As imagens de ciclistas ativistas prestando luto e homenagem a mais uma vítima de atropelamento fatal no conflito bikes versus carros em São Paulo, tudo em meio a buzinas de motoristas irritados pelos ciclistas “atrapalharem” o fluxo do tráfego, são simbolicamente chocantes. Sintomas de algo mais profundo: o culto da velocidade e domínio do tempo como fim em si mesmo, estilo de vida capaz de negar a morte e o luto. Portanto, cabe aos ciclistas politizar o tempo!
Após o atropelamento fatal do presidente da empresa Lorenzetti, Antonio Bertolucci, quando rumava de bicicleta para o seu local de trabalho, em São Paulo, ficaram duas imagens mostradas nos telejornais. A primeira, o capacete destroçado e a bicicleta retorcida, dando a dimensão da gravidade do atropelamento. E a segunda, a mais chocante pela brutalidade simbólica, a imagem das homenagens e luto de um grupo ciclistas ativistas no local do acidente, em meio as buzinas irritantemente insistentes de motoristas incomodados com a ocupação de parte da pista. Os motoristas nada mais enxergavam do que um grupo de desocupados prejudicando o tráfego que deveria ser mais veloz no local.
Respeito? Luto? Nada se sobrepõem à necessidade de fluxo, escoamento, velocidade. Como já discutimos em postagem anterior (veja links abaixo) sobre o atropelamento serial de ciclistas ativistas em Porto Alegre, esse conflito carro versus bicicletas é sintoma de algo mais profundo, de um paradigma tecnológico que chamamos na oportunidade de “bomba tecnológica”.
Nenhuma legislação ou projeto de ciclovias dará certo enquanto não politizarmos essa ideologia da Tecnologia: a velocidade e a lei do menor esforço como moralmente boas. Em outras palavras, a necessidade de correr contra o tempo (ou, pelo menos, o imaginário da corrida, já que cada vez mais não se consegue chegar de carro a parte alguma) como um valor intrinsecamente bom. Em última instância, devemos politizar o tempo.
Velocidade e a logística da guerra
Urbanista e pensador francês Paul Virilio |
Mas que paradigma é esse onde a necessidade de velocidade nega o luto e a morte? O urbanista e pensador francês Paul Virilio desenvolve excelentes reflexões sobre essa conexão entre Tecnologia, Tempo e Velocidade, principalmente nos livros “Guerra Pura”, “A Máquina de Visão” e “Estética do Desaparecimento”. Para ele, todo desenvolvimento tecnológico está intimamente ligado com a logística da guerra. Por exemplo, a manipulação temporal através da aceleração e velocidade foi um instrumento logístico em regimes totalitários para criar desorientação e derrotar a vontade de prisioneiros. As práticas de extermínio em ritmo de linha de montagem nos campos de concentração nazistas, sirenes acionadas em todo momento para criar pânico e mobilização contínua e o constante e maquinal trabalho forçado impediam os processos psicológicos de lutificação e simbolização coletiva da morte.
Dessa forma eram esvaziadas as lembranças, impedia-se qualquer esperança futura e todos eram forçados a viver momento por momento. Unicamente existia o presente; o futuro tornava-se não confiável, imprevisível. Perdendo todo o sentido temporal, as vítimas se tornavam totalmente manipuláveis, preparadas a aceitar cegamente as inquisidoras definições de passado e futuro.
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