A violência contra os moradores de rua em Brasília

Sugerido por Assis Ribeiro

Correio Braziliense 

Visão do Correio :: No tempo da barbárie

O léxico português parece pobre para qualificar a barbárie praticada por jovens contra moradores de rua. Entre as mais de 400 mil palavras, sobressaem perplexidade, indignação e horror, que traduzem o sentimento da população diante da reprise de tragédia incompatível com as consciências civilizadas do mundo.

Jovens transformam pessoas em tochas. Descobertos, alegam ter sido “brincadeira”. Assim foi em 1997. Cinco rapazes da classe alta brasiliense compraram gasolina e partiram em busca de distração. Encontraram o índio Galdino Jesus dos Santos dormindo num ponto de ônibus. Sem censura ou piedade, queimaram-no vivo. 

A tragédia se repetiu agora. Depois de uma noitada regada a álcool e drogas, três adolescentes — de família bem situada socialmente — adquiriram combustível e imitaram a aventura. Mudaram os personagens, mas o enredo se manteve. Se, há 16 anos, havia a certeza de que o horror seria acidente incapaz de repetir-se, agora se teme que a volta seja questão de tempo.

Não há dúvida de que medidas precisam ser tomadas. Não há dúvida, também, de que se impõem ações preventivas. Especialistas em comportamento humano têm de ser convocados para ajudar a criar conceitos aptos a tornar compreensível o admirável mundo novo em que se vive. Jovem que se diverte ateando fogo a um semelhante indefeso nutre, com certeza, valores diferentes dos comungados pelos antepassados.

Como frisou sociólogo da Universidade de Brasília, o que sobressai nos dois homicídios é a banalização da vida em relação aos mais desprotegidos. Parece que rapazes e moças vivem em mundo virtual em que ganha recompensa quem demonstra maior capacidade de dar fim ao inimigo seja ele quem for — pai, mãe, bebê, criança, grávida. Atingido o objetivo, desliga-se o computador e procura-se outro lazer.

A família mudou. A maior parte dos clãs abdicou do papel de protagonizar a educação dos filhos. Babás, empregados ou professores passaram a desempenhar funções que pertencem a pai, mãe, avós. Sem bússola, a criança cresce sem limites, na ilusão de que pode fazer tudo — inclusive dispor da vida de semelhantes. 

Se o candidato a vítima for desamparado como os moradores de rua, a insensibilidade cresce porque a pessoa parece perder a condição humana para se tornar coisa. A violência contra ela não seria passível de punição. Não só. O consumo crescente de drogas lícitas e ilícitas amplia a sensação de superpoder e, claro, a ousadia de quem pensa que nada tem a perder ou a pagar. 

Devolver rapazes e moças aos trilhos dos valores que separam a civilização da barbárie constitui tarefa difícil, porém inadiável. Exige a participação da família, da escola, da igreja, dos clubes sociais, dos meios de comunicação de massa. A televisão, cujo poder de impor comportamentos é indiscutível, precisa abraçar a causa. Só com a mobilização coletiva — articulada e contínua — as fogueiras humanas se tornarão vergonhosa chaga do passado cuja cicatriz jamais se apagará.

Luis Nassif

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