Mais 8 mitos sobre a reforma da Previdência, por Marcos de Aguiar Villas-Bôas

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Da Carta Capital

Mais 8 mitos sobre a reforma da Previdência

por Marcos de Aguiar Villas-Bôas

Além de algumas confusões no debate, há mentiras sendo propositadamente difundidas de forma irresponsável

Em texto anterior, apresentei 8 dos mitos mais importantes da reforma da Previdência brasileira. Como eles são tantos e tão relevantes, traz-se abaixo mais 8 mitos que estão confundido o debate:

1) Os menos favorecidos serão prejudicados pela reforma

Os, de fato, menos favorecidos são os muitos milhões que sequer têm emprego formal na maior parte da vida e que, por isso, sequer fazem parte da Previdência. São também aqueles que, por motivo de doença ou acidente, não podem mais trabalhar e dependem de uma Previdência fiscalmente sólida para sobreviver. Vale lembrar que em torno de 25% da população depende do Bolsa Família.

A parcela de ocupados não cobertos pela Previdência também representa mais do que 25%. Esses precisam, por exemplo, de redução da tributação sobre o consumo, para que possam comprar bens mais baratos, e de mais investimentos em infraestrutura e em formação/qualificação, além de políticas mais eficientes que incentivem a formalização.

Parte das dezenas de bilhões de déficit, que aumentarão exponencialmente nos próximos 10 anos, e cada vez ficará pior, poderiam ser usadas para beneficiar essas pessoas e bem mais gente. Assistência social é algo bem diferente de Previdência. A primeira serve para garantir direitos fundamentais a pessoas necessitadas em geral e a outra serve para dilatar o consumo e garantir renda a pessoas que não podem/devem trabalhar, como na velhice.

É fundamental proteger trabalhadores com menor renda, porém é preciso utilizar as políticas mais adequadas para isso. Trabalhador capaz e em idade produtiva não deve ser protegido pela previdência, mas por políticas de assistência voltadas para empregabilidade ou empreendedorismo. Usando as políticas erradas, termina-se gastando muito e não resolvendo os problemas do país.   

2) É preciso escolher entre a proposta do governo Temer ou sua não aprovação completa

Há infinitos desenhos possíveis da Previdência. Essas duas opções são muito ruins, pois a proposta em discussão quebra as expectativas, não aumenta a redistribuição de renda, não incentiva uma maior formação de capital pelos mais ricos, não eleva a cobertura etc.; contudo, a negação da reforma postergará um problema grave, que, apesar de ainda poder ser atacado com alguma suavidade, precisa ser resolvido logo, para que dê tempo de todos se adaptarem às mudanças e para garantir a realização de outras reformas fundamentais, como a tributária.

A reforma da Previdência já está em debate e há boas chances de o governo Temer aprová-la apenas com poucos remendos. A força da sua base, ainda que conquistada de forma não muito legítima, está provada. Pragmaticamente, aqueles que não aceitam a proposta precisam parar de negar que o sistema atual, além de fiscalmente insustentável, é muito ruim para a produtividade, pouco redistributivo e deixa à margem dele muitos milhões de brasileiros. 

3) Deveríamos diferenciar profissões que trabalham mais

Certas profissões são citadas como mais duras do que outras para justificar a necessidade de diferenciações entre elas. Todo professor trabalha mesmo três jornadas? E quantas profissões não terminam levando a isso no Brasil, devido aos baixos salários e ao pequeno poder de compra da população?

É muito comum que advogados, publicitários e outros profissionais liberais trabalhem 12 ou mais horas por dia, inclusive em finais de semana. Esses, então, não deveriam ter também direito a uma aposentadoria maior?

Qual o critério racional para definir a profissão beneficiada? Por essa linha, médicos que têm consultório e dão plantões, trabalhando com frequência ao longo de 24 horas seguidas, não tendo descanso no dia seguinte, numa das profissões mais importantes de todas, não deveriam ter também uma previdência privilegiada?

E as atividades braçais que fazem trabalhadores chegarem bastante cansados às idades avançadas, não merecem também uma aposentadoria mais cedo? Então, devem ser privilegiados todos os pedreiros, carpinteiros, pintores etc.? A aposentadoria rural deveria, portanto, continuar completamente beneficiada?

Se deixados paixões, interesses e experiências próprias de cada um de lado, e se estudado o tema com seriedade, percebe-se que não há critério racional e eficiente para separar as profissões, e é assim que acontece na grande maioria dos países do mundo, onde todas elas também são encontradas.

O design de um sistema previdenciário é assunto extremamente técnico e complexo, que precisa ser definido, ainda que com senso de justiça social, sem visões “coitadistas”, que tentam solucionar problemas tidos por específicos, mas que são, muitas vezes, bem mais gerais e mais difíceis de resolver do que se imagina.

Outro problema é o político fazer um uso infeliz do debate sobre a Previdência para ganhar apoio, defendendo certas bandeiras que suprem os interesses imediatistas de um público alvo que lhe interessa.

Há, ademais, cada vez maior mobilidade entre as profissões, o que dificulta definir quem é o que. Desde o século XX, a tradição de pais passarem profissões aos filhos e cada um realizar, em regra, o mesmo trabalho durante toda a vida, veio se desfazendo, o que impõe mudanças drásticas nas políticas, desde as educacionais até as previdenciárias.

Nessa linha de procurar dificuldades nas profissões para justificar um privilégio na previdência há todo tipo de argumento. Os militares dizem que passam por isso e aquilo, de modo que se justificaria a regra atual de aposentar mais cedo com benefício integral.

Seguido esse caminho, praticamente todo profissional vai encontrar dificuldades que enfrenta ao longo da vida e vai querer aposentadoria facilitada, como se a previdência servisse para compensar as dificuldades das vidas profissionais das pessoas. 

4) Deveríamos diferenciar os trabalhadores por região

Na linha do mito anterior, há cada vez maior mobilidade territorial dos indivíduos. Qual o benefício de alguém que começou trabalhando no interior do Nordeste, depois migrou para São Paulo, casou com uma mulher do Norte e foi lá viver com ela, para, depois de seu falecimento inesperado, retornar ao Nordeste e lá trabalhar até a aposentadoria? Casos assim não são raros hoje.

Agora, suponha que há diferenciação por profissão e por região, e que a pessoa do exemplo em análise teve uma profissão distinta em cada região, ou seja, ele começou como professor em escola pública no Nordeste, passou a ser manobrista de veículos em São Paulo, trabalhou como pintor no Norte e, ao voltar ao Nordeste, foi assistente administrativo. Como calcular a aposentadoria dele? 

5) Deveríamos manter a diferença entre homens e mulheres

Valem as considerações acima. O mundo mudou e não há mais aquela diferenciação rígida entre a vida da mulher e do homem, o que é, aliás, algo desejável.  

Hoje, muitos homens cuidam da casa, dos filhos, à noite e nos finais de semana. Muitas mulheres podem nem ter filhos ao longo da vida, seja por escolha própria, seja por problemas médicos.

É, de fato, justo e fiscalmente sustentável beneficiar mulheres em relação a homens em pleno século XXI no que toca à previdência? As dificuldades das mulheres precisam ser atacadas por políticas específicas, em lugar de deixá-las sofrendo discriminações ao longo de toda a vida e depois procurar compensá-las com uma regra de previdência mais facilitada.  

6) Se somarmos as contribuições, elas pagam muito mais do que as aposentadorias

Circulam informações erradas na imprensa e nas redes sociais, em regra geradas por políticos interessados ou por (supostos) especialistas irresponsáveis.

Um exemplo é a ideia de que, se calcularmos uma soma das contribuições pagas por empregados e empregadores, o resultado da equação seria muito mais do que o necessário para pagar uma bela aposentadoria aos empregados. Esquece-se que as contribuições não ficam aplicadas em um fundo, pois o sistema não é de capitalização, mas de repartição.

O dinheiro arrecadado é imediatamente gasto para pagar os benefícios daquele mês. Esse tipo de sistema consiste num financiamento dos benefícios atuais dos aposentados por quem está trabalhando e contribuindo.

Quando aquele que está contribuindo hoje for se aposentar, o benefício já terá um valor completamente diferente, pois os salários se reajustam ao longo tempo. Além disso, a Previdência não serve para custear apenas aposentadorias, então essa construção é um equívoco completo sobre premissas básicas da matéria. 

7) Hoje as pessoas podem receber benefício integral após 30 anos de contribuição (mulher) e 35 anos (homem)

Há uma falsa ideia circulando de que hoje as pessoas podem se aposentar com salário integral após os anos de contribuição previstos em lei e que a reforma proposta mudaria isso completamente.

Na verdade, o fator previdenciário, existente desde 1999, mas que sofreu algumas mudanças, já estabelece hoje um mecanismo que dificulta aposentadorias com benefício integral, como acontece, aliás, na maior parte do mundo.

A regra de 95 (homens) e 85 (mulheres) do fator previdenciário significa que, para ter aposentadoria integral, é preciso que os homens somem, por exemplo, 65 anos de idade e mais 30 de contribuição (60 + 35 = 95). No caso de alguém se aposentar após 35 anos de contribuição, porém com 54 anos idade, o que não é raro no sistema atual, ele completará apenas 35 + 54 = 89, e o fator previdenciário reduzirá o benefício.

As regras da proposta do governo Temer são extremamente duras, é verdade, mas é preciso entender que o benefício integral quase não acontece. Há uma medida chamada de taxa de reposição da aposentadoria, que serve para checar a reposição do salário na aposentadoria.

É interessante que ela seja alta, mas não é preciso que as pessoas, sobretudo as mais ricas, se aposentem com benefício integral. Isso precisa ser uma exceção, pois o objetivo central da previdência pública é garantir que as pessoas não fiquem pobres na velhice. A taxa média de reposição na OCDE é 66% para homens e 65% para mulheres.

Como o Brasil tem salários baixos e tributação muito alta, o poder de compra da maior parte da população é muito pequeno, dificultando poupar e investir. Por esse e outros motivos, é preciso atacar o problema na origem, continuando a política de aumentos reais do salário mínimo e fazendo uma reforma tributária para tornar o sistema mais progressivo.

No caso daquelas pessoas que ganham muito pouco ao longo da vida, pode haver uma sistemática de cálculo do benefício que as faça ganhar mais e que faça ganhar menos aqueles que tiveram renda alta ao longo da vida e que, por isso, tinham a obrigação de poupar e investir mais. 

8) Para se aposentar, será preciso contribuir por 49 anos

Há diversos políticos e especialistas repetindo essa informação falsa, e o mais triste é que a maioria o faz de caso pensado. Pela proposta do governo Temer, a aposentadoria apenas seria possível com 35 anos de contribuição e 65 anos de idade, ou seja, conforme a análise do tópico anterior, 35 + 65 = 100.

Nesse caso, já seria possível aposentar, porém com um benefício diminuído. Para ter aposentadoria integral, a pessoa precisaria contribuir por 49 anos e trabalhar ao menos até os 65 anos de idade, totalizando 49 + 65 = 114. A regra fica, portanto, muito mais dura, porém não é preciso trabalhar 49 anos para se aposentar, como muitos infelizmente vêm querendo fazer crer. 

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Redação

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  1. Eduardo Fagnani: “O ‘déficit’ da Previdência é uma pós-verdade”

    Marcos de Aguiar Villas-Bôas afirma (no texto anterior) que o sistema de repartição brasileiro é Pay-As-You-Go que consiste em “um financiamento por contribuição do empregado, que servirá de base para o cálculo do benefício, e por contribuição do empregador, que deve ajudar a fechar a conta, para que se possa pagar valores decentes”.

    Mas na verdade, como mostra Eduardo Fagnani, a Constituição de 1988 prevê um modelo tripartite de financiamento do setor, segundo o qual o Estado, os empregadores e os trabalhadores contribuem em partes iguais. Só que desde 1989 não se contabiliza a parte do governo (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e a Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), que incide sobre o faturamento das empresas como fonte de receita da Previdência). Ao fazer isso, a União nega que a Previdência faça parte da Seguridade Social, em confronto com os artigos 194 e 195 da Constituição.

    Mais a frente a gente entende que esse é o modelo que ele (Marcos) considera ideal porque segundo ele: “A visão deve ser outra. A ampla maioria das receitas do Estado vêm da sociedade por meio de tributos, que podem causar uma porção de efeitos muito danosos à economia. Deste modo, é sempre a sociedade que financia a Previdência, de modo que o Estado gerencia o sistema com suas receitas e despesas.”

    Mas olha o grafico abaixo (que está no texto do Fagnani), “nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), 45% das fontes de financiamento de Seguridade Social vem do governo, por meio de tributos. O restante é proveniente de contribuições do empregador e do empregado. Na Dinamarca, a participação estatal chega a 75,6% das receitas. É um caso extremo.”

    Gráfico 1

    E os textos de Marcos vão todos nessa vibe pós-verdade ideológicos e Fagnani desconstrói tudinho.

    Eduardo Fagnani: “O ‘déficit’ da Previdência é uma pós-verdade”

    por Rodrigo Martins — publicado 13/03/2017 00p0, última modificação 13/03/2017 16p0 Organizador do estudo que os governistas tentam silenciar, o economista da Unicamp coloca em xeque as justificativas para a reforma de Temer  inShare 
    Eduardo Fagnani

    Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit) e coordenador da rede Plataforma Política Social

    Para demonstrar o engodo, a Anfip analisou o suposto déficit de 85,8 bilhões de reais apurado pelo governo em 2015. O rombo, destacam os pesquisadores da entidade, “poderia ter sido coberto com parte dos 202 bilhões arrecadados pela Cofins, dos 61 bilhões coletados pela CSLL e dos 53 bilhões arrecadados pelo PIS-Pasep. Haveria ainda outros 63 bilhões capturados da Seguridade pela Desvinculação das Receitas da União e os 157 bilhões de reais de desonerações e renúncias de receitas”. 

    “O ‘déficit’ da Previdência é uma pedalada constitucional, uma pós-verdade, para usar um termo da moda”, afirma o economista Eduardo Fagnani, professor associado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e um dos organizadores do estudo.

    “Desde 1989 não se contabiliza a parte do governo como fonte de receita da Previdência. Ao fazer isso, a União nega que a Previdência faça parte da Seguridade Social, em confronto com os artigos 194 e 195 da Constituição”, emenda o especialista.

    CartaCapital: Ano após ano, o governo anuncia um rombo maior nas contas da Previdência. A Anfip sustenta, porém, que a Seguridade Social é superavitária. O senhor poderia esclarecer essa divergência?
    Eduardo Fagnani: O ‘déficit’ da Previdência é uma pedalada constitucional, uma pós-verdade, para usar um termo da moda. É simples esclarecer isso, basta ler a Constituição. A Previdência faz parte da Seguridade Social, que também abarca a Saúde e a Assistência Social. Os constituintes adotaram um sistema clássico desde a Alemanha de Otto von Bismarck (1815-1898), o modelo tripartite de financiamento do setor, segundo o qual Estado, empregadores e trabalhadores contribuem. 

    Da onde vem o déficit? Desde 1989 não se contabiliza a parte do governo como fonte de receita da Previdência. Ao fazer isso, a União nega que a Previdência faça parte da Seguridade Social, em confronto com os artigos 194 e 195 da Constituição.

    CC: Quais são os recursos que o governo desconsidera no cálculo?
    EF: Para que a União integralizasse a sua parte no sistema tripartite, os constituintes de 1988 criaram duas fontes de receita que não existiam: a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e a Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), que incide sobre o faturamento das empresas. Em 1989, o Ministério da Fazenda passou a mão nos recursos da CSLL e do Cofins. E a Previdência passou a contabilizar apenas a contribuição do trabalhador e do empregador.

    “Na Dinamarca, a participação estatal chega a 75,6% das receitas. Se a nação escandinava fosse uma República de Bananas, eles diriam que tem um rombo de 27% do PIB”

    Em meados de 1989, o então ministro da Previdência, Jader Barbalho, admitiu o uso desses recursos para outras finalidades em entrevista à revista Veja.  O jornalista chegou a perguntar se seria ético fazer isso. “Não vou discutir ética”, respondeu Barbalho, emendando que o governo Sarney tinha vários déficits para administrar. Fernando Collor manteve essa situação. FHC, Lula e Dilma Rousseff, também. Como o governo federal pode dizer que há déficit na Previdência se desconsidera a parte da União na composição das receitas da Seguridade Social?

    CC: Como é o financiamento da Previdência nas nações desenvolvidas?
    EF: Hoje, nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), 45% das fontes de financiamento de Seguridade Social vem do governo, por meio de tributos. O restante é proveniente de contribuições do empregador e do empregado. Na Dinamarca, a participação estatal chega a 75,6% das receitas. É um caso extremo.

    Isso corresponde a 27% do PIB dinamarquês. Se a nação escandinava fosse uma República de Bananas, eles diriam que tem um rombo de 27% do PIB. Temos um modelo semelhante ao europeu. Criamos um orçamento constitucionalmente vinculado para financiar a Seguridade. E os estudos mostram que ela sempre foi superavitária.

    Gráfico 1Fonte: Eurostat. Compilação: Anfip

    CC: Qual é o cenário na América Latina?
    EF: No início dos anos 1980 (em meio às reformas liberais promovidas pelo ditador Augusto Pinochet), o Chile privatizou a Previdência, com a criação de um sistema de capitalização individual. Ou seja, você só terá direito ao que contribuir individualmente. A partir dos anos 1990, o Banco Mundial considerou essa experiência como “modelo de sustentabilidade”, e fez pressões para que todas as nações o adotassem. Somente na América Latina, 11 países fizeram isso, a exemplo do México e da Bolívia.

    O que acontece hoje no Chile? Os aposentados recebem uma miséria e boa parte dos recursos que eram administrados pelos fundos privados evaporaram na crise de 2008. Os administradores pegaram o dinheiro e aplicaram em hipotecas habitacionais nos Estados Unidos. Atualmente, a sociedade chilena está discutindo uma revisão constitucional e quer reestatizar o sistema. Faz sentido apostar no modelo chileno?

    CC: O governo Temer pretende igualar as condições dos trabalhadores rurais aos urbanos: todos, homens e mulheres, só poderão se aposentar com, no mínimo, 65 anos de idade e 25 anos de contribuição. Que impactos essa medida pode trazer no campo?
    EF: Terá um impacto brutal. Além de esperar até os 65 anos de idade, o trabalhador rural vai ter que contribuir durante 25 anos para ter direito a aposentadoria parcial. Ou 49 anos para a plena. Terá de contribuir mensalmente, sendo que o regime de safras da agricultura familiar não segue essa lógica. O grande problema da reforma é esse. Dizer que homem e mulher, do campo ou da cidade, trabalhador do INSS e do setor público, não são diferentes. Para grande parcela da população, a reforma significa trabalhar até o fim da vida, morrer sem se aposentar. Estamos rasgando o artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que diz que toda pessoa tem direito à proteção na velhice.

    Previdência RuralO agricultor terá de contribuir mensalmente, mas a safra não segue essa lógica (Hudson Corrêa/FolhaPress)

    Com a crise econômica e a flexibilização da legislação trabalhista, a informalidade tende a aumentar e um número maior de cidadãos deixará de contribuir para a Seguridade. Os jovens que estão entrando no mercado de trabalho percebem que, para ter aposentaria integral aos 65 anos, precisam entrar no mercado de trabalho aos 16 e contribuir ininterruptamente durante 49 anos.

    Então esse jovem pensa: se eu não vou usar, para que pagar? Os trabalhadores com renda mais alta devem migrar para a previdência privada. Essas perdas representarão uma queda de receita brutal. O objetivo parece ser este: quebrar a previdência pública.

    “Em 70% das cidades, os repasses previdenciários são superiores aos do Fundo de Participação Municipal”

    CC: A redução dos repasses previdenciários afetará as economias locais?
    EF: Sem dúvida, a Previdência tem um papel extraordinário nas economias locais. Em 70% das cidades brasileiras, os repasses previdenciários são superiores aos do Fundo de Participação Municipal. Os benefícios movimentam a economia regional. A aposentadoria rural, por sua vez, fixa o homem no campo. Nos últimos anos, as migrações campo-cidade caíram drasticamente. Com a derrocada das economias locais, o governo vai incentivar o êxodo rural, o inchaço dos grandes centros urbanos.

    CC: O governo Temer justifica que a expectativa de vida do brasileiro aumentou muito nos últimos tempos e cita o exemplo dos países da OCDE, quase todos com uma idade mínima de 65 anos para a aposentadoria.
    EF: Esse raciocínio ignora as desigualdades sociais e regionais. A expectativa de vida no Brasil é de 75 anos. No entanto, em mais da metade das unidades da Federação, ela é menor do que isso. No município de São Paulo, a esperança de vida ao nascer é de 76 anos. Nos bairros ricos, chega a 79. Em Cidade Tiradentes, é menos de 54 anos. Em uma mesma cidade você tem essa heterogeneidade. Imagine eu comparar o Piauí com Santa Catarina, são dois mundos radicalmente distintos.

    Mapa de São Paulo novo

    Querem inspirar a reforma brasileira nos países da OCDE? Bacana! Em primeiro lugar, o que chamamos de idade mínima é, para os países do bloco, apenas uma idade de referência. Para você se aposentar integralmente, precisa de 65 anos e 35 de contribuição em média, mas pode ter benefício parcial com 60 anos de idade, por exemplo.

    Segundo ponto: Dos 5 mil e 500 municípios brasileiros, somente 0,8% tem IDH semelhante ao dos países da OCDE. Cerca de dois terços das cidades têm IDH médio, baixo e muito baixo. E o médio já é IDH de país africano. A expectativa de vida dessas nações desenvolvidas é muito maior. Se me permite usar uma metáfora futebolística, em todos os indicadores socioeconômicos e demográficos, os países da OCDE seriam os times da série A do campeonato, enquanto o Brasil está na zona de rebaixamento da série D. As condições sociais são radicalmente distintas.

    “Hoje, cerca de 80% dos idosos têm direito a pelo menos um salário mínimo. Dentro de 30 anos, esse porcentual pode cair pela metade”

    CC: Se a reforma emplacar, que cenário o senhor vislumbra no futuro?
    EF: Essa é a questão de fundo que a gente coloca. O debate da previdência deveria ter em perspectiva em uma ótica mais ampla: Que país temos hoje e qual gostaríamos de ter? Hoje temos um país extremamente desigual. Pessoalmente, eu gostaria que tivéssemos um projeto nacional capaz não apenas de redistribuir renda, mas também garantir igualdade de gênero, racial, de acesso a serviços, com justiça tributária. Os reformistas projetam, porém, um país de desprotegidos para as próximas décadas.

    Hoje, cerca de 80% dos idosos têm direito a pelo menos um salário mínimo. Dentro de 30 anos, esse porcentual pode cair para menos da metade, que é o padrão mexicano, o padrão chileno. Veremos muitos idosos na rua, pedindo esmola. Sem falar nos impactos indiretos sobre as famílias. Os adolescentes vão trabalhar ao invés de estudar. Não vai ter comida dentro de casa, então eles vão trabalhar. E, se não conseguir emprego, podem ser seduzidos pelo crime. É esse o Brasil que queremos?

    Para ler o texto completo do livro “Previdência: reformar para excluir?”, clique aqui. O documento síntese do estudo da Anfip está disponível neste link.

    https://www.cartacapital.com.br/politica/eduardo-fagnani-o-deficit-da-previdencia-e-uma-pos-verdade

     

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