A primavera da Rocinha

Enviado por Jorge Antonio Barros

14.11.2011
2h04m
ocupação policial

A primavera da Rocinha

Por Jorge Antonio Barros

Em 1988, escapamos — eu, o fotógrafo Alcyr Cavalcanti e o motorista Sombra — de morrer nas mãos do tráfico da Rocinha, então chefiado por Sérgio Bolado, que havia sucedido ao traficante Dênis. O Gol da reportagem do “Jornal do Brasil” foi metralhado e, por milagre, atingido por apenas um tiro no porta-malas.
Por metralhado entendam-se tiros de pistola 9mm, metralhadora Uzi e espingarda. Os fuzis AK- 47 e AR-15 ainda não tinham chegado.

Com a morte de Bolado por um cúmplice, o cargo passou a ser ocupado por um triunvirato. O jornal publicou o caderno B Especial “Rocinha Sociedade Anônima — Como se vive e como se morre na maior favela da América Latina”, seis das oito páginas dedicadas à Rocinha. Só Bolado ganhou uma página de perguntas e respostas, sob o título “Nascido para drogar”, numa alusão ao filme “Nascido para matar”, em cartaz na época. Duas semanas depois a revista “Veja” publicava reportagem sobre a Rocinha, “O Império do Crime”, que teve como um dos repórteres meu amigo Aydano André Motta, hoje no GLOBO, A superexposição da Rocinha na mídia, naquela época, acabou deflagrando em 1988 a primeira grande operação policial de combate ao tráfico na favela, numa guerra cujo general era um oficial da Companhia de Operações Especiais conhecido como Bichão. O homem era o cão chupando manga para a bandidagem das favelas, uma espécie de Rambo da polícia na época. O quartel-general do tráfico na Rua Dois foi tomado. A polícia apreendeu armas, drogas e matou os chefetes.

Depois de um tempo, o tráfico recomeçou e transformou a Rocinha num dos maiores entrepostos de drogas da cidade. Precisava subir o morro ontem e ver o território dominado pelas forças de segurança do estado, num domingo de primavera. A primavera da Rocinha. Nessa viagem sentimental de volta ao passado, per-
corri locais de atrocidades cometidas pelo tráfico, onde o filho chorava, e a mãe não via. Rua Um, Rua Dois, Rua Quatro e o Laboriaux — no topo da favela —, área onde já funcionaram pequenos laboratórios de
refino de cocaína.

No Laboriaux, ontem, o clima era de apreensão, mas dava para notar também a felicidade estampada no rosto de moradores.

— Tem que haver um futuro melhor para essas crianças. Jesus está no comando, meu filho. Vai dar tudo certo — dizia a senhorinha, acompanhada das filhas e das netas, descendo por um beco.

Na mata, onde policiais do Bope cavucavam a terra como cães farejadores — até achar fuzis e munição —, havia também jornalistas free-lancers, com experiência na circulação por favelas do Rio. Os paparazzi do crime. Coisa de filme de guerra. Com os selvagens cães de guerra, Brita, um labrador, e Bento, um pastor belga, do Batalhão de Cães da PM, ajudavam nas buscas. Com alguns policiais deu para conversar um pouco sobre violência, drogas e que tipo de polícia a sociedade quer.

— Mal comparando, eu acho que policiais são como prostitutas que os homens usam e abusam. Quando estão com a família, viram as costas para a mulher que lhes vendeu o prazer. Só quando se precisa de verdade da polícia é que entende que os policiais precisam ser valorizados — afirmou um dos PMs de plantão na operação da Rocinha.

Ao chegar na favela, com a repórter Fernanda Pereira e o motorista Uraí, encontrei uma equipe do Batalhão de Operações Especiais (Bope), que acabara de encontrar uma Toyota Hillux de Santa Catarina. O carro estava abandonado na Estrada da Gávea, perto da Vila Cruzado — localidade que ganhou o nome em homenagem à moeda lançada no governo Sarney. Rapidamente chegou ao local uma equipe da Delegacia de Roubos e Furtos e Automóveis (DRFA). Os policiais trataram de inspecionar o chassis de outros veículos, por inscrições no vidro.

— Se fossem da Homicídios se preocupariam com digitais — comentou um sargento do Bope, que trabalhava no local, removendo motocicletas roubadas.

Logo deu pra notar que a apreensão da pick-up Toyota se tornou motivo de disputa entre os policiais civis e militares. Uma disputa discreta. Os policias do Bope não queriam entregar o carro para os policiais especializados, temendo que o veículo evaporasse. Havia polícia por todo canto na Rocinha ontem, mas não houve relatos de abusos e nem de saques nas casas dos moradores, como ocorreu no  Complexo do Alemão,  em novembro do ano passado. Havia 15 defensores públicos preparados para colher depoimentos de desrespeito aos direitos dos cidadãos, mas os policiais pediam licença para entrar nas casas. Coisa de polícia de primeiro mundo. Por outro lado, houve menos apreensões de armas e drogas do que se esperava. Será que a banda podre trabalha mais que a banda boa?

Em minutos o pessoal do Bope some e nossa equipe se vê sozinha na Vila Cruzado. Um jovem morador, com cara de poucos amigos, aproveita para tentar intimidar os jornalistas.

— Vocês estão muito à vontade, hein? Cuidado que o bicho vai pegar ainda — ameaçou.

— Que nada! O que tinha que pegar já foi pego. Além do mais já morei na favela e sei como é que é — disse, fingindo tranquilidade.

Em 23 anos, a Rocinha virou um enorme bairro-favela, tem conjunto habitacional do PAC, UPA e um comércio vigoroso que ontem ficou totalmente fechado. Um grupo de distintos senhores reclamava que não havia uma birosca aberta para se tomar a gelada de domingo.

Além de educação para os jovens, o grupo de moradores manifestava preocupação com o fim do “gatonet”.

— Estou com o bico seco, mas feliz por ver que finalmente o Estado chegou aqui. Esperamos que seja para ficar. E que garanta a nossa TV a cabo a preços populares — salientou um morador, há 40 anos na
Rocinha, admitindo que paga “gatonet” para captar programas esportivos e “repórter até do estrangeiro” nos três televisores que tem em casa.

A gente não quer só comer, também quer TV a cabo.

— Se a gente tem uma TV de 40 polegadas, foi com muito sacrifício, pagando a prestação. Não é roubo, não — observou outro, que admitiu detestar falar com jornalista, mas abriu uma exceção a este que chegou perguntando onde ficava a Rua Um, mais perdido do que cego em tiroteio.

Ao grupo dos sem-cerveja chega um dizendo o que o repórter deve escrever:

— Põe aí. O que falta é lazer para a garotada e educação. Uma escola técnica aqui foi o que me faltou no passado. A gente precisa tirar essa juventude das ruas e botar para estudar e trabalhar.

Se não é candidato, apoiado.

Na conversa com os antigos moradores fiquei sabendo que continua viva uma educadora comunitária que era marcada para morrer pelo tráfico há mais de 20 anos. Pois conseguiu enganar a morte. Com eles soube também do destino do temido cabo Cruz, que arrepiava moradores e bandidos da favela.

— Numa das operações clandestinas, a arma dele disparou num acidente e um colega dele acabou ferido.  Assim ele acabou finalmente sendo investigado pela Corregedoria.

Além de moradores observando a movimentação das tropas, circulavam ontem por lá dezenas de mototaxistas, acelerando pelos becos, ruas, vielas e pela Estrada da Gávea, onde nossa equipe morou por uma semana, em 1988, num quarto com banheiro coletivo. Num dos pontos  da Estrada da Gávea, encontrei com um grupo de mulheres, jovens e senhoras, com feições nordestinas. Falavam muito até eu me aproximar.

— Boa tarde, meu nome é Jorge, sou do GLOBO. Como as senhoras estão vendo a ocupação policial?

— A gente não está vendo nada. Está tudo normal — desconservou a única delas que se dignou a responder ao repórter.

Nas cerca de três horas em que permanecemos na favela, constatei basicamente três tipos de comportamento de moradores: felizes com a presença da polícia, desconfiados até da própria sombra e aparentemente alheios. Para quebrar a rotina, a feira do Largo do Boadeiro também não funcionou. O Largo da Macumba, em São Conrado, virou “show-room” do Bope, que ali apresentou suas “armas” — ambulância, pá mecânica, vans, pick-ups e um caminhão — além de algumas das apreensões, como maconha, pasta-base de cocaína, equipamento de “gatonet” e muita munição de armas pesadas. Um repórter de TV pergunta ao sargento André quanto tempo é preciso para gastar a munição apresentada.

— Os bandidos, que não têm compromisso com ninguém, gastam rapidamente. Na mão do Bope dura muito — respondeu o policial, desconcertando o jornalista.

Logo um grupo de curiosos formou uma roda em torno dos “troféus de guerra”. Cada popular com um celular melhor o que o outro, registrando seus vídeos.

Na minha incursão à Rocinha fiquei muito impressionado com a quantidade de lixo pelas ruas e becos da favela. Bem perto da entrada da Rua Um — onde vimos a morte naquela ocasião — há o símbolo da prefeitura do Rio desenhado na parede, ao lado de um dos muitos vazadouros de lixo. Dizem que a Rocinha é uma favela rica, mas cercada de lixo por todos os lados. Tem pichação para tudo que é lado. Uma delas diz:  “Pra que medo se o futuro é a morte?” Em mais de duas décadas, os moradores parecem ainda acostumados com tanto lixo a céu aberto. Considerada eficiente no asfalto, a Comlurb não faz o dever de casa nas favelas, com raríssimas exceções. Com as UPPs, a prefeitura promete agora limpar tudo. Vamos ver e cobrar.

Do alto de um prédio de quatro andares, um morador chama os repórteres, no melhor sinal da receptividade
da comunidade à imprensa, diferentemente do que ocorre nessas horas de ocupação.

— Aqui tem uma boa laje para vocês fotografarem.

E tinha. Uma vista estupenda da favela, o paredão do Morro Dois Irmãos de um lado, a mata fechada do outro e, lá longe, em último plano, os prédios de classe média de São Conrado e o mar.

Com um cartão de visitas em que se lê “Laje para visitas de turistas”, o comerciante Oscalino José da Silva, o Seu Carlinhos, de 61 anos, 38 do quais na Rocinha, era a imagem da satisfação.

— Recebo mais de 1.800 turistas por mês, e às vezes o pessoal do Nem atrapalhava. Mas fui lá, expliquei que precisava de sossego para trabalhar e consegui — contou Carlinhos.

Assim como outros moradores, o empreendedor turístico espera que a UPP faça diferença e que o tráfico nunca mais volte a triunfar.

http://oglobo.globo.com/rio/ancelmo/reporterdecrime/

Redação

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