Slogans vazios e práticas autoritárias: precisamos debater a questão da polícia no Brasil, por Felipe da Silva Freitas

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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do Justificando

Slogans vazios e práticas autoritárias: precisamos debater a questão da polícia no Brasil

por Felipe da Silva Freitas

O governador do Espírito Santo, Paulo Hartung, em entrevistas na TV e nos jornais tem defendido mudanças na legislação e na relação entre governos e corporações policiais. O governador endureceu. Afirmou que a greve dos policiais é perversa; que colocou a população em risco em um momento delicado; que exigia ganhos salariais exorbitantes e que era um movimento ilegal, contrário à Constituição.

Entretanto, a dureza das palavras do governador e a retórica da reforma das polícias parece completamente desacompanhada de conhecimento real do problema e de efetiva vontade política de liderar a justa, urgente e necessária mudança na segurança pública.

As palavras fortes não combinam com a prática histórica do governador Paulo Hartung – e nem com a da maioria dos governadores brasileiros. Em matéria de segurança pública parece haver uma vala comum na qual as ideologias se encontram atônitas ante as várias manifestações de violência urbana. Colocar a população contra (ou a favor) a greve neste momento apenas acirra ainda mais e oculta os problemas reais relativos à relação entre polícias e governos no Brasil.  Em síntese, o governador adota uma tese superficial e genérica, pois desconhece as consequências das palavras que profere.

As “frases de efeito” não tem a força necessária para apontar o óbvio: os policiais têm demandas trabalhistas e as apresentarão seja qual for o modelo jurídico que adotemos; o modelo de polícia no Brasil é violento – tanto para policiais quanto para o conjunto da população; a polícia tem se dedicado historicamente a – pondo em risco a pele dos policiais de baixa patente – eliminar da cena pública pessoas negras, pessoas LGBTT e demais grupos sociais historicamente excluídos no Brasil.

Não que se queira uma visão simplista que deixe de apontar que: as polícias são plurais, que há nas polícias fortes interesses políticos (como em toda organização) e que as polícias são uma força secularmente vinculada aos poderes constituídos, e, portanto, uma força ligada à manutenção de esquemas de poder e dominação. É preciso não ter uma leitura ingênua sobre estes fatos.

O que se quer acentuar é que qualquer saída eficaz para a permanente “crise da segurança pública no Brasil” passa por desmilitarizar e unificar a polícia, refundar a estrutura de organização, planejamento e financiamento da área e rever os conceitos básicos com os quais se tem operado neste tema. Sem compromisso real com a mudança de paradigmas e sem a tranquilidade necessária para reconhecer erros e fazer autocríticas qualquer discurso será rapidamente cooptado para a velha e odiosa demagogia eleitoreira que – de todos os lados – especializou-se em lucrar com o caos, faturar com a miséria e regozijar-se com o sangue de corpos negros que tombam.

Há erros de parte a parte – dos manifestantes e do governo do estado. Contudo, o epicentro da crise está na insensibilidade social que tem tratado o tema da segurança como questão menor na agenda das cidades.

É a indiferença em relação às pilhas de cadáveres negros que se amontoam nas ruas que cria o clima, o cenário e as condições para que espetáculos de horror como os do Espírito Santo ocorram e, mesmo assim, não tenham força para mudar os termos do debate. É a indiferença ante os corpos que tombam diariamente – muitas vezes vítimas da própria violência policial – que constrói o lastro para que não ocorra um debate sério sobre segurança pública no Brasil e que isso siga sendo um “não problema social”.

Se não nos deslocarmos para olhar efetivamente para o extermínio em curso seguiremos nos reunindo de massacre em massacre para repetir a mesma cantilena de falas vazias e cheias de boas intenções, das quais, nos ensina o ditado popular, o inferno está cheio.

Felipe da Silva Freitas, doutorando e mestre em direito pela Universidade de Brasília.

 
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

1 Comentário

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  1. Não é a formação do policial a errada

    Uma coisa posso opinar, depois de trabalhar vários anos como corregedor externo na área policial: não é a formação policial que está errada. É o ranço da atividade policial que gera as polícias que temos hoje.

    A formação dos policiais, no Brasil inteiro e incluindo os policiais militares, que são o lado da atividade policial que roça mais diretamente e frequentemente com a população, é boa, principalmente na parte teórica. Eles tem aulas de direito penal e processual penal, de direitos humanos, de psicologia, treinamentos de abordagem que seguem técnicas e modelos consagrados internacionalmente.

    Se há uma área que deixa a desejar é a parte prática, técnica, como aulas de tiro e direção de veículos. Por custar muito mais caro que o treinamento teórico, às vezes essa parte é sacrificada, e o policial chega às ruas tendo treinado menos do que seria desejável nessa parte, mas ainda assim não chega a ser algo comprometedor da atividade.

    O problema é o ranço, a cultura já entranhada nas corporações. Ao chegar pra trabalhar com os veteranos, o novato recebe logo o aviso: esqueça o que aprendeu na academia, aqui fora é uma selva (ainda que não seja), e você precisa agir como nós, se quiser ter cobertura dos colegas. Quem não aceita o novo pacto se expõe a riscos altíssimos, como ficar sem proteção dos parceiros durante uma ação ou ser vítima de uma armação. Tive um colega delegado que foi traído por toda a equipe, que recebeu propina pra liberar um detido e envolveu o nome dele nas negociações, sem que ele soubesse. Para não continuar sendo traído, sentindo sua vida em risco e sem conseguir remoção do local onde estava, só restou pedir exoneração do cargo.

    Esse ranço, essa cultura entranhada, declara que qualquer um que discorde de qualquer aspecto do trabalho policial na prática é bandido ou amigo de bandido – ou pior, é dos “direitos humanos”, que recebem das polícias tratamento ainda mais sumário do que o dedicado a certos criminosos. Todo policial que criticar o sistema é visto com desconfiança, isso se não for logo carimbado como “traidor”. E quem não é policial é sumariamente ignorado, sob o argumento de que “não conhece a realidade da polícia”.

    Nesse terreno de descumprimento constante da lei e vedação hostil de qualquer crítica, florescem as práticas ilegais de toda espécie: corrupção, violência desnecessária, abusos em abordagens, acobertamento e/ou associação com criminosos que pagam “caixinha”, formação de milícias e esquadrões da morte, etc…

    O pior é que essa cultura ganha o beneplácito dos superiores, por razões práticas: se não a endossarem não terão apoio pra ser ou continuar sendo dirigentes das corporações. E as corregedorias, a quem caberia coibir os abusos e corrigir os rumos, por óbvio entram na mesma dança.

    Os governantes fecham os olhos e fingem que está tudo bem, pois enfrentar tudo isso exige muita energia e um espírito de mudança ainda inéditos dentre os responsáveis – principalmente os governadores.

    Da forma como está entranhada essa cultura policial nas corporações, creio que só um movimento forte, unificado e de cima pra baixo (colocando dirigentes preparados e dispostos a mudar esse quadro) poderia resolver. Mas isso envolve muita coisa, a começar pela disposição dos governantes de comprar a briga com as corporações e com a (expressiva) parcela da população que aprova o estado atual das coisas, achando que uma polícia truculenta, violenta e matadora é a melhor proteção de que podem dispor.

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