazer a revolução e isso excedia a tudo que aquele governo pretendia” (RIBEIRO, 2014, p. 59).

Darcy, ao contrário de Jango, aceitava a premissa de fazer uma revolução para garantir as reformas de que o país precisava. Ele tentou articular uma resistência armada ao golpe, mas não pôde fazer nada, dada a decisão de João Goulart de não resistir para evitar um “banho de sangue” (banho de sangue, sempre bom lembrar, que aconteceu, mas só contra a classe trabalhadora e as esquerdas).

Já anos depois do golpe, com tempo para ver a história com mais distanciamento, Darcy é provocado pelo amigo Glauber Rocha, o grande cineasta brasileiro, a falar de João Goulart em carta. Glauber tinha planos de fazer um filme sobre Jango e queria o depoimento de alguém que viveu com o presidente muito de perto e conhecia o homem público e a figura humana em detalhes. A carta é de 1972, e Darcy continuava vendo aquele período como uma “oportunidade de romper com a velha ordenação social”, mas a política de Jango foi encarada pelas “classes dominantes como revolucionária” e “provocou a contrarrevolução, por parte dos interessados em manter a velha ordem” (RIBEIRO, 2014, p. 219). Novamente, reaparece o dilema:

Sendo reformista porque visava, fundamentalmente, fazer as reformas para evitar a revolução social, não pôde fazer frente à contrarrevolução. Quando esta se desencadeou, os reformistas caíram na perplexidade e se paralisaram porque suas alternativas eram: ou bem aderir à direita através de um pacto e retroceder; ou bem avançar chamando o povo à revolução. E, nos dois casos, negar sua própria natureza de regime reformista […] Ele [Jango] porque, sendo reformista, talvez considerasse sua própria queda menos catastrófica que o desencadeamento e condução de uma revolução social cujo caráter – supunha ele –, na reta final, seria provavelmente socialista (RIBEIRO, 2014, p. 220-221).

Próximo da conclusão da carta, em um trecho belo e doloroso, Darcy chama atenção para o grande derrotado de 1964:

Tudo isso significa que Jango não foi o protagonista, nem a vítima. O ator e mártir foi o povo, que perdeu uma rara oportunidade de libertação no seu esforço secular para romper com a rede constritora que o fez crescer deformado. Os derrotados fomos todos nós, como uma esquerda que não estava à altura do desafio histórico que enfrentava e que ainda hoje não o está porque continua dividida, perplexa, incapaz de formular um projeto de revolução que, infundindo confiança, nos permita operar no futuro como uma vanguarda de uma massa real e existente que é, afinal, quem fará a revolução necessária (RIBEIRO, 2014, p. 224).

Anos depois dessa carta, os exilados puderam voltar ao país, a ditadura militar acabou, voltou a democracia burguesa, Darcy teve protagonismo na vida política e institucional brasileira até a data da sua morte, em 1997. Seguiu sua luta por uma escola honesta, o combate às desigualdades, a reforma agrária, a verdadeira soberania nacional e popular, a preservação dos povos indígenas etc. Darcy, nos anos de Nova República, fez muito. Viveu grandes vitórias, pautando o debate nacional em vários momentos – como em seu período como vice-governador do Rio de Janeiro –, e grandes derrotas, como a sofrida no mesmo Rio de Janeiro em 1986.

Quando sentiu a morte chegando, Darcy correu para terminar e publicar aquela que seria sua obra máxima sobre o Brasil: O povo brasileiro, livro de 1995. A última produção de fôlego de Darcy foi uma espécie de testamento político e teórico. Um chamado para as novas gerações construírem um outro Brasil. Mais do que uma obra ambiciosa já na era do particularismo pós-moderno, foi um livro lançado depois de mais de 40 anos de militância política. Nesse último grande ato teórico-político desse mineiro inquieto, ele não volta diretamente à pergunta que chamou nossa atenção na exposição do Sesc – “precisaremos do socialismo para ter no Brasil a escola pública que a democracia capitalista generalizou no mundo inteiro?”–, mas responde indiretamente a essa questão e lança uma provocação para a tradição da qual ele era protagonista, o trabalhismo:

Não é impensável que uma reordenação social se faça sem convulsão social, por via de um reformismo democrático. Mas é muitíssimo improvável neste país em que uns poucos milhares de grandes proprietários podem açambarcar a maior parte de seu território, compelindo milhões de trabalhadores a se urbanizarem para viver a vida famélica das favelas, por força da manutenção de umas velhas leis. Cada vez que um político nacionalista ou populista se encaminha para revisão da institucionalidade, as classes dominantes apelam para a repressão e a força (RIBEIRO, 2017, p. 22).

Darcy não fracassou em tudo que tentou na sua vida, mas foi derrotado em todas as lutas por reformas. O Brasil segue sendo o eterno país do “futuro”. Um futuro que nunca chega, que sempre parece mais longe e com o presente mais degradado, miserável, sem esperança e permeado de barbárie. Um presente tão desgraçado que hoje temos poucos homens (e mulheres) na vida brasileira que tem a coragem, a ousadia, a capacidade de formulação teórica e a paixão pelo Brasil e pelo povo trabalhador que tinha Darcy Ribeiro.

Vivemos na lógica do eterno “menos pior”. Até a perspectiva de reformas saiu do horizonte da maioria das esquerdas – para não falar da Revolução Brasileira. Oh, Darcy! Eu nunca vi tamanha desgraça, quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça! Termino esse escrito dizendo que vivo uma eterna montanha russa entre a esperança e o medo. A esperança de que podemos mudar o Brasil e realizar todas as nossas potencialidades. E o medo, o mesmo de Darcy, de que o Brasil não “dê certo” e sigamos, rumo ao abismo, como o eterno “país do futuro” sem futuro.

Que as novas gerações, nas quais me incluo, saibam tomar nas mãos a biografia e a obra de Darcy Ribeiro para construir a nossa tão necessária revolução. Não aguento mais tragédia. E não quero, como Darcy Ribeiro, morrer velho em um país que continua inundado de fome, desemprego, miséria e crianças com seu futuro negado enquanto uma minoria bilionária segue operando seu moinho de gastar gente e tratando o sagrado solo brasileiro como uma mera feitoria para produzir lucros para os exploradores daqui e de fora.

*Jones Manoel é pernambucano, escritor, comunicador e educador popular, professor de história e mestre em Serviço Social pela UFPE e militante comunista. Organizou pela Boitempo o livro Colonialismo e luta anticolonial: desafios da revolução no século XXI (2020), coletânea com artigos, transcrições de palestras e entrevistas de Domenico Losurdo.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. A publicação do artigo dependerá de aprovação da redação GGN.

Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador