Populismo penal puxa o gatilho dos assassinatos estatais, por Marcelo Semer

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Marcelo Semer

No Justificando


 

O fuzilamento do brasileiro Marco Archer na Indonésia despertou duas discussões razoavelmente adormecidas: a virulência da guerra às drogas e a legitimidade da pena de morte. Mas há uma terceira questão pouco iluminada no debate: é o populismo penal quem puxa o gatilho do assassinato estatal.

Com uma legislação mais liberal, embora ainda draconiana no que tange aos entorpecentes, o Brasil pode criticar a ilegitimidade da pena de morte e a monstruosidade de sua aplicação em casos como este. Mas estamos pouco confortáveis no embate civilização x barbárie, quando se cotejam as mortes que as guerras às drogas efetivamente causam no país, especialmente na periferia, objeto preferencial das polícias e dos policiamentos –basta ver que na mesma semana do fuzilamento um garoto de apenas onze anos foi morto no Rio de Janeiro, por policiais militares.

A pena de morte é bárbara. Sua perpetuação é uma chaga civilizatória. Sua banalização, uma insanidade. Mas a negativa da clemência –e, de resto, ao que se lê, a própria reintrodução das execuções- só aumenta a popularidade do presidente indonésio, que já se elegeu com esteio no populismo penal. Nem disso podemos nos vangloriar: essa ânsia de criar tipos e aumentar penas, endurecer regimes e condicionar cada vez mais a liberdade, também está demasiadamente presente no nosso cotidiano político. Seja de governos seja de oposições.

Não à toa já beiramos a medalha de bronze na população carcerária mundial e continuamos a fazê-la crescer acreditando no recorrente e improvável slogan do país da impunidade.

Prendemos muito e prendemos rápido -cerca da metade do sistema carcerário brasileiro cumpre penas antes da condenação. Pesquisa efetuada pelo IPEA, divulgada em novembro último, estima em 37,7% os presos que, após o julgamento, são liberados (seja porque absolvidos seja porque condenados a penas restritivas). Prisões antecipadas que se mostram abusivas, portanto.

Prendemos mal, pois de forma altamente seletiva, porque seletivas são as penas cominadas aos crimes, as abordagens policiais e as próprias disputas em juízo. E, como se não bastasse, prendemos de forma bárbara, porque em depósitos humanos que em nada se compatibilizam com as normas de civilidade que os nossos próprios códigos impõem. Sinal de que o respeito à lei e à ordem também se aplicam de forma seletiva.

E, se de fato, não matamos legalmente, o contingente de homicídios policiais aumenta a cada ano para dar conta desta ausência. Se disser que a vítima era traficante, parente de traficante, amigo de traficante ou tinha antecedentes criminais, então, a execução praticamente assume ares de legalidade.

Mas não bastasse tudo isso o que já fazemos, o populismo anseia por um direito penal ainda maior – leia-se, nas entrelinhas, mais cruel, mais violento e mais assassino.

O efeito na redução da criminalidade de todo esse barulho é nenhum. Ao revés, as penas mais duras da Lei dos Crimes Hediondos apenas vitaminaram o hiper-encarceramento que contribuiu de forma decisiva para a consolidação das facções criminosas. Com isso, consagramos o paradoxo: quanto mais prendemos, mais crimes aconteceram.

E por incrível que pareça, as propostas políticas continuam quase todas destinadas a prender mais, seja uma lei de drogas ainda severa, seja um projeto de Código Penal que cria novos tipos e se ancora no aumento do tempo de execução em regime fechado. Se a reincidência aumenta junto pouco interessa, pois o símbolo do vigor penal é mais importante do que seu efeito.

Enfim, o direito penal parece ser mesmo o único produto que quanto mais falha, mais ganha prestígio.

Nada gratuito, todavia.

A ampla divulgação dos casos criminais, a exploração sensacionalista de seus detalhes, a criação de mitos de facínoras, a inversão grosseiras das estatísticas (o caso dos presos em saída temporária é um típico exemplo, pois não obstante mais de 95% retornem ao presídio sem maiores problemas, um único crime cometido é o que basta para as propostas de sua extinção), tudo isso incrementa o medo e legitima os exércitos da salvação, seguranças públicas ou privadas que vão se construindo como guardiães da pátria.

O medo é calculadamente estimulado, porque dele depende o sucesso do rigorismo. Como bem diz Giane Ambrósio Álvares, nossa colega de coluna, o medo é o ópio do povo. Muitos se alimentam dele, afinal, o endurecimento penal é, hoje, o populismo da direita.

Mas essa construção do Estado policial também não vem à toa e não é resultado de meros instintos primitivos. O antigo liberalismo pode ter imposto limites ao absolutismo penal, porque a burguesia dependia de liberdade para nascer. Mas o neoliberalismo não se importa com isso agora. No atual momento, não há classe a emergir entre as grandes corporações e sim o interesse de que os vulneráveis jamais se emancipem.

Enquanto o Estado é apropriado pelo mercado, diminuem fortemente os amortecedores sociais, e aumenta a rigidez penal.

O Estado policial é indispensável para conviver com o desmantelamento do Estado social, com a globalização que rompe fronteiras para o capital e cria muros para o cidadão – como bem escreveu Patrick Mariano neste espaço (Qual globalização?[1]).

Piketty mostra, na obra-prima o Capital no Século XXI, como as privatizações fizeram explodir as rendas privadas e como com o aumento exponencial do capital, combinado com o baixo crescimento das economias, o aumento da desigualdade passa a ser uma constante. Recente pesquisa da ONG inglesa Oxfam estima que o 1% mais rico da população deve sobrepor-se aos outros 99% até o ano de 2016, e menos de cem pessoas já detém mais riqueza do que metade do globo.

Nós podemos agir tentando reduzir a desigualdade, tributando grandes fortunas, como propõe Piketty, e restaurando Estados sociais, ou, de outro lado, abrindo as comportas para o mercado e mantendo essa expansão frenética do direito penal de modo a acomodar dentro dele os expelidos do processo.

São opções políticas que devem estar claras tanto aos eleitores quanto aos administradores, que vez por outra se confundem com seus próprios propósitos.

Por isso mesmo, a advertência de Zaffaroni deveria ser melhor ouvida em Brasília:

“O maior risco em nossa região é que os próprios políticos comprometidos com a restauração dos demolidos estados de bem-estar, fazendo concessões, acabem por serrar o galho em que estão sentados, pois a criminologia midiática é parte da tarefa de neutralização de qualquer tentativa de incorporação de novos estratos sociais”[2].

Marcelo Semer é Juiz de Direito em SP e membro da Associação Juízes para Democracia. Junto a Rubens Casara, Márcio Sotelo Felipe, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.

[1] http://justificando.com/2015/01/10/qual-globalizacao/
[2] La cuestión criminal. Buenos Aires. Planeta, 4ª edição, 2012, p. 243

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

2 Comentários

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  1. ótimo artigo, principalmente

    ótimo artigo, principalmente o final:

    a criminologia midiática é parte da neutralização

    de qualquer tentativa de incorporação de novos estatos sociais.

     

  2. O problema, caro juiz, é o

    O problema, caro juiz, é o mesmo de sempre: o brasileiro executado de conformidade com as leis do país onde praticado o crime não era alguém da periferia das nossas cidades, nem marginal entre os seus. E, afinal, ele só iria comercializar a droga para financiar a sua estada por lá. Então, para o consenso pequeno burguês (facilmente influenciável, disse o Argéu Santarém), ele era um de “nós”, só que “mal encaminhado” ou “mal endereçado”. Um pobre menino de – então – quase 40 anos. Por isso o “berro-coxinha”. E se pegam um dos nossos tantos irmãos, primos e colegas?

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