O velho testamento no Congresso Nacional

Jornal GGN – A configuração atual do Legislativo brasileiro projeta uma sombra sobre a laicidade do Estado. A Câmara dos Deputados está particularmente determinada a não votar projetos que vão de encontro aos seus dogmas religiosos. O presidente da Casa, deputado Eduardo Cunha, já disse que a legalização do aborto só iria a votação sobre o seu cadáver. A criminalização da homofobia segue a mesma lógica, depois de oito anos sem avançar, o projeto foi arquivado no Senado Federal.

Mas o exemplo mais emblemático atualmente ainda é o da redução da maioridade penal. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171, de 1993, não faz uma referência sequer a dados estatísticos, não se embasa em nenhuma pesquisa científica, mas não deixa de citar a Bíblia Sagrada, Velho Testamento. “O profeta Ezequiel nos dá a perfeita dimensão do que seja a responsabilidade pessoal: não se cogita nem sequer de idade: ‘A alma que pecar, essa morrerá’”, diz o texto da PEC.

Com uma justificativa como essa, deve ser questão de tempo até que se tente aprovar a pena capital.

O assunto foi tema de discussão no 58º Fórum de Debates Brasilianas.org. Para Olaya Hanashiro, coordenadora de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a PEC representa uma estranha inversão de valores. “Esses jovens não estão matando, eles estão morrendo”.

Ela fez essa afirmação com base em dados. De acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes, dos 55 mil assassinatos cometidos no Brasil por ano, 91,5% das vítimas são homens, 53% jovens entre 15 e 29 anos, 67,9% pretos e pardos. “A gente sabe quem está morrendo e onde”, disse Olaya.

“No Brasil, jovens negros, de 12 a 29 anos, correm 2,58 vezes mais riscos de morrer assassinados do que jovens brancos. No Nordeste, onde os riscos são muito superiores à média nacional, em alguns estados como Paraíba e Pernambuco, o risco de um jovem negro morrer assassinado chega a ser mais de 11 vezes superior ao de um jovem branco”, afirmou.

https://www.youtube.com/watch?v=MilImTxxTv0&list=PLhevdk0TXGF6VAPKNenyrzidL6qlLBT7b&index=6 height:394]

O deputado Paulo Pimenta, atual presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, falou sobre a dificuldade de conduzir esse tipo de discussão em Brasília. “Hoje o tema segurança pública e direitos humanos é muito difícil, é um dos mais difíceis de se tratar na Câmara dos Deputados”, disse.

Devido ao apelo popular, a PEC 171 tem grande adesão de parlamentares. Enquanto isso outras iniciativas importantes continuam a ser ignoradas. “A Frente Parlamentar para a Redução da Maioridade Penal foi instalada com a participação de 213 deputados. E até agora não conseguimos avançar o projeto para acabar com os autos de resistência”.

O projeto citado pelo deputado (PL 4471/12) cria regras rigorosas para a apuração de mortes e lesões corporais decorrentes de ação da polícia. Na prática, acaba com a possibilidade de o agente do Estado justificar um homicídio como um auto de resistência, pois obriga que seja instaurado inquérito para apurar o fato.

Para o deputado Paulo Pimenta, é ilusório pensar que é possível resolver o problema da segurança pública apenas com repressão.

“Eu reconheço os resultados das UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora]. No primeiro momento elas tiveram um resultado considerável na redução do número de homicídios. Fazendo um comparativo hipotético com a realidade anterior, 87 mil pessoas deixaram de morrer”, disse.

“Mas no Morro do Alemão não há nenhuma área social, nenhum espaço público, que não esteja ocupado”, continuou. “Eu cheguei lá, como presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, e queria falar com um coordenador, com alguém do Estado. Só tem policiais, não tem nenhum agente do Estado que não seja policial. Um policial até falou pra mim ‘Aqui o Estado sou eu’”.

Voltando ao debate sobre a redução da maioridade penal, o deputado disse estar convencido de que se trata de matéria inconstitucional. “É cláusula pétrea, não poderia ter sido admitida [pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara]. Mas foi. Temos uma longa batalha pela frente”.

Ele diz que há outras medidas mais eficientes, se simplesmente se fizer cumprir o que está no Estatuto da Criança e do Adolescente. “81% dos jovens não têm acompanhamento depois de cumprir medida socioeducativa”.

Para o deputado, esse é um debate moralista e contaminado. E o conservadorismo está ditando as regras. “Há uma disputa dos parlamentares para ver quem consegue apresentar o pior projeto. Por exemplo, o projeto, que é um escárnio, é um deboche, do presidente da Câmara [deputado Eduardo Cunha] do orgulho hétero. E há uma pressão para que ele seja votado. Como se houvesse algum caso de alguém ser agredido ou assassinado por ser hétero”.

[video:https://www.youtube.com/watch?v=3_niFuu1WKE&index=4&list=PLhevdk0TXGF6VAPKNenyrzidL6qlLBT7b height:394

A situação chega ao cúmulo de a Câmara não autorizar ausências de deputados, mesmo para participar de eventos relacionados às suas atividades parlamentares. Com um Legislativo composto por “Bancada da Bala” e “Bancada Evangélica”, a discussão de temas progressistas está em sursis. O desafio atual não é tanto promover avanços quanto impedir atrasos.

Redação

6 Comentários

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  1. O governo que não ajudou a

    O governo que não ajudou a ampliar a noção de estado, cidadania entre os brasileiros agora reclama do resultado colhido. 

     

    Certos políticos deveriam ficar calados diante de determinadas questões renegadas por eles.

     

    Até as pedras sabem que o PT no poder optou pela via de ampliação do número de consumidores. E conseguiu. O que até louvável, diante do quadro lastimável da nossa segregação sócio-econômica.

     

    No entanto, querer fingir que o estado avançado da influência de neopentecostais no governo, política foi um acontecimento para além da falta de ação do governo, é pedir licença para nos chamar de burros.

     

    É o mesmo que reclamar do estado de indigência jornalística dos grupos privados de comunicação, fingindo que a covardia do governo em não regulamentar o que manda a Constituição sobre o tema não tenha nada a ver com o assunto.

  2. Quem sabe algum dia essa

    Quem sabe algum dia essa massa de manobra que elege esses delinquentes começe a perceber que o negócio deles vai muito além da palavra do Senhor

  3. Não Adianta Nada Mesmo!

    Primeiramente deve-se lembrar que o congresso assim como a Presidente também foi eleito pelo povo, que é sempre tido como “sabedor” do que faz, quando convém. E de que o executivo se tornou refém deste congresso, todos sabemos o porque das opções e escolhas erradas.

    Continuando, se não conseguem prender/punir e/ou recuperar os adultos porque conseguiriam fazê-lo com os menores? Inútil baixar a maioridade penal, indiferente eu diria. Estes jovens que estão morrendo, é sempre bom lembrar, são mortos por outros jovens – literalmente estão se matando – ou pela polícia, ou pelas milícias, todos mais ou menos oriundos do mesmo “extrato social”, problema social para um = problema social para todos, para quem mata e para quem morre. Situação gravíssima porque sabemos (a esquerda ainda não sabe) que a pobreza (assim como a “menoridade”) não é “causa” de crime, o crime acontece em todas as classes sociais (muda o tipo) quase na mesma proporção, é trágico e democraticamente distribuído no Brasil. A desigualdade tem influência. Erra o congresso, erram os “progressistas”, erro de diagnóstico.

    Falam muito que a população carcerária é de negros e pobres, ora, esta é a população brasileira, estatística que se repete nas prisões, estranho é que não tenhamos esta mesma proporção de negros nas escolas, no congresso, na presidência, nos ministérios, na TV, entre empresários, profissionais liberais, jornalistas, modelos, enfim, já deu para entender, pensa-se ao contrário por aqui, e nada se resolve. Erro de diagnóstico 2.

    Era assim no regime militar, continua assim, veio a democracia e continua, veio a Constituinte, continua, a esquerda esta no poder, nada mudou, não se esclarece crime algum (não, eu não vou falar), não há presídios suficientes (nem decentes), não há punição adequada, não há recuperação (não acredito nisso), leis adequadas (e brasileiro detesta lei, mal feita então…), e mais um monte de coisas que todos sabemos. Tudo isso é munição para o governo (qualquer) e o congresso sempre optarem pelas vias mais fáceis – e populistas – como esta da redução da maioridade. Em tempo, não vejo razão alguma para heterossexuais ou homossexuais terem algum orgulho do seu gênero, ou opção de desejo, não sei qual é o termo politicamente correto da moda. Apenas deveríamos nos orgulhar da pessoa/cidadão que somos.

  4. Não há nada de Velho

    Não há nada de Velho Testamento na política destes aproveitadores.

    Não matarás (Lei Mosaica), eles defendem a pena de morte e aplaudem PMs que executam suspeitos.

    Não adorarás ao bezerro de ouro, mas apenas ao teu Deus (Lei Mosaica), eles colocam bodes na sala da Presidenta para seguir enriquecendo com propinas douradas pagas por aqueles que estão interessados nas propostas cretinas que eles apresentam.

    Não roubarás (Lei Mosaica), muitos deles são réus em processos por improbidade administrativa, por terem roubado dinheiro público.

     

    Não sou religioso, não defendo o Velho Testamento, não acredito na virtude de uma teocracia. Mas também não acredito que seja justo chamar de “religiosos” estes pilantras e aproveitadores que esfregam a Bíblia na cara dos outros enquanto limpam a bundas sujas com as páginas do referido livro.

    1. Quanto ao seu comentário,

      Quanto ao seu comentário, nenhum reparo, a não ser que esses “religiosos” precisam agradar os seus currais eleitorais.

  5. O povo está descontente

    Desse novo congresso, composto por gente para lá de estranha e de lisura para lá de duvidosa, só pode ser tirada uma única conclusão: quem o elegeu está insatisfeito com o governo e quer alternativas.

    Um dos pontos que mais incomoda é mesmo a questão da segurança pública. É óbvio que baixar a maioridade penal não será nenhuma solução mágica. Mas quem apoia isso está de saco cheio com a bandidagem. O sucesso de filmes como Tropa de Elite já vinha refletindo isso. Os esquerdistas têm o vício da abordagem política, e fazem contorcionismos retóricos para enxergar os atores da luta de classes no fenômeno da criminalidade: assim, afirmam que a repressão ao crime é a repressão da elite branca contra trabalhadores pobres e negros, etc. Mas como bem destacou o comentarista aí, não há nada de anormal que a população carcerária seja composta em sua maioria por pobres e negros, pois essa é a composição da maioria do povo brasileiro, ora! O que não reflete o perfil econômico e étnico da maioria do povo é o congresso, os ministérios, a TV, os empresários, os profissionais liberais, etc.

    Abandonada pelos trabalhadores, que não deram apoio à luta armada nos anos setenta, a esquerda vem desde então procurado angariar seu novo público entre os marginais, aqueles a quem Marx denominava o lumpenproletariado e afirmava, com razão, serem imprestáveis como revolucionários. É um erro enorme julgar que trabalhadores e marginais estão irmanados porque ambos são pobres. Com essa mania de babar ovo de bandido, a esquerda pode acabar assistindo o povo eleger por ampla margem o primeiro fascistazinho que chegar aí prometendo baixar o pau na bandidagem.

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