O primeiro indígena formado mestre pela UFRGS

Sugerido por MiriamL

Do Terra

Primeiro mestre indígena da UFRGS define escola ideal para índios

Dissertação de Zaqueu Key Jópry Claudino foi sobre as concepções da educação indígena a partir da tradição Kaingang, relacionando-as com a educação escolarizada

“Agradeço em primeiro lugar a Tupẽ (Deus), que iluminou o meu caminho durante esta caminhada, e também aos espíritos ancestrais Kaingang, que, em sonho, me possibilitaram desvendar os saberes indígenas que consagro como conhecimento”. Assim começa a seção de agradecimentos da dissertação de mestrado de Zaqueu Key Jópry Claudino, 42 anos, também conhecido como Zaqueu Kaingang. Desde o início é possível perceber que não se trata de um trabalho comum – além das tradicionais versões do resumo em português, inglês e espanhol, há ainda uma em kanhgág, primeiro idioma aprendido por Zaqueu.

Pertencente à tribo dos Kaingang, Zaqueu é o segundo filho de uma família de cinco, o primeiro indígena formado mestre pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e primeiro indígena mestre em educação do Rio Grande do Sul. A titulação veio em junho deste ano. Ele lamenta que nenhum de seus irmãos tenha ido além do ensino médio, mas se orgulha do caminho tomado por sua família: com o título de mestre em mãos, Zaqueu pretende iniciar o doutorado no próximo ano; sua esposa, Rute, cursa geografia; os filhos mais velhos, Gilmar e Cleverson, são formados em história e enfermagem; e a filha mais velha, Juciane, também cursa enfermagem. Destino que espera também para os caçulas, Giovani, 9, e Geovana, 7.

 Agradeço em primeiro lugar a Tupẽ (Deus), que iluminou o meu caminho durante esta caminhada, e também aos espíritos ancestrais Kaingang, que, em sonho, me possibilitaram desvendar os saberes indígenas que consagro como conhecimento  Zaqueu Key Jópry Claudino

Os primeiros contatos com a língua portuguesa e com a educação escolarizada ocorreram simultaneamente quando ele tinha cerca de 12 anos. E a contar por esta primeira experiência, seria difícil prever que Zaqueu desse continuidade aos estudos – e ainda escolhesse a área da educação para se especializar. Quando começou a frequentar a escola, nem Zaqueu nem seus pais tinham vontade de construir um futuro fora da aldeia para o menino. “Não havia a perspectiva de me tornar médico ou advogado, nem havia interesse em dar seguimento à formação”, conta.

O objetivo principal das aulas, todas ministradas por professoras brancas (fóg em kanhgág), era alfabetizar as crianças em língua portuguesa, e era proibido falar outra língua na classe. Isso foi um problema para Zaqueu, que não dominava o idioma lusitano e gostava mais dos intervalos, quando podia brincar e conversar com os colegas em kanhgág. Ele conta que para receber a merenda era preciso pedir em português, caso contrário, deveria voltar para o final da fila. Até aprender, o menino passou por isso diversas vezes, torcendo para que tivesse sobrado comida quando chegasse a sua vez. Foi nesta época que Zaqueu percebeu que o objetivo da escola era, mais do que alfabetizar as crianças indígenas em português, fazer com que o idioma substituísse o kanhgág.

Zaqueu permaneceu na escola até os 16 anos, quando se casou. De acordo com a cultura kaingang, os indivíduos pertencentes ao grupo dos Kamẽ (como Zaqueu) devem se casar com alguém de outro grupo, Kajru. Após o casamento, o noivo deve ir morar com a família da noiva, e o sogro passa a ser seu professor, ensinando conhecimentos diferentes dos recebidos na casa dos pais. Casado, Zaqueu passou a ser considerado adulto, e precisou parar de estudar para ajudar o sogro a sustentar a família. Segundo Zaqueu, o que aconteceu com ele é muito comum, pois a educação escolar indígena costuma ser voltada às crianças, não levando em conta especificidades culturais como as dos kaingang.

O nascimento do primeiro filho, Gilmar, coincidiu com a oportunidade de voltar a estudar, em 1987. Zaqueu se inscreveu para um curso de monitor bilíngue voltado a indígenas que tivessem concluído a quarta série. Nascido na Terra Indígena Guarita, que se estende pelos municípios de Tenente Portela, Redentora e Erval Seco, no noroeste gaúcho, ele deixou a região pela primeira vez e foi para Laranjeiras do Sul, no Paraná, onde permaneceu por três anos. Concluído o curso, retornou à Guarita e passou a trabalhar como monitor bilíngue na escola onde havia iniciado seus estudos. No entanto, trabalhar como intérprete não era o objetivo de Zaqueu; ele queria ser professor.

Dificuldades no ensino superior

Até atingir este objetivo, com a formatura em pedagogia na Universidade Metodista IPA de Porto Alegre, em 2008, Zaqueu percorreu um longo caminho. Para concluir o ensino fundamental, teve de estudar em uma escola convencional, depois veio o magistério indígena, que cursou de forma intervalar, sempre precisando conciliar trabalho e estudos. Em 1994, teve o primeiro contato com a vida acadêmica: passou no vestibular para o curso de sociologia da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), mas cursou apenas quatro semestres. “Tive que desistir, a mensalidade era muito cara, não tinha bolsa, e o transporte encarecia ainda mais”.

Em 2003, mudou-se para Porto Alegre, no acampamento que deu origem à Terra Indígena Fág Nhin, onde reside atualmente. Antes de se mudar, Zaqueu dava aulas de cultura indígena nas escolas de sua cidade, e participou ativamente da luta pelo reconhecimento do acampamento e da criação de uma escola indígena na região – onde passou a lecionar, alfabetizando os alunos em kanhgág.

A oportunidade de cursar o mestrado surgiu quando Zaqueu estava terminando a especialização em educação profissional e tecnológica na UFRGS. Tinha a professora Maria Aparecida Bergamaschi como orientadora do trabalho de conclusão, que serviu de base para o projeto que lhe rendeu a bolsa de estudos do mestrado. Dentro da academia, a principal dificuldade enfrentada por Zaqueu foi a bibliografia do curso. “Não tenho muito domínio nem da língua portuguesa, que dirá de outras estrangeiras”.

Ele conta que não foi fácil acompanhar o nível de exigência do curso, que não teria concluído não fosse a ajuda de Maria Aparecida, sua orientadora também no mestrado. Em algumas ocasiões, Zaqueu precisou de livros que não tinha condições de adquirir. Nestes casos, a orientadora comprava as obras e emprestava para Zaqueu. “Ela não deixou a bola cair, me ajudou com as leituras, me incentivou todo o tempo, foi o melhor suporte que eu poderia querer”, afirma.

Novatos nas universidades

As primeiras ações afirmativas voltadas à inclusão de indígenas no ensino superior remontam ao início da década de 1990, com convênios firmados entre a Fundação Nacional do Índio (Funai) e universidades públicas e privadas. No entanto, até a década seguinte, os acadêmicos indígenas eram raros. Em 2001, foi implantada pela Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT) a primeira licenciatura indígena do país, de forma intervalar.

De acordo com dados da Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (CGEEI/SECADI), havia no ano passado 6.336 alunos indígenas em instituições de ensino superior. No entanto, não há dados específicos sobre a incidência de mestres e doutores indígenas, e as políticas públicas de inclusão não alcançam a pós-graduação. Para Zaqueu, as cotas para indígenas em universidades são muito bem-vindas, mas ainda é pouco. Segundo ele, o benefício deveria ser ampliado e se estender à pós-graduação. “Os processos seletivos das universidades públicas são muito difíceis, e os cursos das privadas são muito caros, isso impossibilita o acesso”, opina.

Assim, para dar continuidade à formação, os acadêmicos indígenas costumam recorrer a instituições privadas beneficentes. Uma destas instituições é a Fundação Ford, que por meio do International Fellowship Program (IFP) oferece, desde 2001, cerca de 40 bolsas por ano a estudantes carentes para ingresso e permanência no Ensino Superior nos níveis de pós-graduação. Este foi o caso de Zaqueu, que com o financiamento do IFP pode concluir o mestrado. Na seleção, ocorrida em 2010, havia mais de 6 mil inscritos, e Zaqueu passou em terceiro lugar com projeto baseado em seu trabalho de conclusão da especialização em educação profissional e tecnológica, também cursada na UFRGS.

A escola indígena ideal
Por sua experiência pessoal, o tema de estudo de Zaqueu não poderia ser outro. Com o título A formação da pessoa nos pressupostos da tradição: Educação Indígena Kanhgág, seu trabalho aborda as concepções da educação indígena a partir da tradição Kaingang, relacionando-as com a educação escolarizada. Para Zaqueu, o que falta ao modelo predominante voltado aos povos indígenas é a perspectiva de alguém como ele, que alie o comprometimento com a manutenção das tradições ao conhecimento vindo da academia. Considerando apenas a concepção educacional dos não indígenas, passa-se por cima de questões importantes para as tribos, o que contribui para a extinção de sua cultura.

Um único modelo educacional padronizado não é adequado para sociedades com costumes e tradições distintas entre si. “Seguindo a tradição kaingang, quando casei fui morar com meus sogros, eles foram meus orientadores, tudo o que eu conheço da cultura, dos costumes, devo a eles. Quando se cria a escola indígena, este poder dos velhos termina”, exemplifica. Zaqueu considera que, para respeitar a organização social da tribo, seria preciso criar uma escola de cada clã, com professores do clã oposto, reproduzindo a ideia de complementaridade. E isso só pode acontecer se os professores vierem das próprias comunidades.

Para Zaqueu, a escola indígena ideal seria aquela em que o gestor indígena tivesse a liberdade de formular a proposta pedagógica com a ajuda da comunidade, de acordo com os costumes, ouvindo e acolhendo os mais velhos, pensada para atender de forma específica cada sociedade. “Meu sonho é uma escola em que os velhos possam chegar sem hora marcada para passar seu conhecimento, que as crianças possam aprender umas com as outras, com os animais, com a natureza, que o saber não more apenas na sala de aula e a vontade das crianças seja respeitada”, diz.

Ele considera que uma escola assim contribui para que a criança continue pensando a partir da sua cultura, falando sua linguagem, em sintonia com seu povo enquanto aprende. “A educação hoje é muito voltada à formação para o mercado de trabalho, e essa escola não serve para a nossa sociedade. Não enxergamos o mundo através da ótica capitalista, é uma lógica contrária à nossa, que é ligada à horizontalidade, ao equilíbrio entre todos”, explica.

Em sua pesquisa, Zaqueu pode perceber o receio dos mais velhos em relação à escola quando um ancião lhe contou que impediu que seus filhos mais novos estudassem porque o mais velho foi estudar e foi embora. “No dia em que eu morrer, ele não vai estar comigo”, disse o ancião. Isso não significa que as escolas sejam prejudiciais, pelo contrário. Ele considera que é justamente neste espaço que se deve ensinar às crianças que elas devem buscar conhecimento, mas devem também trazer o que aprenderam fora para produzir algo novo combinando com as tradições para contribuir para a sua manutenção.

Em vez de preparar para a sobrevivência na cidade, o ambiente escolar deve dar condições de continuar na aldeia. Foi o que Zaqueu fez. “Busquei conhecimento não para ter melhores condições financeiras e ir para longe, mas sim para ajudar meu povo. Estou levando o que aprendi para mostrar à aldeia que podemos continuar sendo o que somos, com conhecimento ‘do portão pra fora e do portão pra dentro'”.

Luis Nassif

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