Miscelânea de Santa Bárbara e tudo aquilo que o trovão avisa, por Mariana Nassif

Santa Bárbara e Oyá sincretizam, no Brasil, não só pela forma do raio, mas também pela peregrinação pautada por tormentas machistas

Acordei emotiva. Calendário feminino avisa que é tempo de sensibilidade, a emocional, em Sagitário, mais ainda. 04 de Dezembro, lembrei. O raio de Iansã sou eu / Cegando o aço das armas de quem guerreia / E o vento de Iansã também sou eu / E Santa Bárbara é santa que me clareia – bença, Bethânia, quem mais e mais lindo canta a melhor amiga de mamãe sereia.

Recordei do lançamento musical da Ananda Barreto, que estreia hoje nas plataformas digitais, e fui conferir antes mesmo de me levantar da cama. Uma canção densa, com nuances rítmicas, poderosa e profunda como o aviso antecipado da presença, “Me encontro nos trovões” comove, em muito, pela conexão entre o real e aquilo que se sonha, evocando, ainda, uma das mais belas premissas exuísticas, o vazio como ponto de partida, ainda mais quando repartida. Ainda tem aguerê, que me perdoem os músicos profissionais se não for isso, mas aqui a pessoa é criativa.

Ananda Barreto e o lançamento “Me encontro nos trovões”

O entardecer da alma, a maturidade da mulher, as camadas que oprimem e acabam por fazer da arte expressão de resistência, por mais que a gente se sinta exaurida. Iansã, que recebe o nome de Xangô, o Rei da Justiça e da Vida, simboliza a independência feminina. As batalhas travadas pela libertação de amarras consolidadas por eternos momentos. Papéis que se confundem para quem ainda anda confuso sobre os novos ventos: a mãe festeira guerreira que chora e ri e dança – mais ainda, no mal tempo. Confusão é palavra-chave pra quem anda com a senhora dos raios, mas vamos dar uma olhada nisso por dentro: o vácuo, no centro do furacão, é espaço de privilégio-torre de comando. Com sopro capaz de determinar o movimento de tudo, selecionamos, um a um, os ingredientes rodopiantes do novo tabuleiro. As filhas de Oyá anotem num papel, deixem sempre acessível: o desespero é um véu perigoso.

Santa Bárbara e Oyá sincretizam, no Brasil, não só pela forma do raio, mas também pela peregrinação pautada por tormentas machistas, masculinas. Bárbara, antes de ser santa, conta a história, era uma belíssima mulher que foi trancada numa torre, condenada à morte pelo pai, contrário ao seu devir religioso e, para a época, progressista. Um dos mitos de Iansã dá conta de despertar, por sua beleza, o desejo do pai, Oxalá, responsável por sua fuga e transformação em búfalo, o paradoxal companheiro da figura borboleta. Na história católica, o pai recebe um raio na cabeça e morre tão logo mata a filha, via providência divina. No Candomblé, aos olhos do meu pequeno entendimento, a ruptura opera vigor e força potência pós-traumática, tempestiva – para ela, que segue alive and kicking.

[Escrevi e me incomodei deveras, em muito pelas questões que permeiam a atividade do sincretismo: é ação racista? Podemos acreditar nas histórias de ninar ou consultar a história não escrita, a que dá conta da proibição, após o sequestro das pessoas escravizadas, de seguirem seus cultos originários, suas linhas douradas, os fios condutores da vida. Fiquei confusa, “vou aprender para ensinar meus camaradas”, volto sim, em breve, no assunto, não perca!]

Particularmente, as elaborações acerca da trajetória que assinalo na frisa da vida como A Libertação seguem surtindo efeito, e como de católica não tenho nada e pra ser apaixonada por Oyá não preciso de dia, segue o texto para apresentar a canção de Ananda, segue o resgate de escrever neste espaço, segue a reflexão registrada acima.

Sigo também agradecida pelo pulsar, filtrado e naturalmente escorrido – de entranha, em lágrima, palavra e água salgada, bem aproveitadas, carregadas de emoções e cada vez mais límpidas. Agradecida pelo cargo de Mawo, o homem do segredo, que meu Pai Marcelo recebeu de Oxum na festa da casa de seu pai, o Babá Guilherme. Agradecida pela vida da minha vida, a Clara, que lidera o próprio bloco e brinca, toda linda. Agradecida pelas reticências recuperadas após tanto travessão na hora da partida. Agradecida pelo trabalho, a labuta de um ofício que me foi dado e vem sendo lapidado, reordenado e sintetiza. Agradecida pelas liberdades e responsabilidades adquiridas. Pelas chances que vieram do bolor, do desgosto e da presença de gente retrógrada e enxerida. Agradecida pelo protagonismo que o invisível trouxe à tona – e eu que tanto e sempre esperei por isso, recordo emocionada do barulho assustador do trovão de quatro anos atrás, quando meus olhos não enxergavam o poder do raio ainda.

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Ananda Barreto anuncia aos quatros ventos a sua mais nova canção Me Encontro nos Trovões 
Segundo single do projeto autoral Olho de Dentro chega revelando o lado mais dramático e visceral da artista

Ananda Barreto

Após lançamento da dobradinha ‘single + clipe’ da música Sereu em Março deste ano, a artista apresenta ao público seu mais novo single, Me Encontro nos Trovões, que estará disponível em todas as plataformas de streaming a partir do dia 04 de Dezembro. O lançamento marca mais um passo da artista que vem ganhando destaque na carreira, notável pelo seu estilo autêntico, ousado e performático, carregando em sua trajetória a fusão da dramaticidade e expressão do teatro com os sons dos quais foi influenciada: os ritmos populares do Nordeste, o samba de parêia, o coco, o brega, o jazz, o pop, o rock, a MPB e o flamenco (fruto dos quatro anos da sua passagem por Andaluzia, Espanha).

Em Me Encontro nos Trovões, a artista ressalta a sonoridade marcante das cordas e da percussão africana, muito presente nos ritmos populares brasileiros. Com uma narrativa poética e profunda, revela seu encontro de viver os sonhos, versos o medo que ele pode representar.

Gravada no Estúdio Flutuante em Ubatuba/SP, a música tem arranjos e produção musical de Tomás Bastos (Trupe Chá de Boldo) e foi mixada e masterizada pelo engenheiro de som Renato Medeiros.

“nesse som eu conto um pouco do meu processo de mudança para o estado de são paulo, onde existiam muitas dúvidas, medos e naquele momento senti que estava sendo guiada por uma força maior que me dizia: apenas caminhe sem pensar em como vai ser”.

O resultado integra e antecipa o já confirmado disco ‘Olho de Dentro’, projeto autoral e independente de Ananda. Parte do material foi apresentado em 6 shows com transmissão online ao vivo (e ainda disponíveis no canal da artista), por meio do PROAC em 2021, também em shows presenciais pela capital em 2022 e já conta com mais 1 single previsto para os próximos meses.

Acompanhada por Tomás Bastos (violão), Marilua Azevedo (percussão), Leandro Lisi (bateria), Fuca (baixo), Rafael Gandolfo (violoncelo) e participação especial de Ieda Terra (coro), que também participou da criação dos arranjos de coro, Ananda se apresenta de forma múltipla, é aquilo que a arte nos convoca, vida/arte/vida. Radicada em São Paulo, segue em carreira solo desde 2014. Teve suas experiências artísticas iniciadas no âmbito familiar, uma vez que este núcleo se compõe de cantores, compositores, atores, bonequeiros e artesãos. Sobe aos palcos como cantora sob incentivo do seu falecido tio, o cantor e consagrado compositor Ismar Barreto, acompanhando-o como backing vocal. Por 16 anos foi integrante do Grupo de Teatro de Bonecos Mamulengo de Cheiroso/SE, onde aprendeu a atuar, cantar, improvisar, se permitir expor ao ridículo, entrar em contato com a própria sombra, brincar e modelar criaturas com vida própria.

Youtube
www.youtube.com/c/anandabarreto
Instagram
https://www.instagram.com/misteriosdananda/

Música
Voz/coro/letra/música: Ananda Barreto
Participação especial coro/arranjo coro: Ieda Terra
Violão/produção musical: Tomás Bastos
Percussão: Marilua Azevedo 
Baixo: Fuca
Bateria: Leandro Lisi
Violoncelo: Rafael Gandolfo
Gravação: Estúdio Flutuante
Mixagem/Masterização: Renato Medeiros
Produção Executiva: Rodrigo Caldeira

Capa
Concepção artística foto/Designer gráfico: Ananda Barreto
Foto: Janaína Vasconcelos 
Dir. arte foto: Bruna Brandão 
Cabelo foto: Pedro Hugo
Make foto: Débora Araújo
Apoio foto: Dalmo Macedo

Mariana A. Nassif

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